Imaginação x realidade: há limites para o faz de conta?

25/10/2023

Nem sempre os limites entre o real e o imaginário são claros - especialmente na literatura. Às vezes, basta um despretensioso mergulho na piscina para submergir em um universo fantástico, como acontece em Piscina (Companhia das Letrinhas, 2023), de JiHyeon Lee.  Ou um dia como outro qualquer, um domingo comum na casa dos avós, para que um menino e seu cachorro vivenciem aventuras com navios piratas, como acontece em Domingo (Companhia das Letrinhas, 2023), de Marcelo Tolentino. Já em Aqui e aqui (Companhia das Letrinhas, 2023) um grande mistério acende a curiosidade de Caio: como é possíve que ele vá dormir todas as noites em sua própria cama e acorde na casa da vizinha? Um portal? Uma mágica? A cabeça do pequeno vai longe e a imaginação corre solta.

Ilustração de Domingo, de Marcelo Tolentino

Sem sair do quintal do avós, em um domingo comum, um menino e seu cão vivem aventuras em alto mar - ilustração de Domingo, de Marcelo Tolentino

 

Mas, fora dos livros, nem sempre é fácil para as crianças entenderem o que é fato e o que invenção. Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, Fada do dente. Unicórnios, fadas, duendes. Como saber o que é de verdade e o que é apenas criação?

Esse processo de distinção entre realidade e fantasia acontece a partir da elaboração do pensamento abstrato. “Enquanto a criança ainda está em uma fase mais concreta, em que só consegue entender o que vê, o que toca, ela ainda vive uma realidade muito fantasiosa porque de certa forma acredita que o mundo vai ser do jeito que ela imagina”, explica a psicóloga Nanda Perim, do perfil @psimama. Essa fase mais egocêntrica, em que a criança ainda é muito autocentrada, se concentra durante os primeiros sete anos de vida, o chamado primeiro setênio. Ao final desse ciclo, a criança ainda consegue mergulhar na fantasia com facilidade, mas passa a ter ciência de que é uma fantasia, conseguindo diferenciar melhor o que é ficção e o que é realidade.

Também é a partir dos sete anos que a criança se torna mais consciente sobre si mesma e sobre o mundo, entende melhor a importância de suas ações e já adquiriu a capacidade de se colocar no lugar do outro. Não por acaso, esse período coincide com o início do Ensino Fundamental, pois ela se torna madura para a aprendizagem formal. ”É nesse momento que o real se impõe sobre o imaginário”, resume a fonoaudióloga e psicopedagoga Beatriz Nassar Almeida. 

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A imaginação que é própria da infância - e do "nada para fazer"

O fato de crianças não terem claros esses limites entre realidade e ficção faz delas naturalmente criaturas muito mais imaginativas que os adultos - que criam tantar barreiras internas para se deixar levar pelo que não faz sentido. Em Lulu e o Urso (Companhia das Letrinhas, 2018), de Odilon Moraes e Carolina Moreyra, basta que a mãe fique entretida no computador para que a menina Lulu crie um mundo todo dela ao encontrar diferentes objetos nas caixas de mudança. Já em Os vizinhos (Pequena Zahar, 2019), de Einat Tsarfati, ao zanzar pelas escadas do prédio em que mora, uma menina imagina o que - e quem - está por trás de cada porta, em cada andar... Com aquarelas primorosas, No sótão, de Satoshi Kitamura e Hiawyn Oram, mostra o universo de um menino abarrotado de brinquedos - e entediado - que usa a escada do seu carrinho de bombeiros para chegar ao sótão. Lá, o ordinário se transforma em fantástico...

Em Os vizinhos, somos convidados a soltar a imaginação para tentar responder: quem se esconde por trás de cada porta?

 

O que essas histórias têm em comum? Os protagonistas, crianças, encontram espaço para criar seus mundos imaginários a partir do vazio, do ócio, da observação. Cada vez mais pesquisas têm indicado que é quando estão fazendo nada, com o mínimo de interferência dos adultos, que as crianças podem brincar livremente e, assim, exercitarem a imaginação, criando seus próprios universos e narrativas.

É claro que referências são importantes para criar - e esse é um dos motivos pelo qual o contato com os livros desde cedo é tão importante. Para a psicopedagoga Beatriz, os livros acabam abrindo caminhos que vão muito além das histórias contadas.  “Eu trabalho muito com livros. E quando termino uma história, pergunto à criança se ela teria um final diferente e como seria se ela pudesse terminá-la. E é incrível a capacidade que as crianças têm de pensar fora da caixa”, conta. 

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Mas, como alimentar a imaginação sem cair na mentira?

 

“Papai Noel existe?”

“O Coelhinho da Páscoa faz mesmo todos os ovos de chocolate?”

“Fantasmas e bruxas podem ser de verdade?”

 

É comum que as crianças recorram a um adulto de confiança para começarem a discernir o que é real e o que é inventado - e que de certa forma existe, mas só na imaginação. 

A questão é que, em alguns casos, a incerteza sobre o que é realidade e o que é ficção pode fazer com que a criança se sinta confusa - e até enganada. “Quando a criança  fantasia, o adulto pode questionar e mergulhar na fantasia com ela, falando ‘mas será que existe mesmo? Como seria? Onde será que o Papai Noel viveria?’ Mas nunca efetivamente dizer, por exemplo: ‘liguei pro Papai Noel’, ‘vi o Papai Noel’, ‘falei com o Papai Noel’ como se fosse verdade”, explica Nanda. A dica aqui é não podar a fantasia, mas permitir que a criança tire suas próprias conclusões, validando aquilo que é real, para fortalecer a confiança e o vínculo com os adultos.

A quebra da fantasia é inevitável - e positiva dentro do processo de desenvolvimento infantil. Sim, uma hora as crianças vão descobrir que Papai Noel não é de carne e osso, que a Páscoa dá muito lucro para indústria alimentícia e que a figura mais próxima da fada do dente é o dentista. E tentar manter o mito, remando contra a corrente, pode ser prejudicial. Imagine se todas as crianças da turma já sabem que o Papai Noel não é de verdade, menos o seu filho. Ele pode virar motivo de chacota entre os colegas, além de se sentir enganado pela família - e com razão. “Alguns pais acham bonitinho que os seus filhos sejam ingênuos. Porém, isso pode acarretar uma infantilização ou uma reação de descrédito nos pais”, explica Beatriz.

Para Nanda, um ponto crucial é pensar no espaço que a fantasia ganha na vida da criança, assumindo contornos de realidade quando exagerada. Vamos usar de novo o exemplo do Papai Noel. Quando a criança passa o ano inteirinho falando no Bom Velhinho, se comportando de certas maneiras para garantir que vai ganhar presente, ouvindo que os pais estão ligando para ele, que são amigos dele, que vão dizer para o Papai Noel fazer isso ou fazer aquilo… fica difícil separar o que é fato e o que é ficção. Afinal, como a criança pode duvidar dos adultos em que ela deveria confiar? “A partir do momento em que a fantasia ganha peso, intensidade e também é usada de forma manipulativa, a criança pode, sim, se sentir traída e frustrada”, explica a psicóloga.

O alerta é este: a fantasia não deve ser usada para chantagear ou para provocar temor - quem se lembra do homem do saco, que levava as crianças que não obedeciam? No Dia das Bruxas, que está virando moda por aqui, quando a fantasia tende a caminhar para um lado mais sombrio, também é preciso tomar alguns cuidados para não criar medos desnecessários, especialmente para crianças que já têm uma tendência maior a perderem o sono ou se assustarem. Nesses casos é importante deixar claro que nem bruxas, nem monstros ou fantasmas estarão escondidos debaixo da cama ou dentro do armário - o espaço deles está restrito aos livros e filmes.

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O uso dos símbolos para tratar de temas difíceis - só com moderação

Ilustração de No sótão

Em No sótão, o menino encontra uma família de camundongos, uma aranha e outros insetos - mas não há o que temer

 

Dizer que quando alguém morre “vira estrelinha”, por exemplo, não deixa claro que aquela pessoa não vai mais estar presente, não vai mais voltar para a vida da criança.

Por isso,  lançar mão de símbolos para falar de temas difíceis  - como o luto - é um artifício a ser utilizado com cuidado, porque para a criança aquilo é real. “Os símbolos são válidos, mas não excluem a colocação da verdade. Eles apenas suavizam a dor da perda que a criança sente”, explica Beatriz. 

Nanda chama atenção para outro ponto: não é preciso antecipar a abordagem de temas complexos. O ideal é irmos respondendo às demandas que cada criança apresenta: seja sobre guerras,sobre  preconceitos, doenças, morte, sexualidade. “Quando a criança questiona, é porque o raciocínio dela já chegou até ali. E aí, respondemos de uma forma compatível com o nível de compreensão dela e também compatível com a neurocepção, que é a noção de medo dela”, explica a psicóloga.

A principal dica para pais e cuidadores na hora de ajudar as crianças a discernir entre o real e o imaginário é não deixar a fantasia extrapolar a realidade. Quando lemos um livro ou vemos um filme junto com a criança, fruimos da fantasia durante aquela experiência - é algo pontual. “Naquele espaço de tempo, estamos vivendo aquela narrativa, acreditando naquela verdade sem necessariamente ter que trazer isso para a realidade depois”, conclui Nanda. 

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