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Quantas histórias o silêncio conta?

Um olhar expressivo sem dizer palavra. Um abraço mudo que aquieta o mundo ao redor. Um acontecimento súbito que emudece. Uma pausa. Histórias também se narram no silêncio. E a literatura infantil não é exceção.

Nos livros pensados para crianças, há muitas formas de contar sem palavras. As pausas, as lacunas, os hiatos têm um poder notável: fazer-nos sentir - e imaginar - na ausência. O vazio abre espaço para fluir nosso repertório íntimo, fazendo emergir novos significados e narrativas. Nas palavras do ilustrador colombiano Samuel Castaño Mesa, “o diálogo entre o silêncio e o mundo é necessário porque ambos existem”. Especialmente no livro ilustrado, silêncios podem ser trampolins para mergulhar em múltiplos sentidos, como na história de Piscina, da sul-coreana JiHyeon Lee, Lá longe, de Carolina Moreyra e Odilon Moraes, e outros tantos.

Repleto de silêncios que abrem diversos caminhos de leitura, a obra Piscina e a autora JiHyeon Lee receberam diversos títulos internacionalmente, como por exemplo o prêmio de Melhor Ilustradora Estrangeira de Livro Infantil, em 2019, no Festival Internacional de Banda Desenhada de Portugal

Como os silêncios ocupam as histórias

Os silêncios aparecem no vazio: em tudo o que não é dito ou mostrado. Não se trata apenas da ausência de palavras, mas dos contornos criados pelas lacunas, pelas pontas soltas que dão margem à nossa própria interpretação. O silêncio abre espaço para a criação de significados. Deduzimos a partir do que é mostrado - mas também criamos uma ideia da totalidade, preenchendo os buracos e edificando cenários a partir de nossas próprias referências, fantasias e pensamentos. É como um gestalt literário.

A elipse, uma figura de linguagem que omite palavras e expressões, fazendo com que mesmo assim o termo faltante seja subentendido pelo contexto é um bom exemplo de como criar silêncios. Nas narrativas mais surpreendentes, autores mostram sua engenhosidade ao subverterem nossas expectativas - nos conduzem por um caminho, para logo nos mostrarem que seguíamos na direção errada.

Na experiência com a linguagem de forma geral, e aqui particularmente nos livros ilustrados, elaborar os mecanismos do silêncio passa por perceber que a ausência de discurso não é sinônimo de ausência de significados. Na literatura ilustrada, enquanto palavra e imagem se articulam para contar uma história, há um espaço vazio entre eles. É por essa brecha, tantas vezes silenciosa, que o leitor assume uma cocriação da narrativa. Por esses e outros motivos, o silêncio é ao mesmo tempo componente concreto e abstrato de uma obra literária ilustrada, e é parte fundamental do pacto que se forma entre artista, obra e leitor.

No Brasil, Renato Moriconi, Odilon Moraes, Angela Lago, Carolina Moreyra, André Neves, Roger Mello, dentre outros, são frequentemente lembrados como vozes de autoria que se valem de silêncios narrativos – portanto, do trabalho ativo do leitor – para contar suas histórias. Dentre elas, estão publicações recentes como Os invisíveis, de Tino Freitas e Odilon Moraes, e clássicos contemporâneos como Bárbaro. O silêncio é personagem também em obras de autores como Jordan Scott e Sidney Smith, autores de Eu falo como um rio, e Eu fico em silêncio, de David Ouimet.

O silêncio como possibilidade de devir narrativo aparece também em livros para bebês, como na dupla Noite vira dia e O livro laranja , de Richard McGuire, Tá chegando? e Achou?, de Aline Abreu, e nos famosos contos acumulativos de Susanne Strasser, como Baleia na banheira (Companhia das Letrinhas, 2020).

O silêncio do mergulho

No livro-imagem Piscina, publicado no Brasil pela Companhia das Letrinhas com tradução da ARA Cultural, grupo de tradução e pesquisa em literatura coreana da USP, a água é a metáfora escolhida pela premiada autora sul-coreana JiHyeon Lee para dar vazão a uma experiência potente: o silêncio que nos toma quando mergulhamos. Quando os ruídos do exterior cessam, quais histórias podem acontecer? Do encontro entre duas crianças em uma piscina, abre-se um universo de silêncios compartilhados, que testemunham as aventuras mais impensáveis - como a aparição de uma enorme baleia branca! A água, meio e condutor da narrativa, pode ser lida como um catalisador de histórias que não aconteceriam em outro cenário, talvez até como personagem.

Em entrevista ao blog do projeto Picture Makers, a autora conta que a inspiração veio justamente de uma observação, em si mesma silenciosa, em uma piscina. “Eu não sabia nadar, mas queria tentar sem boia ou colete salva-vidas. Reuni coragem e me abaixei na água, então tive uma experiência surpreendente. Meu corpo ficou livre na água, e a sensação foi muito agradável. (...) Contrariamente ao lugar em que muitas pessoas se moviam acima da água, aquele era um mundo quieto, pacífico e expansivo”, diz JiHyeon Lee (o texto acima reproduzido foi traduzido pela ARA Cultural).

Já em Lá Longe, mais uma parceria de Odilon Moraes e Carolina Moreyra, que juntos produziram Lá e aqui e Lulu e o Urso, a rotina encurta as distâncias entre os bichos na natureza e um menino na cidade grande. O não-dito abre espaço para imaginarmos mais paralelos entre eles - sejam reais, sejam imaginários - que se estendem para outras searas: o que separa (ou une) o selvagem e o civilizado? O urbano e o natural? Homens e bichos? O protagonismo que está nos animais nos faz pensar: o que realmente é o lá longe?

Em Lá longe, a contemplação onírica da natureza do ponto de vista de um menino cercado de prédios. Nesse conto de visualidade silenciosa, os silêncios são favorecidos pela duração da virada de páginas e pelas frestas entre palavras e imagens

Silenciografias: as narrativas do silêncio

Conversamos com a pesquisadora e professora argentina Cecilia Bajour, que há anos se debruça sobre o silêncio em produções acadêmicas e na literatura teórica. Bajour é autora do livro La orfebrería del silencio (em tradução livre, “A artesania do silêncio”), e se dedica a pensar nas lacunas narrativas construídas nos livros ilustrados. No Brasil, a escritora tem publicado o livro de não ficção Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura (Pulo do Gato, 2012).

Para Cecilia, “a manifestação do não-dito é fundamental na construção das linguagens artísticas. Da elipse total (se é que isso poderia existir em termos absolutos), às infinitas formas de dizer e mostrar calando-se ou escondendo-se, a arte alimenta-se desse resquício substancial”. Não por acaso, a ideia central contida na pesquisa dela é a percepção do silêncio como criação – algo que aparece desde o título do livro. Sob essa perspectiva, o silêncio é tomado como um gesto consciente, fruto de um movimento de lapidação do que a narrativa apresenta, sugere, indica.

Os silêncios favorecem a construção de imaginários diversos, pois as indagações sobre o que não é dito ou mostrado levam a formular hipóteses, fazer conexões entre rastros e pistas, fazer inferências, retroceder em busca de dados, ou seja, procedimentos típicos da leitura como construção de significados. (Cecilia Bajour, professora e pesquisadora)

Mas existe silêncio, de fato, quando as histórias, mesmo sem palavras, gritam tantos sentidos e narrativas? Para Cecilia, os silêncios que tanto contam ganharam um nome próprio: “silenciografias”. O conceito que fundamenta esse neologismo foi desenvolvido no artigo Silenciografias: marcas do não-dito em leituras, textos e mediações (Revista EntreLetras, 2019).

Silenciografias são os silêncios que também são narrativas. São modos de imaginar diferentes escritas naquilo que não é dito. E, segundo a pesquisadora, são também uma valorização do cuidado em falar dos vazios - sempre no plural -, para aproximar o silêncio do leitor, em vez de colocá-lo em um lugar sagrado ou inalcançável. “Que relação tem a imaginação com o não-dito? Existem gêneros mais silenciosos que outros? O que têm em comum as brincadeiras infantis e a retórica do que é mudo ou sugerido em textos artísticos?”, questiona a professora no texto.

Confira a entrevista completa com Cecilia Bajour

No livro La orfebrería del silencio, você trabalha a ideia de que os vazios são uma artesania, uma construção que requer lapidação, ajustes. Esse trabalho é necessariamente consciente por parte do autor? Como é construído um silêncio que "diz" tanto?

Cecilia Bajour: É consciente por parte do autor ou dos autores? (Gostaria de acrescentar à formulação da pergunta os editores que coordenam a direção de arte na formulação da autoria). Sim e não. A consciência de que se trata de um fato estético leva a tomar decisões relacionadas ao que não é dito ou sugerido, por exemplo, diversas formas e graus de elipse ou omissão de informações. Por exemplo, mostrar uma parte em uma página dupla e não o "todo" para depois completar na próxima dupla o que não foi mostrado anteriormente (como ocorre em Zoom, de Istvan Banyai) pode ser uma decisão relacionada à construção gradativa de uma surpresa, maquinário formal que precisa de silêncio para alcançar o efeito desejado. Porém, nos textos artísticos, nem todas essas decisões são conscientes.

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Nos livros ilustrados, o leitor é o interlocutor dessa escolha artística pelas lacunas. Considerando que esse leitor pode ser tanto criança quanto adulto, como esse públicos distintos percebem os silêncios?

As crianças aprendem muito cedo na vida a brincar com o oculto. Esconde-esconde é uma das primeiras brincadeiras que os bebês aprendem quando ainda não aprenderam a falar. Mais tarde, o jogo oral de enigmas propõe o mesmo mecanismo: a ocultação temporária da informação até sua revelação no final. Portanto, a vivência do que não se mostra, do silêncio visual e sonoro, é muito significativa para a percepção dos diferentes graus de elipse na infância.

Ao lerem livros e outros objetos culturais, as crianças tendem a ser muito perspicazes na apreciação do oculto e do silencioso, e vivem isso com um grande espírito lúdico. (Cecilia Bajour, professora e pesquisadora)

No caso dos adultos, a valorização do que não é dito pode ser vivenciada como uma oportunidade de estimular a substituição pessoal de possíveis significados. Silêncios em textos artísticos provocam a atividade participativa de leitores de todas as idades como co-criadores de significado.

Em obras que narram tanto pela palavra quanto pela imagem, como os leitores podem perceber os silêncios quando ambas são altamente narrativas e carregadas de significados?

Trabalhos que se equilibram entre o que se diz e o que não se diz, entre o que se esconde e o que se mostra, estimulam mais a construção de significados do que aqueles que dizem ou mostram mais.

A narrativa não é necessariamente comunicada por meio de explicação ou explicitação visual. Ao contrário, as narrativas mais interessantes e esteticamente ricas são aquelas que sugerem, aquelas que não dão de antemão possíveis significados. (Cecilia Bajour, professora e pesquisadora)

Quais as contribuições de autores considerados mestres da narrativa repleta de silêncios para a apreensão da literatura como uma arte de ditos e não ditos?

Autores como Anthony Browne (Vozes no parque) ou a dupla criativa entre Holzwarth e Erlbruch (Da pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na cabeça dela) são exemplos do lugar valorizado das lacunas silenciosas na construção das ficções que narram por meio do diálogo inteligente entre palavras e imagens. Nos últimos anos, essa busca foi alimentada por muitas explorações belas e poderosas a esse respeito. Há autores que têm grande respeito estético pelas possibilidades interpretativas dos leitores sem sobrecarregar suas propostas com esclarecimentos desnecessários.

No livro-imagem Zoom (Brinque-Book, 2022), a narrativa pode ser lida de trás para frente e vice-versa. As ilustrações que aproximam e depois afastam as cenas mostram que nada é como parecer, compondo silêncios narrativos

A imaginação do leitor é favorecida pelos silêncios? Como o vazio pode impactar na capacidade leitora?

Os silêncios favorecem a construção de imaginários diversos, pois as indagações sobre o que não é dito ou mostrado levam a formular hipóteses, fazer conexões entre rastros e pistas, fazer inferências, retroceder em busca de dados, ou seja, procedimentos típicos da leitura como construção de significados.

A lógica da imaginação é semelhante à da metáfora: a relação entre presença e ausência estimula a atividade imaginativa. (Cecilia Bajour, professora e pesquisadora)

Em um mundo de tantos discursos, é possível o verdadeiro silêncio?

Com efeito, estamos em um mundo atravessado por vários ruídos que bloqueiam a possibilidade de escutar e prestar atenção ao que é valioso, que enriquece a nossa vida e a nossa alma. Os silêncios (penso sempre no plural) podem ser uma construção coletiva, e os mediadores culturais têm aí uma grande responsabilidade.

Qual seria o papel do silêncio na vida das infâncias (e dos leitores) de hoje?

Aprender como o silêncio é construído nos textos artísticos contribui para a ampliação da imaginação e da escuta das crianças, como leitoras e interlocutoras nos atos de escrita, leitura e fala. Valorizar os diferentes modos de silêncio pode ser uma proposta formativa que ajuda as crianças (e não só) a crescerem como leitores e participantes ativos em conversas sobre vários textos.

O que é silêncio para você?

Costumo falar de silêncios no plural, e não no singular, para evitar uma possível sacralização do silêncio. Em relação a isso, inventei uma palavra que é também uma proposta: “silenciografias”, que implica imaginar diferentes escritas do que não é dito. É possível descrever o indescritível, nomear o inominado e o inominável? É um desafio muito estimulante expandir o pensamento estético e crítico, principalmente quando ele é compartilhado com outras pessoas.

Como acontece em Da pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na cabeça dela, clássico infantil alemão editado no Brasil pela Companhia das Letrinhas em 1994, o silêncio narrativo vem do contraponto entre palavras e ilustrações, com um efeito de humor e suspense.

(Texto de Renata Penzani)

Silenciografias: Cecilia Bajour e as histórias que o silêncio conta