Precisamos falar sobre desigualdade social com as crianças

16/06/2023

Por que as pessoas dormem na rua? Podemos comprar uma casa para elas? E dar comida? Por que algumas não têm comida? Se você já ouviu uma criança fazer uma pergunta semelhante a essas, sabe a dificuldade em explicar aquilo que, para os olhos da infância, não faz sentido nenhum: a desigualdade social, que gera absurdos como a miséria e a fome. E que também estabelece situações desiguais de crescimento para as próprias crianças, algumas com muito mais recursos materiais, outras com tão poucos.

Explicar isso para os pequenos pode ser complicado, seja para aqueles que não passam por necessidades financeiras, seja para aqueles que têm tão pouco perto de outras pessoas. Mas é importante falar sobre desigualdade social com as crianças. Tenha certeza: se nós, adultos, já normalizamos situações como essas, pelo olhar infantil elas não passam invisíveis. E há excelentes livros infantis que tratam dessa situação e podem ajudar a fomentar um bom diálogo sobre realidades sociais. 

Aqui e Aqui, de Caio Zero

É o caso de Os invisíveis, de Tino Freitas e Odilon Moraes, e também do recente Aqui e aqui (Companhia das Letrinhas), de Caio Zero. No livro de Caio, o menino protagonista tem um grande mistério para resolver: toda noite ele dorme em seu quarto e acorda em outra casa. Ao longo das páginas, o garoto tenta desvendar o segredo e elabora várias teorias curiosas, de um portal misterioso a alienígenas. Por fim, descobre a resposta, que transforma a visão sobre a sua vida, e principalmente a da sua mãe, que (atenção, spoiler!) precisa acordar muito cedo para trabalhar e o deixa aos cuidados de uma vizinha.

Essa é a realidade de milhões de brasileirinhos, cujos pais começam a batalha antes mesmo de o sol nascer. A desigualdade social e o mercado de trabalho - que não leva em conta a realidade e as necessidades familiares - fazem com que, enquanto algumas crianças possam acordar e tomar café da manhã tranquilamente, junto dos pais, outras precisem ser transportadas ainda durante o sono para outro lugar (isso quando têm alguém como rede de apoio e mesmo uma casa para morar) - quando não são os irmãos que ficam responsáveis por elas. As assimetrias são diversas.

Aqui e Aqui, de Caio Zero

Um diálogo necessário

Embora possam viver realidades completamente distintas, crianças são conectadas pela infância. Se o seu filho ainda não viu uma criança vendendo bala ou pano de prato no farol ou em frente a um restaurante, as chances de isso acontecer, infelizmente, são grandes, sobretudo se vocês vivem em grandes centros urbanos. Provavelmente, com a curiosidade inerente à infância, vai perguntar por que aquela criança, como ela, está ali. Ela tem casa? Ela tem pais? Podemos comprar comida para ela? Uma casa?

Diante de tantos questionamentos, e explicações que parecem não pertencer à infância, é comum que a reação seja desconversar. No entanto, responder com sinceridade e abordar o tema da desigualdade e das diferentes realidades sociais, como uma questão ampla, não só é importante, como é um compromisso. “É preciso manter um compromisso ético com a criação de uma sociedade mais justa e igualitária para todas as pessoas e isso vai partir da criação de crianças que sejam capazes de se sensibilizar com realidades que não são só as delas”, afirma a psicóloga e psicanalista Fê Lopes, uma das idealizadoras do projeto Igbaya - Apoio à Amamentação Negra. Para isso, ela lembra, é preciso ter adultos também sensíveis a realidades que não são só as deles.

Não podemos deixar que uma criança veja um morador de rua e isso não toque o coração dela - o que não quer dizer que precise deprimí-las. Mas, para isso, é importante que a questão me toque, como adulto também.
(Fê Lopes, psicóloga e psicanalista)

As formas diferentes como enxergamos a desigualdade social torna ainda mais complexa a conversa sobre o tema com as crianças. “Para algumas pessoas, a desigualdade social é uma questão de que alguns querem e outros não querem trabalhar ou que alguns têm mais força de vontade e dedicação que os outros, uma visão meritocrática da realidade. Se a criança vive em um lar em que as pessoas acreditam nisso, a fala dos pais sobre a desigualdade social vai ser assim e a criança vai crescer reproduzindo a ideia”, explica a psicanalista e educadora parental Elisama Santos, autora dos livros Educação não violenta e Conversas corajosas.

Dentro da minha visão de mundo, as desigualdades sociais são fruto de um sistema político desigual, de uma estrutura violenta com as populações menos favorecidas. E isso não tem nada a ver com ‘basta querer’ ou com mérito pessoal. Então, acredito que é necessário mostrar para as crianças, sim, que existe uma distribuição do dinheiro no mundo bem desigual.
(Elisama Santos, psicanalista, educadora parental e escritora)

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Como abordar o assunto da desigualdade social

É um papo sério para abordar com os pequenos? Sim, mas necessário e exatamente por isso precisa ser tratado o quanto antes - e da forma mais verdadeira possível. Quando a criança é muito pequena e faz perguntas sobre o tema, dá para explicar em uma linguagem mais simples, contando que há regras, como em um jogo, e que, às vezes, essas regras facilitam a vida de algumas pessoas e dificultam a vida de outras. “À medida que a criança cresce, é possível começar a responder aos questionamentos de maneira mais complexa, ampliando o debate”, diz Elisama.

É importante que a criança saiba que ela é parte da transformação do mundo, que ela é parte da construção de um mundo mais justo e mais igualitário.
(Elisama Santos, psicanalista, educadora parental e escritora)

É comum que a criança pergunte se vocês podem dar, por exemplo, um prato de comida para a pessoa que está na rua. “É claro que podemos, sim, ter ações assistencialistas, oferecer um prato de comida a quem tem fome”, explica a escritora. O que não é legal, segundo ela, é achar que, com isso, seu coração está mais calmo e a questão está resolvida.

“É importante que a criança saiba que, mesmo que tenha dado o prato de comida, mesmo que você ajude, há muitas ações que, conjuntamente, vão melhorar a vida de muitas pessoas e não somente de uma, não somente daquela pessoa que está pedindo comida. A gente deve começar a conversar desde quando a criança começa a perguntar”, reforça. Ou seja: nunca é cedo demais. 

 

Conversas que abrem mais conversas

Quanto mais realidades a criança observa, quanto mais ela questiona e recebe respostas verdadeiras dos adultos que a cercam, mais ela tem a possibilidade de desenvolver o senso de justiça social - que pode ser um combustível para ações transformadoras, agora e no futuro. “Se estamos pensando na educação e na formação de crianças enquanto cidadãos, é primordial que os pais não se furtem a ter essas conversas com os filhos e também que não entendam que este seja um debate exclusivo a ser feito na escola”, lembra Fê Lopes.

Ela ressalta também um ponto importante: ao tratar de desigualdade social com os pequenos, não basta falar apenas do outro. “Eu preciso falar de mim também, da situação social em que eu estou. Dizer, aliás, o que significa ‘social’, o que é ‘igualdade’, o que é ‘privilégio’...”, exemplifica.

Ao abordar o tema, seja como educador, como pai, como família ou como qualquer profissional que fale de infância, é necessário pensar em pluralidade. “É preciso falar de infâncias, de maternidades, de parentalidades. Assim, é possível trazer outras realidades, sem partir do pressuposto de que a realidade de quem está na classe média ou na classe média alta - e que, portanto, não vive essa situação de dormir em uma cama e acordar em outra, como o personagem - é a realidade ‘normal’. A ideia é que eu também me inclua como UMA realidade e não como A realidade”, aponta a psicóloga. 

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Nem sempre é fácil, porque assuntos como a desigualdade social, possivelmente, também nos causam angústia. Mas isso não deve funcionar como uma desculpa para fugir do assunto. Pelo contrário. De acordo com Fê Lopes, compartilhar o que você, como adulto, sente, também pode ser interessante. Ao se abrir e contar o que já sabe ou já viu sobre o tema, você pode estimular a criança a contar como ela se sente em relação a isso e ouvi-la.

E prepare-se porque, provavelmente, uma conversa vai levar a outra, depois à outra e a infinitas outras. Como podemos ajudar? O que é ajudar? Qual é o nosso papel como pessoa física e como sociedade? Qual é o papel do governo? 

Aqui e Aqui, de Caio Zero

 

Representatividade importa

E do outro lado?

Para as crianças que vivem em situação de vulnerabilidade, em uma realidade muito mais difícil, enxergar as próprias histórias em um livro faz com que percebam que a história delas também é importante, que há a dor, mas também há beleza na história delas.
(Elisama Santos, psicanalista, educadora parental e escritora)

“A criança que vive isso e vê aquela história consegue dar dois passos para trás e enxergar a própria história, que, normalmente, ela não vê narrada”, diz a psicóloga Elisama. “Enxergar a história dela narrada com voz, com personagem, por outras pessoas, amplia a perspectiva. Ela se vê e ela passa a tomar posse da história dela também como algo importante”, acrescenta. “Ver a nossa história, a nossa cor, reconhecer cada passinho da nossa vida em um livro é muito poderoso porque nos ajuda a dar contorno a nós mesmos”, completa. 

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Mais livros para falar sobre realidades, desigualdades e infâncias (no plural)

A leitura, assim como os desenhos, os filmes, as histórias narradas e as conversas, é uma ferramenta importante para compreender que o mundo é composto por diferentes realidades e que todas elas existem e são importantes. “Livros, sem dúvida, nos ajudam nessas discussões, já que servem de base para práticas escolares, criando realidades, trazendo capacidade imaginativa de materializar assuntos para as crianças… Mas é importante lembrar que o debate não deve ficar apenas a cargo da escola e sim ser um compromisso de todo mundo”, reforça a psicóloga Fê Lopes. 

Pensando nisso, selecionamos aqui mais alguns títulos que podem ampliar conversas:

Os invisíveis (Companhia das Letrinhas), de Tino Freitas e Odilon Moraes

Capa do livro ilustrado Os invisíveis, de Tino Freitas e Odilon Moraes

Um menino que tem o superpoder de ver os invisíveis é o tema deste livro que nos convida a refletir sobre personagens cotidianas muitas vezes ignoradas pelos adultos: pessoas em situação de rua, um idoso em um banco de praça, a multidão do centro da cidade, uma mulher no mercado de trabalho... Será que ele permanecerá com esse poder ao crescer?

 

A melhor mãe do mundo (Companhia das Letrinhas), Nina Rizzi

A melhor mãe do mundo, Nina Rizzi

O que faz uma mãe ser a melhor do mundo? Para o menino que narra esta história, brincar com ele, jogar bola, ajudar na lição de casa, ajudar quem precisa e enchê-lo de amor são as características que colocam sua mãe nesta posição. Mesmo que ela esteja longe (atenção, spoiler), encarcerada num presídio, nada pode mudar a relação que eles têm. É o que conta este livro, cheio de esperança, delicadeza e afeto.

 

A carta de Moussa (Brinque-Book), Roser Rimbau e Rocio Araya

A carta de Moussa, Roser Rimbau

Moussa tenta escrever uma carta ao pai, que emigrou há bastante tempo, para lembrá-lo de seu povoado em Thille Boubacar, no Senegal. Mas como colocar cheiros, aromas, sons e memórias afetivas em uma folha de papel? O livro foi selecionado para figurar o Catálogo White Ravens da Biblioteca Internacional da Juventude, de Munique, Alemanha, em 2018.

 

Da minha janela (Companhia das Letrinhas), Otávio Júnior

Da minha janela, Otávio Júnior

De sua janela em uma favela no Rio de Janeiro, o narrador deste livro fala sobre pessoas, animais e coisas que descobre quando decide prestar atenção ao mundo que o cerca. E convida todos a fazerem o mesmo, observando vidas que nos passam despercebidas. O livro ganhou o Prêmio Jabuti 2020 na categoria Infantil.

 

Óculos de cor (Companhia das Letrinhas), Lilia Moritz Schwarcz

Óculos de cor, Lilia Moritz Schwarcz

Lilia Moritz Schwarcz se volta à literatura infantil para proporcionar reflexões aos jovens leitores sobre assuntos de primeira importância, como a branquitude e o racismo estrutural que atinge a todas e todos no Brasil. Neste livro, Alvo é um garoto cheio de energia, que mora com a família em um bairro elegante e, a despeito de ser curioso, pouco percebe sobre o mundo à sua volta, tão diferente do seu. Já Ebony adora fazer amigos, contar histórias e está prestes a começar os estudos em uma nova escola. Quando Alvo e Ebony se encontram, uma jornada especial tem início na vida dos dois. Neste caminho, Alvo se dá conta de que o mundo é muito mais diverso do que ele imaginava e de que é possível "ver e enxergar" além das nossas próprias existências e com muito mais cores.

 

Mustafá (Brinque-Book), Marie-Louise Gay

Mustafá, Marie-Louise Gay

Este livro conta a história de um garoto que teve de sair de seu país com a família e aos poucos descobre seu novo lar. Mesmo com esse mundo novo a descobrir, Mustafá sente-se invisível ali onde as pessoas falam uma língua que ele não entende. Mas, um dia, uma menina, com um gesto simples, irá mostrar a ele que a amizade, a gentileza e o afeto superam as fronteiras entre línguas e lugares.

 

Entre sonhos e dragões (Companhia das Letrinhas), Adriana Carranca

Entre sonhos e dragões, Adriana Carranca

Da autora do best-seller Malala, a menina que queria ir para a escola, essa narrativa inspirada em histórias reais exalta os talentos e a importância das garotas afegãs nas artes, no esporte e na educação. Meena, Shamsia e Sadaf sonhavam em mudar o mundo que observavam de suas janelas e que viam perecer. Quando os dragões ocuparam o céu outra vez, elas decidiram ir à luta! Mas suas armas eram outras: pincéis e latas de tinta spray, luvas de boxe e um violoncelo! Será que conseguiriam vencer os perigos e a guerra?

 

Papaco e Lilico: A floresta e o circo (Brinque-Book), Adailton Medeiros

Capa do livro Papaco e Lilico, de Adailton Medeiros

Papaco e Lilico são irmãos e vivem na favela do Muquiço, no Rio de Janeiro. Brincam, vão à escola, jogam bola e têm aulas de circo. Lilico quer ser palhaço, Papaco quer ser trapezista e ver tudo de cabeça pra baixo. Um dia resolvem conhecer a Floresta do Camboatá, em Deodoro, e se encantam com toda aquela bicharada e todo aquele verde. 

 

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