Um menino é o único em sua família com o superpoder de enxergar seres que são invisíveis, especialmente para os adultos. E quem são os invisíveis que apenas essa criança consegue ver? Em nova edição lançada em agosto pela Companhia da Letrinhas, o livro ilustrado Os invisíveis, criado desta vez em parceria entre os autores Tino Freitas e Odilon Moraes, posiciona o leitor na perspectiva daqueles que não enxergam os invisíveis.
Capa da nova edição de Os invisíveis,
de Tino Freitas e Odilon Moraes. Leia +.
Ainda que não consigamos ver seus rostos nas ilustrações - compostas em caneta Bic preta por Odilon Moraes-, sua invisibilidade, paradoxalmente, chama atenção para eles. São garis, senhores mais velhos no banco da praça, moradores de rua, atendentes de mercado, o cachorro da família.
“Eu acho que essa é a grande questão do livro, a definição de como seria essa narrativa, como seria retratada a ideia do superpoder e como seriam retratados os invisíveis. A gente teve que conversar sobre o que deixar ou não deixar visível. O que desenhar e o que não desenhar”, explica Tino Freitas.
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Um menino enxerga aqueles que ninguém mais vê
Tino conta ainda que seu trabalho teve muito a ver com a divisão do texto ao longo das páginas e com o ritmo criado a partir daí: “Vamos deixar esse ritmo mais lento aqui, vamos deixar mais forte ali, vamos trocar esse desenho por esse outro, vamos aproveitar que a gente está tendo uma relação muito grande com a pandemia e colocar esse pai numa cama de hospital”, exemplifica o autor, que voltou ao livro depois de oito anos da primeira publicação, ilustrada por Renato Moriconi.
A solução visual-gráfica que acompanha e potencializa o texto; o ritmo da narrativa sugerido a cada virar de páginas; as várias invisibilidades em destaque, tema tão importante e urgente de ser conversado; a parceria com Odilon durante cada passo da criação; tudo isso faz desse livro uma obra importantíssima na minha produção como artista.
Tino Freitas
Livro ilustrado e invisibilidades a quatro mãos
Odilon e Tino, que são músicos, fazem uma analogia com a composição de uma canção para se referir ao trabalho conjunto. “O marco desse processo foi a conversa que eu tive com o Tino, que foi muito bacana, porque tudo estava em jogo. Tanto a possibilidade de mudar uma palavra como cortar uma palavra em tal momento para dar um ritmo. Tudo foi conversado entre nós dois, como alguém que está compondo uma canção”, compara Odilon. “Isso foi uma coisa muito forte porque em nenhum momento eu pensava que estava desenhando. A todo momento eu pensava que estava contando a história junto com o Tino. Esse é o tipo de processo de um livro ilustrado, de pensar que você está contando uma história junto com a palavra”.
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As pessoas da multidão, que também são invisíveis para o leitor
Odilon, que também é pesquisador do livro ilustrado como forma artística, conta que pensa a ilustração como uma escrita que é construída com a imagem. “Eu não gosto nem de chamar de escrita paralela, eu acho que há uma escrita só, não tem paralelismo. É uma escrita em que a palavra e a imagem, de certa maneira, constroem essa narrativa. Coisas que uma diz, a outra se cala; coisas que a outra diz, a primeira se cala para que ela diga melhor. O livro ilustrado tem muito disso: às vezes, para fortalecer a imagem, você cala uma palavra ou, para fortalecer a palavra, você resolve não participar da cena com imagem”.
Sobre seu processo de criação, o autor conta que prefere uma espécie de limpeza. “E nesse livro há uma limpeza absoluta, ele foi feito com uma caneta Bic em papel canson. E na verdade o impacto se dá não na expressão gráfica, mas no modo com que isso é conduzido. De cena a cena, vai crescendo a impossibilidade de ver as pessoas, e aí você começa a perceber a passagem do tempo através do tronco da árvore, que vai crescendo”.
O menino de Os invisíveis nos convida a um olhar mais empático
A invisibilidade existencial
As diversas invisibilidades apresentadas pelo livro posicionam o leitor, por meio da ilustração, no lugar daqueles que não têm o mesmo poder do menino, como explica Odilon Moraes: “Para mim, o trabalho de ilustração foi exatamente fazer clara ao leitor essa ambiguidade: o texto está narrando o poder de um personagem, e o leitor, ao contrário, está vendo a sua própria fraqueza, de não conseguir enxergar o que o narrador está propondo. Eu acho que esse é um jogo que a imagem faz”.
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Rascunho de Odilon Moraes para a nova edição de Os invisíveis
Para ele, o livro estende a noção da invisibilidade social, que também está ali representada por meio do gari e dos moradores de rua que só o menino vê, para uma certa “invisibilidade existencial”. “Isso implica que todos podemos em algum momento nos tornar invisíveis aos outros. Seja num momento de fraqueza, em que a gente não se impõe, ou num momento em que a gente não é o foco da questão, seja no próprio momento amoroso”.
O livro termina com o personagem que tem poderes trocando de lugar com os invisíveis. Então, de certa maneira, fecha com uma certa circularidade da vida. Ao mesmo tempo, a criança que no final pega a bola com ele é a única que se afeta pela presença do indivíduo. Ela está sempre olhando cada indivíduo.
Odilon Moraes
Em rascunho de Odilon Moraes, o menino, quando envelhece, assume o lugar dos invisíveis
O leitor em outra perspectiva
Odilon revela ainda que houve um momento importante durante o trabalho, em que ele mostrou à sua mulher (a também autora Carolina Moreyra) uma proposta de ilustração em que os invisíveis teriam uma mancha de cor – e seriam, portanto, “visíveis”.
“Ela olhou e falou ‘de jeito nenhum’. Porque assim, de certa maneira, você estaria vendo o invisível, estaria na mesma posição do menino. Isso eu achei muito bacana, quase um acidente no meio desse processo, em que, ao optar por não fazer a mancha de cor nessa ilustração, mudou o lugar do leitor. Isso é muito interessante para entender como o livro ilustrado é uma narrativa e como a imagem participa dessa narrativa. O texto é o mesmo, mas essa mudança na ilustração coloca o leitor numa outra posição específica.”