“Posso ajudar?”: por que incluir as crianças nas tarefas de casa desde cedo

05/03/2024

Um ser humano funcional é capaz de cuidar de si. Isso inclui dar conta da própria casa, de suas roupas, da alimentação e do que mais for necessário para viver em condições adequadas e possíveis. Embora muitos pais desejem que os filhos conquistem essa autonomia, em muitos casos, eles mesmos - às vezes sem querer - desestimulam as tentativas dos pequenos de ajudar. E desencorajam a criança a realizar tarefas aparentemente simples por conta própria - como se servir de comida ou vestir-se sozinha. Os motivos são vários. Porque demora mais. Porque suja o chão. Porque o copo pode quebrar. Porque pode não ficar não bem acabado. Porque nós, adultos, estamos sempre com pressa.

Mas como a criança vai aprender e se tornar um ser autonônomo sem treinar habilidades básicas? 

Ilustração de Bibo no mercado, de Silvana Rando

No mercado, Bibo escolhe a cor da sua própria escova de dentes - para as crianças, ter escolhas é importante

Alguns livros trazem oportunidades para que as crianças participem ativamente da rotina e das tarefas domésticas desde muito cedo. É o caso de Bibo no sítio (Brinque-Book, 2023) ou Bibo no mercado (Brinque-Book, 2023), de Silvana Rando . No primeiro, o simpático coelhinho vai passar uma temporada com os avós e dá conta de várias tarefas no campo, como alimentar as galinhas e colher deliciosas cenouras. No segundo, Bibo ajuda a mãe a encher o carrinho de compras, procurando as frutas (e envolvendo os leitores) e escolhe o que levar. Acaba até quebrando uma garrafa sem querer - acontece!

Outro exemplo é Lelê é pequenininha (Brinque-Book, 2023), de Rafaela Deiab e Tieza Tissi. A protagonista é pequena, sim, mas acompanha sua mãe na feira e passeia com o cãozinho. Cada detalhe da rotina exerce um fascínio na menina, um estímulo que pode ser aproveitado para ensinar muita coisa - inclusive, a compartilhar as atividades domésticas. Como você vai ler mais adiante, a infância já traz esse olhar curioso e a vontade de participar de tudo. 

Lelê é pequenininha

Lelê é pequenininha (Brinque-Book), Rafaela Deiab e Tieza Tissi

 

As tarefas domésticas - e a responsabilidade por cuidar - são de todos

Não é só saber fazer. Envolver as crianças desde cedo nos afazeres de casa cria a percepção de que todos podem - e devem - ajudar da forma que puderem. Distribuir as tarefas, para que não recaiam de maneira desproporcional sobre uma só pessoa, geralmente a mulher, é fundamental para ensinar que o trabalho é responsabilidade de todos. Inclusive, das crianças. Além de desenvolverem autonomia e aprenderem diferentes habilidades, elas adquirem um senso de justiça na divisão igualitária do trabalho - um aprendizado necessário para formar uma geração que não sobrecarregue pessoas de um só gênero. 

A discussão sobre a chamada economia do cuidado é antiga, mas foi escancarada pelo período de distanciamento social, durante a pandemia. E, 2023, virou até tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem. E não é para menos: somente em 2022, cerca de 2,5 milhões de brasileiras não puderam trabalhar para cuidar de familiares, como filhos e pais idosos, entre outros, ou das tarefas domésticas, de acordo com números divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no final de 2023. Distribuir essas responsabilidades não é fácil, mas reconhecer que o problema existe e olhar para ele pode ser um começo. 

LEIA MAIS: O que torna uma mãe a melhor do mundo?


Para Maíra Liguori, diretora da Think Olga, uma organização não-governamental que tem como foco a criação de um impacto positivo na vida das mulheres, por meio da comunicação, falar sobre isso é um passo importante. Entender que se trata de uma questão estruturante do mundo em que vivemos hoje é uma maneira de buscar soluções que vão além dos desafios cotidianos. Isso porque o trabalho invisível de cuidado é um tema que vem sendo debatido no feminismo, especialmente no âmbito acadêmico, há muitas décadas. Trata-se de uma questão central e que representa um dos maiores catalisadores das desigualdades de gênero. "O que sentimos é que agora existe maior apetite das mulheres - e de toda a sociedade - em conversar sobre isso. Desde a pandemia do coronavírus, o trabalho de cuidado pôde ser vivenciado por homens e mulheres dentro de suas casas. Sem nenhuma rede de apoio (escolas, contraturnos, creches, vizinhos, avós, babás ou outras formas de distribuição do cuidado), todas as famílias enfrentaram a impossível conciliação das demandas de cuidado com o trabalho remunerado, entendido como produtivo. A criação e manutenção da vida (ou trabalho reprodutivo) cobrou seu preço e despertou um intenso debate público sobre o tema. Houve o entendimento que se trata de uma questão social e coletiva”, aponta.

Bibo no sítio

Bibo no sítio (Brinque-Book), Silvana Rando

A divisão injusta, porém, data de muito antes, como lembra a psicóloga Lynn Chemas, especialista em perspectiva de gênero, de Salvador (BA). “Historicamente, falando no Brasil, há apenas algumas décadas, as mulheres eram realmente vistas como cuidadoras do lar, da família, das pessoas, dos idosos, dos filhos, dos maridos”, aponta. Agora, segundo ela, vivemos um momento de transição. “Temos que entender que vai levar um tempo para que as mudanças se estabeleçam, mas estamos colhendo frutos desse feminismo, quando dissemos que não queríamos ser só as cuidadoras, não queríamos depender dos homens ou ser propriedade deles”, afirma.

O problema é que houve um desequilíbrio nessa batalha, porque os homens não caminharam junto das mulheres. “Saímos, fomos trabalhar, mas os homens não acompanharam esse movimento e estão apenas colhendo os benefícios. As mulheres ficaram cada vez mais independentes, passaram a dar conta de muitas coisas, ocupar espaços que antes eram só deles, mas eles não fizeram o movimento inverso, para equilibrar, que seria o de ocupar um espaço que era só das mulheres antes”, explica. Com as conquistas, as mulheres ficaram com uma dupla carga e eles não abriram mão de nada.  


Dividir as responsabilidades: mais uma função feminina

Além de terem conquistado a independência financeira, o direito de votar, o mercado do trabalho, sem abrir mão dos cuidados - com a casa, com os filhos, com os idosos e até com os homens - as mulheres ainda precisam se mobilizar para que a balança fique mais equilibrada. “Infelizmente, ainda estamos em um estágio de conscientização em que, sim, nós, mulheres, teremos de fazer este esforço de chamar os homens para a responsabilidade, se quisermos colher frutos neste campo”, afirma Maíra. “No entanto, cada família tem sua própria dinâmica, sua própria cultura e cabe somente a elas encontrarem um caminho para esta divisão. Elencar minuciosamente as tarefas e responsabilidades e dividi-las de maneira justa entre todos os moradores de uma casa é um bom começo. Conversar com seu parceiro ou parceira sobre a sua sobrecarga também pode ter um efeito importante”, sugere.

O primeiro passo, aponta, é o entendimento de que é um problema que só se resolve com a participação de todos. “Estamos falando de ações no âmbito do Estado, do setor privado, do indivíduo/família e da comunidade”, diz. E como começar esse trabalho de formiguinha, na prática? “Em termos de estratégias, trabalhamos em torno dos ‘4 R’s’”, destaca Maíra. São eles: 


RECONHECER - Desinvisinvizibilizar e reconhecer a importância do trabalho de cuidado


REDUZIR - Mapear a falta de recursos e prover soluções para o cuidado (água encanada, sistemas de transporte mais eficientes, lavanderias coletivas, etc)


REDISTRIBUIR - Implicar todas as pessoas na responsabilidade de cuidado, e não apenas as mulheres


REMUNERAR - Criar políticas de remuneração adequadas para as profissionais do cuidado, que, em sua maioria, são sub-remuneradas (enfermeiras trabalhadoras domésticas, cuidadoras, babás, professoras, etc)

Reconhecimento e redistribuição: dois ‘erres’ para levar para casa

Alguns desses passos envolvem o poder público e diferentes setores da sociedade - o que não deixa de ser também responsabilidade dos indivíduos. Outros, porém, são executáveis diariamente, dentro do âmbito pessoal e familiar, ou seja, dentro da sua casa, com quem você convive. O reconhecimento é um deles.

“Muitas vezes, voltamos para uma casa que está limpa e organizada, mas não nos damos o trabalho de entender quanto tempo e quanto esforço isso demandou”, aponta a especialista em desenvolvimento infantil e consultora parental Sanda Surariu, autora da página Disciplina sem Drama. Isso passa por conversar sobre o assunto dentro de casa e não apenas dividir as tarefas entre todos, mas também oferecer um modelo, ou seja, um contexto em que as crianças vão crescer vendo que cada pessoa realiza um pouco, igualitariamente. “Quais são os exemplos que a gente entrega? Qual o nível de envolvimento do homem”?, questiona. 

LEIA MAIS: Traci N. Todd: 'Queria que as crianças soubessem que há diferentes formas de resistir'

Ilustração de Lelê é Pequenininha

Lelê vai à escola com a vovó e carrega sua lancheira

Faz parte ter conversas, ainda que desconfortáveis, para redividir o trabalho em casa. A psicóloga Lynn lembra a importância de exigir, nos casos em que isso não é uma realidade - e são muitos! - que os homens sejam funcionais. “Os homens precisam entender que eles têm papéis na divisão das tarefas domésticas e de cuidados com familiares”, diz ela. 

Por incrível que pareça, em mais ocasiões do que se imagina, as próprias mulheres também acabam reproduzindo o machismo, muitas vezes se apoiando no controle. “Querer que uma tarefa seja realizada apenas do seu jeito é uma forma de manter a divisão injusta do trabalho invisível”, ressalta Maíra, do Think Olga.

Sim, ainda há homens completamente - e convenientemente - incapazes de realizar uma tarefa de cuidado. O que faz com que o famoso ‘Deixa que eu faço, você não sabe fazer’ seja justificado. Mas para Maíra,  as mulheres precisarão deixar alguns pratinhos caírem se quiserem se desafogar de tantas responsabilidades. "No começo, pode ser que não fique tão limpo ou tão saboroso. Mas é preciso tempo e paciência; não há outro caminho. Se quisermos um mundo mais justo, vamos precisar abrir mão de algumas coisas para, mais adiante, aproveitar os resultados”, acrescenta. “Quebrar essas crenças, incutidas em todos nós desde tão cedo, não é uma tarefa fácil e envolve desconforto e insegurança. Porém, as mulheres que conseguirem fazer isso estarão beneficiando a si mesmas e às outras que virão depois dela”, analisa. “Falo como estudiosa, mas também como mãe de dois meninos, enfrentando os desafios da criação feminista no meu dia a dia. O poder de educar um menino com consciência de seus privilégios é o poder de construir um mundo mais justo”, completa. 

A mudança passa pelas crianças

Transformar a própria maneira de enxergar o mundo e o trabalho de cuidado, chamar os homens para a responsabilidade, para dividir a carga e dar o exemplo, são passos importantes. Mas, talvez, a verdadeira mudança possa ser vista com mais clareza só nas gerações futuras. E educar as crianças para um mundo mais igualitário, com um compartilhamento mais justo de tarefas, é um pilar essencial. “As mulheres da geração atual estão criando filhos muito mais autossuficientes, com noções melhores da divisão de papéis do que as gerações anteriores. Prevejo que vamos colher esses frutos de gêneros mais equiparados daqui a umas duas décadas”, avalia Lynn. 

Sanda, consultora parental, enxerga a mudança acontecendo diante de seus olhos, no consultório. “Os pais da geração millennial (nascidos entre 1980 e 1995) compõem a primeira geração de pais presentes, que conhecem os filhos, sabem a cor preferida, sabem qual é o brinquedo preferido, quais são os amiguinhos da escola, que conseguem passar informações básicas sobre a criança”, lembra. “Então, acho que com essas novas gerações, o envolvimento vai chegando mais perto de ser igual. Quando comecei a atender pais, recebia principalmente mulheres. Hoje, 40% dos meus atendimentos são feitos com o casal. Inclusive, recebi pais que, sozinhos, procuraram ajuda para a família, coisa que, antes, nem imaginava. Era sempre a mãe”, relata.  “Claro que ainda estamos longe de generalizar isso como regra, mas acredito que essa mudança é também uma responsabilidade individual, que, muitas vezes, as famílias não implementam”, acrescenta. 

Bibo vai ao mercado (Brinque-Book), Silvana Rando

Educar meninos e meninas para desenvolver essas habilidades, além da noção de que todo o peso pode ser compartilhado, cuidando deles mesmos, do ambiente em que vivem, estimulando-os a terem vontade de realizar tarefas para si e para os outros, é essencial não só para perseguir essa divisão mais igualitária e equilibrada, mas para formar seres humanos autônomos, completos e capazes. Contudo, isso passa por uma fase de aprendizado, de tentativas e erros. “Muitas vezes, privamos a criança disso também com o ‘Deixa que eu faço’ ou com a ideia de que a criança é muito pequena para fazer aquilo", diz Sanda.

Ela lembra que independentemente do gênero, de ser menino ou menina, as crianças nascem curiosas, querem se envolver nas atividades domésticas, têm esse ímpeto de integrar e de participar dos afazeres. “Se a gente não deixa porque eles são pequenos ou porque não fazem direito, com o passar do tempo, essa vontade se torna em uma indiferença”, ensina.

Vale lembrar também que pos pequenos não sentem esse peso da rotina de manter uma casa em ordem. “A criança não nasce achando que lavar louça ou dobrar roupas são tarefas chatas. Na verdade, é muito pelo contrário. Eles ficam fascinados por tudo, de forma indiscriminada. Muitas vezes, nós, os adultos, somos a razão pela qual começam a mudar de ideia, quando falamos ‘que saco ter de lavar as panelas depois de cozinhar’ ou ‘odeio passar aspirador’. Transmitimos essas mensagem até pelo nosso comportamento não verbal”, diz ela. Mas tudo isso pode ser mudado - claro, com a redistribuição das tarefas. Afinal, fica muito difícil fazer tudo sorrindo e feliz, quando só uma pessa é encarregada de tudo. Além disso, dá para tornar as obrigações mais leves, colocando uma música enquanto passa o aspirador, contando uma história ou cantando, enquanto lava a louça. Com as crianças, dá até incluir a brincadeira - como fazer uma gincana para ver quem consegue guardar os brinquedos no lugar certo mais rápido.

Por isso, por mais que exija paciência e um pouco mais de tempo, é importante envolver tanto meninas como meninos no cuidado da casa. Arrumar e tirar a mesa, lavar os pratos, carregar a máquina de lavar louça, estender roupa, varrer a casa são habilidades básicas da vida autônoma."Tudo isso é importante para a criança se tornar confiante”, afirma Sanda. Talvez seu filho seja capaz de fazer mais coisas do que você imagina - e tem potencial de ir aprendendo sempre mais.

LEIA MAIS: Precisamos falar sobre branquitude com as crianças

Essa vontade de saber e de executar as atividades é um estímulo à autonomia e faz com que as crianças se sintam parte importante do todo (seja em casa, na escola, no prédio, no bairro…) ao realizar grandes e pequenas tarefas. “Com consciência e um olhar atento, meninos e meninas podem assumir responsabilidades de cuidado adequadas à idade e desenvolver o senso coletivo que pode se expandir não apenas ao cuidado de si próprio ou dos seus, mas também de seu entorno, sua comunidade e até da própria natureza”, diz Maíra. “Esse é o principal papel da educação: dar autonomia para que um indivíduo saiba gerir a própria vida e possa entender e operar no mundo em que vive”, ressalta. 

O que as crianças podem fazer, na prática?

Que tal começar agora mesmo a dividir as responsabilidades da casa com os pequenos? Aqui, Sanda lista algumas tarefas que as crianças podem assumir, por idade. desenvolvendo a coordenação motora, a agilidade, a concentração e, o mais importante, o sentimento de ser uma engrenagem importante na família:

Crianças de 2 a 3 anos

  • Guardar os brinquedos
  • Encher o pote de ração do pet
  • Limpar poeira
  • Empilhar livros e revistas
  • Limpar respingos na mesa
  • Colocar roupas no cesto 


Crianças de 4 a 5 anos

  • Qualquer uma das tarefas anteriores +
  • Arrumar a própria cama
  • Pegar a correspondência
  • Limpar a mesa
  • Arrancar ervas daninhas (caso vocês tenham um jardim)
  • Regar as plantas
  • Lavar utensílios de plástico na pia
  • Usar um aspirador pequeno para limpar migalhas
  • Esvaziar o lixo


Crianças de 6 a 7 anos

  • Qualquer uma das tarefas anteriores +
  • Separar as roupas para lavar 
  • Arrumar a mesa para refeição
  • Varrer o chão
  • Manter o quarto arrumado
  • Ajudar a montar e embalar o próprio lanche

Crianças de 8 a 9 anos

  • Qualquer uma das tarefas anteriores +
  • Colocar a louça na máquina, se vocês tiverem uma
  • Ajudar a guardar as compras ao chegar do mercado mercado
  • Usar o aspirador de pó
  • Ajudar a fazer o jantar
  • Preparar o próprio lanche
  • Limpar a mesa após as refeições
  • Fazer o próprio café da manhã
  • Descascar vegetais
  • Cozinhar alimentos simples, como preparar torradas
  • Usar o esfregão
  • Levar o animal para passear


Crianças a partir de 10 anos

  • Qualquer uma das tarefas anteriores +
  • Guardar a louça
  • Dobrar a roupa lavada
  • Limpar o banheiro
  • Ajudar à lavar o carro
  • Cozinhar uma refeição simples com supervisão
  • Lavar roupa
  • Limpar a cozinha
  • Trocar a roupa de cama
  • Ajudar a cuidar de crianças menores (com adultos em casa)

 

 

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog