"Cansada" é uma das palavras que mais fazem parte do vocabulário materno. São tantos papéis a cumprir e tantas coisas a fazer ao longo de um simples dia que a conta nunca fecha. De um lado, crianças com energia de sobra, mesmo depois de um longo dia de escola. De outro, mães ocupadas terminando seus trabalhos, cozinhando, ajeitando a casa e tentando dar atenção para os filhos.
O resultado, claro, é sempre uma sensação de inabilidade, de fracasso ou de culpa materna. Porque a mãe cansada quase nunca tem o direito de estar cansada, de não fazer mais nada - e isso inclui limpar, cozinhar, cuidar, brincar e suas infindáveis variantes - e apenas se deixar afundar no sofá. Mas precisa. É fundamental se olhar com sinceridade e se colocar como sujeito nessa relação materna - que sente, que cansa, que não quer brincar, que perde a paciência, que precisa de um tempo - e poder ser franca consigo, com sua criança e todos à sua volta. Sem necessidade de ser guerreira. E sem culpa. Mas como equilibrar essa equação?
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Muitas mulheres e crianças vão se enxergar no livro Mamãe está cansada, de Vanessa Barbara
Muitas mães exaustas e crianças animadas vão se identificar
Deve ser por isso que o livro Mamãe está cansada (Companhia das Letrinhas, 2023), de Vanessa Barbara com ilustrações de Laura Trochmann, traz tanta identificação e levanta reflexões sobre o papel da mãe e sua subjetividade - e como a criança encara essa mãe ocupada. De maneira muito divertida (e realista), a obra mostra a rotina de uma mulher que, como quase todas as mães, está sempre com mil coisas para fazer até tarde da noite, e de uma menina que só quer saber de brincar com tudo o que tem à mão (e de ficar pertinho de sua mãe, vendo graça até no cansaço dela).
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Foi identificação imediata para a escritora e socióloga Luciana Bento, autora da página @amaepreta, no Instagram, mãe em tempo integral de Aísha, 10 anos, e Naíma, 9. “Primeiro, pela imagem, que é uma ilustração de uma mãe preta. É muito raro encontrarmos livros infantis que tenham uma mãe negra em destaque”, diz ela. “E, depois, pelo título. Sou a típica mãe cansada, que faz várias coisas ao longo do dia. Assim que vi o livro, já fiquei interessada e me vi naquela história, mesmo já tendo duas filhas grandinhas”, conta. Ainda que suas filhas já estejam mais crescidas, ela lembra que há pouco tempo tinha duas menininhas correndo pela casa e brincando, iguaizinhas à personagem do livro.
Primeiro, ela leu a história sozinha e se emocionou muito. “Na minha visão de mãe cansada, vejo o lado da mãe, tentando o possível para equilibrar todos os afazeres da rotina, enquanto cuida da filha. E o livro traz a visão da criança, vivendo, brincando e amando essa mãe enquanto ela está imersa no caos cotidiano”, resume. Essa perspectiva ajudou Luciana a afastar um pouco o sentimento de culpa, que nasce com a maternidade.
Me fez olhar com mais ternura para mim mesma nos momentos em que eu só conseguia ver minhas tarefas e depois me sentia como se estivesse negligenciando minhas filhas. Ver uma criança feliz, brincando, usando a imaginação e curtindo a companhia dessa mãe, na história, foi uma forma de perceber que nem sempre o fato de a gente não dar conta de tudo do jeitinho que a gente gostaria significa que ficamos em falta com nossas crianças ou que geramos um impacto negativo na vida delas (Luciana Bento, socióloga, autora do @amaepreta)
Depois, Naíma, a caçula de Luciana, leu também e… adivinha? O primeiro comentário foi de que o livro parecia ter sido escrito para sua mãe. “Me marcou muito quando ela falou que, assim como a personagem do livro, também gostava de brincar assim, em mim, quando eu estava cansada”, relata.
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Luciana Bento com as filhas, Aisha e Naíma (Reprodução/ Instagram)
Afinal, por que as mães estão tão cansadas?
Cuidar de uma criança é um trabalho incrível, mas ele não é valorizado pela sociedade, que também não assume a responsabilidade ao lado dessas mães. Em muitos casos, nem o pai faz sua parte. Você já deve ter lido que, no Brasil, mais de 5 milhões de crianças não têm o nome do pai na certidão de nascimento. Sem falar nas que até têm o nome, mas não têm a presença ou nas que têm o nome e o pai na mesma casa, mas não contam com seus cuidados ou com seu interesse, com sua participação real na criação.
“A conta não fecha e nunca vai fechar”, aponta Luciana. “Cuidar de crianças é uma tarefa que precisa de mais de uma pessoa, precisa de uma rede ou uma aldeia, como diz o provérbio africano. E não é só pela exaustão das mães. É que cuidar de crianças é um compromisso de toda a comunidade”, ressalta. A socióloga lembra ainda que contar com essa diversidade de cuidados é importante até mesmo para o desenvolvimento da criança. Ainda assim, na maioria das vezes, a carga continua centrada na mãe - que muitas vezes também tem papéis de esposa, trabalhadora, filha que cuida de parentes mais velhos, estudante, dona de casa… “E também é um ser humano que precisa de um tempo para ela. E de cuidados”, reforça.
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Sobra tudo para a mãe e, mais do que isso, toda essa sobrecarga continua sendo romantizada. “Guerreira!” ou “Dá conta de tudo!” são “elogios” clássicos em propagandas e cartões de Dia das Mães. Mas a realidade é que ninguém dá conta de tudo - e nem deveria precisar dar. Além da falta de apoio de todos ao redor, do mercado de trabalho cruel e nada flexível e de tantos outros pontos, é por tentar se encaixar nesse papel de Mulher Maravilha é que muitas mães estão exaustas, sobrecarregadas, frustradas.
É muito difícil romper esse estereótipo de que a mãe é a primeira e principal referência de uma criança. E quando a gente rompe com isso na nossa consciência, a sociedade segue reforçando e cobrando que a mãe ocupe esse espaço. E, com essa cobrança toda e a expectativa de que a mãe tem que dar conta de tudo, a sociedade acaba limitando o potencial dessa mulher-mãe e também dessas crianças (Luciana Bento, socióloga e autora do perfil @amaepreta)
Onde está a aldeia?
Há muitas mães e crianças sozinhas para pouca aldeia disposta a participar desse processo, tão lindo e complexo, recompensador e desafiador, que exige tanto de um ser humano. “Mulheres trabalham tanto quanto homens nos empregos e muitas recebem salários inferiores. Muitas vezes, a maternidade nos afasta dos estudos ou de oportunidades de ascensão na carreira. Temos contas para pagar e, em vários casos, somos as únicas ou as principais responsáveis pelo sustento da família”, aponta a socióloga. “Uma noite de sono não é o suficiente para diminuir o peso dessa carga de ser mulher e mãe - e preta, e periférica, e solo... E várias outras identidades que se interseccionam.”
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Não é fácil lidar com essa realidade quando pensamos individualmente, porque, no individual, sempre parece que a gente - e só a gente - está falhando. (Luciana Bento, socióloga e autora do perfil @amaepreta)
“A mudança pode ocorrer na coletividade. O primeiro passo é implicar homens e pais nesse lugar de responsabilidade pelo cuidado. Cuidar não é uma prerrogativa feminina. Depois, é buscar uma sociedade que entenda que o cuidado com crianças e com as pessoas mais vulneráveis não é um peso. É uma atividade muito valorosa e que deve ser recompensada”, sugere.
Cuidar é importante. Não é perda de tempo. Essa é uma luta coletiva, que pode até ser protagonizada pelas pessoas que têm filhos ou que lidam direto com crianças, mas precisa ser acolhida e apoiada por todos. Só assim conseguiremos construir essa aldeia tão necessária para criar uma criança. (Luciana Bento, socióloga e autora do perfil @amaepreta)
A perspectiva da criança sobre a mãe
De dentro do olho do furacão, fica difícil dar um passo atrás e tentar enxergar a vida sob outro ângulo. Mas é exatamente isso o que o livro Mamãe está cansada convida a fazer, por meio de uma história cotidiana, mas que tem a delicadeza de mostrar tanto a visão da mãe, quanto a da criança - e é aí que está o segredo. Você já tentou se ver pelos olhos do seu filho? Talvez, como aconteceu com Luciana, ver a vida por esse outro prisma, cheio de magia, encantamento e imaginação, pode transformar a relação que você tem consigo mesma e ajudá-la a se cobrar um pouco menos.
“Essa oportunidade de enxergar o mundo pela perspectiva da criança é libertadora, porque não há, na visão dela, uma expectativa de que a relação com a mãe seja da maneira que a sociedade convencionou em dizer que é a certa”, diz Luciana. “A criança feliz na loucura do dia a dia, brincando, experimentando e, principalmente, interagindo com a mãe, como vemos na história, é um exemplo de que as relações se constituem por diferentes parâmetros. E também mostra que o que esperamos, a partir do nosso ponto de vista adulto, pode ser diferente do que a criança realmente quer ou do que a faz feliz”, acrescenta.
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Como se livrar (ou diminuir) a culpa
Quando as mães contam que têm dificuldade de se conectar com os filhos, muitas vezes, escutam conselhos como: “Larga tudo e senta um pouquinho no chão para brincar”. A intenção pode até ser boa, mas, em primeiro lugar, quando a mãe “larga tudo”, quem vai “catar tudo” depois? Ela mesma. Então, não parece uma sugestão que ajuda muito… E tem outro ponto, muitas mães não gostam de brincar. E, acredite, está tudo bem!
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Luciana mesma nunca foi de gostar de brincar muito com as meninas e isso, para ela, foi uma questão durante um certo tempo - até ela perceber que isso não era um problema. “Depois, eu entendi que não era uma questão de não gostar de brincar. É que determinadas brincadeiras são mais divertidas para todas nós, juntas. Mas há outras em que elas se divertem e brincam melhor com outras pessoas. Então, brincar se torna mais um item naquela check-list infinita das mães. “É importante conhecer o que gostamos de fazer e aquilo que fazemos com prazer com nossas crianças, mesmo quando estamos exaustas”, diferencia.
O que tem funcionado para mim, nesse lugar de me livrar da culpa, é compreender que as atividades que eu faço com elas, nos momentos em que podemos ter um tempo juntas, são feitas com prazer de estar com elas, reforçam a nossa conexão. (Luciana Bento, socióloga e autora do perfil @amaepreta)
"Penso que, para a criança, assim como acontece com os adultos, deve ser muito ruim se sentir um fardo, uma obrigação. Então, é mais honesto, muitas vezes, dizer que não quer ou não pode brincar do que deixar transparecer na sua atitude o desconforto por estar passando aquele tempo com ela”, reflete. “Eu sempre fui bem sincera, desde quando elas eram pequenas, inclusive quando eu precisava dormir um pouco para recarregar as minhas forças. Eu colocava o despertador e falava: ‘Mamãe vai dormir uns quinze minutinhos, mas depois podemos brincar’. E esse era o nosso combinado. O despertador tocava, eu acordava e brincava um pouco com elas. O diálogo franco permite o estabelecimento de relações que respeitem os limites dos outros e os nossos”, pontua.
A socióloga lembra ainda que é importante buscar que tipo de conexão faz sentido para você e para os seus filhos:
Será que é brincar?
É ler?
É ir ao cinema?
É ir ao parque?
Tirar um cochilo juntinhos no meio da tarde?
“O importante, me parece, é que a gente não deixe o cansaço e a exaustão nos afastar totalmente das crianças”, reflete Luciana.