Julia Donaldson e o 'modo Grúfalo de ser': a ousadia de acreditar no que não existe

20/06/2023

A escritora inglesa Julia Donaldson, autora do esperto ratinho que inventa um monstro para não virar comida de cobra, em O Grúfalo (Brinque-Book, 1999), pode ser apresentada por duas de suas habilidades memoráveis. A de construir fábulas atemporais para a infância de todo leitor.  E a de ter criado um personagem tão popular que cunhou um substantivo, mas é tão bem inventado que talvez nem exista. Apresentações à parte, seus livros e personagens caminham sozinhos. Já são crescidos o suficiente para testemunhar uma geração, e ainda assim frescos e cheios de perguntas como quem acaba de nascer.

"Vovó costumava abrir grandes envelopes marrons para que Mary e eu pudéssemos desenhar e escrever histórias no verso. Eu também gostava de escrever histórias na escola; o primeiro que me lembro de ter escrito era sobre um coelho com orelhas laranjas que pareciam cenouras", conta a escritora em seu site. Créditos: juliadonaldson.co.uk

 

"No meu quinto aniversário, meu pai me deu um livro muito gordo chamado O livro dos mil poemas. Eu amei. Li os poemas, recitei-os, aprendi-os e depois comecei a inventar alguns", conta a escritora, em seu site oficial. Mais tarde, para a sorte de milhões de leitores, ela decidiu que faria histórias para crianças.

De alguma forma, acabei fazendo o que eu queria fazer quando tinha cinco anos. Eu tenho uma teoria de que isso acontece com muitas pessoas. (Julia Donaldson, escritora)

O primeiro livro de poemas da pequena escritora foi uma coletânea organizada por Jeannie Murray MacBain que ela ganhou  do pai em 1953, The book of a thousand poemas, um clássico infantil dos anos 40. Na dedicatória, a marca afetiva do presente: "Com amor, do papai". Crédito da imagem: juliadonaldson.co.uk

De acordo com o banco de dados Nielsen Bookscan, do Reino Unido, entre 2010 e 2019, Julia Donaldson foi a autora mais vendida da década em qualquer faixa etária ou gênero. Para se ter uma ideia do que isso significa, vale dimensionar Julia ao lado de uma das autoras mais conhecidas desde os anos 2.000, J.K. Rowling, autora da saga Harry Potter. Nesse mesmo ranking de vendas, Rowling nem sequer apareceu entre os cinco primeiros.

Com suas narrativas pautadas por rimas e um ritmo irreconhecível ditado pela oralidade, a autora tem sido, ao longo dos anos, uma espécie de “flautista de Hamelin” ressignificada da literatura mundial (nada de crianças desobedientes de um lado nem de trágicas circunstâncias do outro, somente um encantamento). Onde cantam suas histórias, legiões de leitores aficionados a acompanham pelo mundo afora. 

 

A alma infantil de Julia Donaldson

Desde que o ser humano aprendeu a se comunicar, existem as histórias. Por uma soma de motivos – boa parte deles, insondáveis – algumas permanecem para sempre, na cabeceira invisível da História. Julia Catherine Donaldson é o nome por trás de uma porção delas. 

Autora do best-seller seriado O Grúfalo – cujo primeiro livro foi publicado em 1999 – Donaldson vem conquistando leitores em todo o mundo, e já vendeu dezenas de milhões de cópias. Mais de 50 idiomas já receberam versões de seus livros.

No Brasil, a mais recente de suas aventuras chegou em maio às livrarias, O livro preferido de um garoto sabido (Brinque-Book, 2023). Como diz sua sinopse, é “uma história circular, sem começo nem fim”, que presta sua homenagem não só aos cânones da literatura infantil, mas também à  imaginação, esse elemento essencial na literatura de Donaldson. 

Lançamento da Brinque-Book de 2023, O livro preferido de um garoto sabido é ilustrado por Axel Scheffler

Na história, um menino mergulha tão fundo na leitura que vai parar no cenário dos livros mais famosos do mundo. Para surpresa do garoto, as pessoas lá também estão lendo seus livros preferidos, que levam a outras histórias, e a outras, e outras, em uma espiral infinita. A obra remete à força da ficção para contar a vida de cada um, afinal, esteja onde estiver, todo mundo tem essa característica em comum, uma história para contar.

Capa de O livro preferido de um garoto sabido, de Julia Donaldson

Para comemorar a chegada deste livro e também a existência de histórias capazes de atravessar gerações, vamos percorrer a trajetória de criação e a biografia curiosa da artista. O fenômeno Julia Donaldson é como amizade de Grúfalo: não se explica, e leva a lugares inusitados. E, já que falar da artista é falar também do personagem que a transformou em uma das autoras mais lidas do mundo, comecemos por aí.

LEIA MAIS: Clássicos contemporâneos: quais são os livros infantis que ficam para sempre?

 

Grúfalo, entre o real e o imaginário: um clássico

Criado há pouco mais de duas décadas, em uma profícua parceria com o premiado ilustrador alemão Axel Scheffler que já dura mais de 20 anos, Grúfalo pode ser lido como um clássico contemporâneo. Um dos mais populares personagens da literatura infantil mundial é um monstro peludo, com unhas afiadas, chifres pontudos, grandes dentões à mostra e um par de olhos bem amarelos.  

De autoria de Axel Scheffler, parceiro de criação da escritora Julia Donaldson, a imagem do Grúfalo ultrapassou a literatura e é reconhecida por crianças e adultos do mundo todo. Crédito: juliadonaldson.co.uk

No entanto, seria injusto – ou melhor, incompleto – dizer que o Grúfalo é uma criação de Julia Donaldson e Axel Sheffler. O monstrengo é na verdade fruto da imaginação de um ratinho que tinha tanto medo de ser devorado que acabou inventando essa criatura para se proteger.

Não é difícil imaginar quantos perigos pode correr um bichinho tão pequeno à solta pela floresta. No livro, contrariando os estereótipos, o pequeno roedor realiza seu trajeto com maestria quando tem a ideia de espalhar por aí o rumor de que um tal de Grúfalo, horripilante e assustador, está pela mata à caça de suas presas. A cada animal que ameaça seu caminho, o rato vai ampliando a história. Nem a serpente, nem a raposa e nem a coruja têm coragem de continuar ali. Até que um dia, acontece uma coisa que nem a criatividade sem fim do ratinho poderia imaginar. O próprio Grúfalo aparece. 

Mas, se o Grúfalo foi inventado, como pode simplesmente estar ali? Será que ele é real ou imaginado? Afinal, tudo o que existe não foi um dia invenção de alguém? Tentar responder a essas perguntas nos leva a uma das características descritas por Italo Calvino quando ele define um clássico:

O ‘seu’ clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente. (Italo Calvino, em Por que ler os clássicos?)

Grúfalo, um fenômeno que ultrapassa os livros 

A pesquisadora Mariane Oliveira Caetano, da UEM (Universidade Estadual de Maringá), estudou a tradução de O Grúfalo para a língua portuguesa, de autoria da tradutora Gilda Aquino, responsável por verter ao português todos os livros de Donaldson no Brasil, e por muitas das "transcriações" que tornam a história tão saborosa em nosso idioma. Mariane explica a importância do livro em uma pequena síntese capaz de dimensionar seu alcance global e seu caráter interlinguagens. 

"The Gruffalo foi publicado pela primeira vez em 1999, no Reino Unido, pela Macmillan Children's Books e foi destinado a um público infantil de três a sete anos. O livro foi traduzido para cerca de 28 línguas, vendeu mais de 13 milhões de cópias em todo o mundo e foi vencedor de diversos prêmios na categoria de Literatura Infantil. Ademais, sua história foi adaptada e encenada nos palcos da Broadway e da West End Theatre", explica Caetano. A pesquisadora ressalta que Grúfalo também foi exibido e premiado no cinema, com um curta-metragem homônimo, em 2009.

Caderno de anotações da autora, com os primeiros rascunhos escritos à mão do que viria a ser o fenômeno Grúfalo. Crédito: juliadonaldson.co.uk

A Brinque-Book publicou O Grúfalo em 1999. Desde então, já são seis títulos no total, como a famosa sequência O Filho do Grúfalo (Brinque-Book, 2006), em que o protagonista é apresentado em seu papel paterno. E não para por aí: tem grúfalo para brincar e montar, grúfalo para contar, e grúfalos multiplicados em mais de 400 adesivos

Também de autoria da estrelada dupla Julia Donaldson e Axel Scheffler, há ainda os livros Macaco danado (Brinque-Book, 1999), Carona na vassoura (Brinque-Book, 2012) e O gigante mais elegante da cidade (Brinque-Book, 2018). 

Em O filho do Grúfalo, a criatura inventada pelo pequeno roedor cria outra, num desdobramento criativo e surpreendente

Hoje, é improvável que alguém consiga entrar em uma livraria especializada ou em uma loja de artigos infantis sem encontrar pelo menos um de seus livros, além de inúmeros produtos inspirados em seus personagens, desde materiais escolares a bichos de pelúcia, dedoches, pijamas e quebra-cabeças. 

Tanto no que se refere à obra literária, quanto ao vasto e polêmico mundo de produtos licenciados, Grúfalo é o protagonista soberano das criações de Donaldson. No site oficial da Gruffalo Shop, marca criada há dez anos pela produtora Magic Light Pictures, os leitores podem criar presentes personalizados com o personagem, desde os mais populares, como canecas, almofadas e roupas de bebê, até objetos inusitados, como uma moeda de prata com o rosto sorridente do Grúfalo, comercializada por 117 euros. 

O desdobramento de uma narrativa ficcional literária para outros campos de fruição e consumo além da arte é apenas um dos fatores que testemunham sua capacidade de circulação. Uma obra deve poder bastar em si mesma, por sua expressão e valor artísticos. 

A escritora conta que suas melhores ideias costumam aparecer durante o banho. Crédito da imagem: juliadonaldson.co.uk

 

Da alegria de comer macarrão aos bichos falantes mais lidos do mundo

Julia Donaldson nasceu em um dia 16 de setembro, e cresceu no efervescente ambiente cultural londrino de Hampstead, uma comunidade conhecida por associações artísticas e literárias. O ano era 1948, quando, dois meses antes do nascimento da escritora, no dia 4 de julho, falecia Monteiro Lobato, considerado precursor da literatura infantil brasileira como a conhecíamos naquele momento. 

A autora tem hoje 74 anos, e mora na Escócia ao lado de seu companheiro Malcom, com quem teve três filhos: Hamish (diagnosticado na infância com esquizofrenia, ele morreu em 2003, aos 25 anos), Alastair e Jerry.

Suas primeiras histórias de infância contavam sobre princesas, coelhos de orelhas cor de laranja confundidas com cenouras, bruxos que perdem o rabo e outras invencionices que anunciavam seu futuro literário.  

Criativa desde criança, quando brincava com a irmã Mary de escrever e desenhar no verso dos papéis da avó, ela aprendeu a gostar de ler com os contos de fada que ganhava de presente nos aniversários. Apesar da familiaridade com uma imaginação sem freios, e de ter sido encorajada nesse caminho desde cedo, a escritora só começou a publicar livros já na vida adulta, depois dos 40 anos. Seu primeiro livro foi publicado em 1993, Julia tinha 44 anos. Era A Squash and a Squeeze, editado no Brasil como Apertada e sem espaço (Brinque-Book,  2012).

Dois anos depois do primeiro livro, a escritora conheceu um conto chinês sobre uma menina que inventa ser a “Rainha da Selva” para escapar das garras de um tigre faminto. Inspirada nessa história, ela cria o Grúfalo, juntando a onomatopeia tipicamente monstruosa "Grrrr!" com a sonoridade do búfalo, dando vida a um dos protagonistas mais conhecidos da história dos livros.

 

Uma história ritmada

Antes, dedicou-se ao teatro e a compor canções. Nos anos 1970, durante uma temporada em Paris, a escritora e o marido – na época, ainda amigo e estudante de Medicina – formaram com amigos um grupo de teatro musical de rua, e passavam as férias se apresentando na Europa e nos Estados Unidos. Eles chegaram a gravar um disco, chamado First Fourteen, um misto de folk com performance. Nessas produções, é possível perceber alguns vislumbres da literatura de Julia; as canções têm uma marca de humor nonsense e uma alta voltagem imaginativa, entre realidade e fantasia, aura típica dos livros ilustrados que a influenciaram. Conta a autora em seu site oficial:

Os assuntos vão desde o jogo de tabuleiro Monopoly até as alegrias de comer macarrão. (Julia Donaldson, escritora)

Não por acaso, ler histórias de Julia Donaldson com as crianças evoca no leitor adulto uma certa performance de entonação e ritmo. Hoje, sua literatura é numerosa. Ela escreveu mais de 200 títulos – principalmente livros ilustrados, mas também poesia, peças de teatro, e um romance para pré-adolescentes. Em entrevista ao British Library, ela conta que suas influências literárias vão desde os absurdos sombrios do artista inglês Edward Lear à ternura hilária do escritor norte-americano Arnold Lobel, criador de Rã e Sapo são amigos, publicado no Brasil em 2021. O inglês Road Dahl, com seus retratos de infâncias espetaculosas e contraditórias, também a influenciou.

Em uma entrevista com a autora publicada em 2020, o The Guardian definiu a obra literária da escritora como "um rolo compressor cultural cuja influência entre as crianças talvez só seja superada pelas obras de Disney”. 

Crianças e adultos, todos se cativam pelo “modo Grúfalo de ser”, que aposta em um senso de fabulação acessível em todas as idades para imaginar outros rumos; caminhos não só permitidos ou possíveis, mas necessários, em um mundo que cada vez mais se parece com uma floresta cheia de predadores. Tentar adivinhar o que faz um monstro de dentes afiados à mostra e arregalados olhos amarelos ser tão adorado é o que nos faz voltar a ele – sempre, e "de novo", como pedem as crianças. 

Saiba mais

  • Para continuar o mergulho no universo Julia Donaldson, o site oficial The Gruffalo reúne curiosidades, novidades, músicas, informações sobre eventos, brincadeiras e jogos para as crianças.
  • Quem quiser ver a autora em sua faceta contadora de histórias, a seção Storytelling garante a diversão, reunindo materiais inéditos em vídeo, incluindo o Julia Donaldson and Friends, uma série feita em parceria com seu marido no início da pandemia de Covid-19, em 2020.
  • Clique aqui para conhecer todos os livros da escritora publicado pela Brinque-Book.

 

(Texto: Renata Penzani)

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