10 autoras contam quando ouviram a palavra feminismo

23/03/2021

Você deseja que mulheres e homens tenham direito a salários equiparados quando exercem a mesma função, aos mesmos direitos trabalhistas e a condições igualitárias de vida social e familiar? Você quer um futuro mais justo para as crianças, independentemente se são meninas ou meninos? Você valoriza o direito das mulheres ao voto, a emitir opiniões onde quer que estejam, a exercer os mais variados cargos em qualquer profissão, e também de abdicar de ter uma carreira formal, se assim o desejarem?

 

Ilustração do livro Mulheres na luta (Editora Seguinte) 

Se sua resposta foi “sim” a uma dessas perguntas, talvez você seja feminista, e apenas não utilize esse termo. Algumas pessoas não têm exatamente um momento para apontar sobre quando se tornaram feministas, porque muitas vezes já exerciam os princípios da igualdade de oportunidade entre os gêneros desde sempre. Ser feminista não precisa ser uma tomada de decisão em um momento específico da vida, às vezes, é o modo como se leva a própria vida. Mas é importante pensar sobre essa trajetória.

Foi por isso que, neste Mês da Mulher, convidamos dez autoras da Companhia das Letras para relatar qual foi a primeira vez que ouviram a palavra “feminismo”, o contexto e como se sentiram. Djamila Ribeiro, Janaina Tokitaka, Mariana Massarani, Heloisa Prieto, Aline Abreu, Ionit Zilberman, Sonia Rosa, Beth Cardoso, Natália Calamari e Katia Canton nos contam um pouco sobre suas experiências. São relatos intimistas e afetivos que nos ajudam a refletir que “ser feminista” é um desejo muito mais comum a todas e todos do que se pode imaginar.

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Feminismo como um jeito de mediar o mundo

“Não é necessário dizer ‘sou feminista’ para ser uma. Se as pessoas olharem pras suas vidas, talvez elas já sejam, e tudo bem não usar a palavra” , afirmou Ligia Moreiras, do Cientista que Virou Mãe, durante o bate-papo de lançamento da edição infantojuvenil do livro Sejamos todos feministas, de autoria da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, com ilustrações da artista baiana Aju Paraguassu. 

 

Com mediação de Ligia, o evento, que aconteceu na última quarta-feira, 17, recebeu a jornalista e pesquisadora Maitê Freitas, que assina a introdução e o posfácio do livro, a apresentadora e faxineira Veronica Oliveira, do Faxina Boa, e o educador parental Thiago Queiroz, mais conhecido como Paizinho, Vírgula

 “O feminismo é um jeito possível de mediar o mundo”, diz Maitê.  “Eu espero que minha filha não carregue a responsabilidade de transformar o mundo. Eu espero, isso sim, que o mundo se transforme enquanto ela cresce”, defende ela.

 

Ser feminista não é palavrão

Foi o livro de Chimamanda que serviu de inspiração para a ação com as autoras. Nas primeiras linhas de Sejamos todos feministas, a escritora relata que foi chamada de “feminista” pela primeira vez quando tinha 14 anos, em uma conversa com o melhor amigo. Mesmo tendo saído da boca de uma pessoa que a amava e respeitava, o adjetivo surgiu como uma ofensa. 

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Lançamento mostra que ser feminista é essencial
para uma sociedade mais justa e feliz. Leia mais.

Por que, afinal, algumas pessoas têm receio ou aversão ao termo? É a partir dessa reflexão que a autora constrói a narrativa, repassando suas vivências ao longo de sua formação como mulher, até chegar à conclusão que condensa a intenção do livro: ampliar e acolher uma questão que diz respeito a todos que vivem em sociedade. “Nós evoluímos, mas nossas ideias de gênero ainda deixam a desejar”, defende Chimamanda.

Confira abaixo o relato de cada autora, e sinta-se convidada e convidado a refletir sobre sua própria história com essa palavra. De que forma ela foi utilizada, com quais intenções? Em contexto de ofensa ou de acolhimento? Vamos construir juntos um mundo mais justo para existirmos coletivamente em igualdade.

 

Qual foi a primeira vez que você ouviu falar em feminismo?

 

1) Djamila Ribeiro

Autora dos livros: Quem tem medo do feminismo negro e Pequeno manual anti-racista

“A primeira vez que ouvi a palavra feminismo foi quando trabalhei na Casa de Cultura da Mulher Negra, uma organização feminista negra em Santos (SP).  A organização oferecia atendimento jurídico e psicológico para mulheres vítimas de violência doméstica, além de manter uma ampla biblioteca. Foi um renascimento me enxergar e entender o mundo a partir daquelas mulheres.”

Um ensaio autobiográfico e uma seleção de artigos
urgentes foram compilados neste livro. Leia +.

2) Katia Canton

Autora dos livros: A cozinha encantada dos contos de fadas e Fabriqueta abecedário

“Meu contato com o feminismo foi através dos contos de fadas e do estranhamento que eu sentia em relação a eles. Fui uma criança muito tímida e passava as tardes, de pijama, no apartamento de uma tia-avó, que morava no mesmo prédio. Ela era uma grande contadora de histórias e entendia tudo sobre histórias de princesas.  

Todo santo dia, eu descia as escadas e ia até a casa das tias e passava as tardes sonhando com as descrições que tia Cecília me dava ao falar de Cinderelas, Brancas de Neve, Belas Adormecidas. Ao mesmo tempo em que aquelas histórias me encantavam, também me produziam uma dor. Somente muitos anos depois fui entender de onde vinha tamanho mal-estar. 

Por que é que essas mulheres tinham que ser lindas, delicadas, passivas? Por que a ‘felicidade para sempre’ vinha apenas no momento em que encontravam príncipes que as salvavam ao se casar com elas? Por que tinham que ser princesas para serem dignas de um destino tão feliz? 

Essas interrogações vinham junto com minha imagem refletida no espelho. A menina nerd e baixinha, devoradora de livros, de óculos de aro azul não se parecia em nada com a descrição daquelas heroínas. Então, o que me esperaria? Qual o destino possível para um feminino que não se encaixava naqueles contos? 

Na adolescência, li o livro Complexo de Cinderela, de Colette Dowling, um hit dos anos 1980 que fala sobre como as próprias mulheres se sabotam na construção de uma vida mais livre e independente, constantemente procurando príncipes para salvá-las. Aquela discussão me interessou muito. 

Em família, tenho exemplos de mulheres fortíssimas. Zilda, minha avó materna, que foi minha madrinha e um grande amor, era filha de imigrantes italianos, que sequer davam às mulheres uma condição de alfabetização. Minha avó passou a adolescência escondida num quarto de empregados, aprendendo a ler sozinha. E virou poeta.

Minha mãe, Marisa, resolveu fazer faculdade depois que as duas filhas tinham desmamado. Estudou turismo e se tornou uma referência em sua área de trabalho. Eu, da minha parte, construí um caminho profissional pelo qual fui sempre muito apaixonada: o jornalismo. Segui a carreira acadêmica, escolhendo os contos de fadas como tema de pesquisa. Descobri no processo que havia modos muito interessantes de recontar essas histórias clássicas, particularmente na poética feminista de artistas contemporâneas, como Pina Bausch, Maguy Marin, Paula Rego e muitas outras. E publiquei o livro que no Brasil foi intitulado E o Príncipe Dançou (editora Ática). Quem me salvou, finalmente, fui eu mesma.”

 

3) Janaina Tokitaka

Autora dos livros: ABCDElas e Vovó veio do Japão

“Eu ainda era criança quando ouvi a palavra feminismo pela primeira vez - devia ter sete ou oito anos de idade. Perguntei porque as meninas não podiam jogar futebol junto com os meninos e meu professor de educação física tirou sarro, dizendo algo como: ‘Ih, ela é feminista, cuidado!’. Como muitas piadinhas machistas, a resposta do meu professor escondia desconforto e ignorância atrás da risadinha. 

Meu feminismo hoje em dia é o mais pragmático, acessível e pé no chão possível. É o feminismo que luta por mais direitos para as mães periféricas, divisão igualitária das tarefas domésticas do dia a dia, igualdade salarial nos projetos dos quais participo, e por aí vai. Afinal, aproveitando o assunto lá da minha primeira pergunta na aula de educação física, por que mesmo a Marta ganha menos do que o Neymar?”

Conheça a vida de mulheres pioneiras em diferentes
áreas neste livro ilustrado e empoderador. Leia +.

 

4) Heloisa Prieto 

Autora dos livros: O estranho caso da massinha fedorenta e O circo do amanhã

“'Sufragistas!' Este foi o primeiro termo que ouvi, por volta dos dez anos, referindo-se aos direitos das mulheres. A conversa entre minha avó, Leonor, minhas tias Marina, Marieta e minha mãe, Valdeti, girava em torno de política. Como sempre acontecia, todas falavam muito e ao mesmo tempo, mas a palavra ficou gravada e, mais tarde, ao descobrir que se referia à defesa do voto feminino, fiquei surpresa. ‘Como assim? Antes as mulheres não podiam votar?’

Aprendi então que o movimento sufragista, que minha avó Leonor citava com admiração, exigia a extensão dos votos a todos, sem distinção. Independência, elegância e ousadia eram valores defendidos por ela, estilista, dona de uma boutique. Já minha mãe, que se definia como uma feliz dona de casa da década de 1950, apreciava os cuidados com a decoração, os filhos e a culinária. Dois modos de vida tão diferenciados permitiram que eu pudesse ser livre para escolher o meu."

 

5) Beth Cardoso

Autora do livro: Todo mundo é misturado

“O feminismo tem duas entradas em minha vida. Uma teórica e uma prática. A prática se deu convivendo com as mulheres da minha família. Muitas delas eram negras, todas pobres, algumas mães solteiras, muitas lutando pela sobrevivência em relacionamentos abusivos, todas elas trabalhadoras (diaristas, costureiras, cabeleireiras).

Os anos 1970 não foram fáceis, quem esteve lá sabe. Pois bem, essas mulheres me mostraram o feminismo na prática: não aceitavam a situação e lutavam cotidianamente por sua independência. Isso me marcou e me ensinou muito sobre o lugar desprestigiado e desvalorizado destinado à mulher. Observando e ouvindo, fui traçando minhas primeiras ideias ‘feministas’. 

A entrada teórica se deu cursando o magistério, que iniciei com dezesseis anos. No curso, ouvi pela primeira vez a palavra ‘feminismo’. Meu interesse foi instantâneo e fiz minha primeira leitura do Primeiro Sexo, de Simone de Beauvoir. Essa junção da experiência vivida na infância com as leituras consecutivas na adolescência marcou muito minhas escolhas pessoais e profissionais. Tanto que meu mestrado é sobre a imprensa feminista no Brasil, meu doutorado é sobre as personagens femininas na prosa de Lúcio Cardoso e, em todos os meus livros de ficção, a personagem principal é uma mulher. 

Se fosse para resumir o que ficou de todos esses anos de feminismo na minha vida é que a luta da mulher por seu espaço justo na sociedade, na família e no trabalho é constante e deve ser de todos, pois quanto mais as mulheres se empoderam, mais a sociedade se desenvolve com justiça.”

 

6) Mariana Massarani

Ilustradora dos livros: Enreduana e Inês

“A primeira palavra que ouvi não foi ‘feminista’, e sim ‘falocrata’. Nasci em 1963 e a minha mãe lia a revista Elle francesa nos anos 1970 – na época, era uma publicação bem ‘avançada’. Essa palavra vinha de lá. Eu não entendia completamente o significado, mas sabia que coisa boa não era. Meu olho arregalava quando escutava. Ainda não existia o dicionário Aurélio, ele só saiu em 1975 e, na edição de 1986 que tenho em casa, não tem esse verbete. No Houaiss de 2003, sim!

Essa minha mãe era feminista e eu não sabia. Dizia que o bacana era estudar, ganhar nosso próprio dinheiro e decidir nossa vida. Ela dirigia e meu pai, não. O dinheiro também era ela quem administrava. A Edna se formou em engenharia química junto com meu pai. Ele virou professor universitário e ela, depois de um tempo tendo quatro filhos, começou a trabalhar como tradutora de patentes, em casa. O casamento só acabou quando meu pai caiu duro com quase 70 anos.

Na minha adolescência, já gostando muito de ilustração, conheci uma coleção italiana de livros feministas para crianças, Dalla parte delle bambine. Os enredos da Adela Turim e da Nella Bosnia são bem bolados, inteligentes, e todas as imagens, bem bacanas. O logotipo da coleção é uma menina pequena segurando o símbolo do feminismo. Foi assim que conheci a palavra ‘feminismo’.”

Capa do livro Enreduana, de Roger Mello

Uma história em verso sobre Enreduana,
considerada a primeira escritora do mundo. Leia +.

 

7) Aline Abreu

Autora do livro: Achou?

“Quando eu tinha uns oito ou nove anos, ouvi um diálogo entre minha mãe e uma senhora de quem eu gostava muito. Elas falaram sobre queimar sutiãs nos anos 1970. Lembro de ter perguntado sobre isso, mais tarde, para minha mãe. Ela explicou um pouco o que foi esse momento, mas não falávamos muito sobre feminismo em casa. 

Acho que eu já era feminista antes de ter consciência, mas ainda com muita coisa de machismo dentro de mim. E justamente por perceber como é nociva toda essa carga de patriarcado que nos engoliu, acho fundamental que a gente eduque crianças feministas. Todo mundo é prejudicado [pelo machismo], isso já está muito claro: as meninas, os meninos. Acho fundamental [o feminismo] para que a gente tenha uma sociedade melhor.”

 

8) Sonia Rosa

Autora do livro: Os tesouros de Monifa

“Minha mãe sempre me dizia para ter como meta de vida os estudos e a conquista de minha independência financeira, para não depender nunca de homem nenhum. Com narrativas desse tipo, ela me dava aulas sobre ‘feminismo’, mas sem nomear.

Quando menina, eu assistia ao protagonismo das mulheres do meu entorno. Não se falava a palavra ‘feminismo’, mas muitas das minhas vizinhas conduziam as suas vidas sozinhas. Trabalhavam, cuidavam dos filhos e dirigiam com sabedoria as suas casas e vidas. Eram respeitadas e referendadas em minha comunidade como grandes mulheres.

Mas a palavra ‘feminismo’ só entrou mesmo no meu radar, com todo o seu sentido, no episódio marcante do ano de 1971, na praia de Ipanema. Eu tinha doze anos. A famosa atriz Leila Diniz mostrava a sua gravidez adiantada com ousadia e alegria. Foi considerado ‘um escândalo’. No entanto, ela estava, com aquele gesto, libertando todas as mulheres do tabu da exposição do ‘barrigão’ para pegar sol. Polêmicas, debates e entrevistas sobre o tema tomaram as redes de televisão e as revistas da época. Desde então, as mulheres grávidas puderam exibir com orgulho e sem vergonha as suas barrigas nas praias, nas ruas e em todos os lugares que desejarem e acharem conveniente. Grande conquista.”

A história do barrigão de Leila Diniz é contada em
um destes perfis sobre mulheres pioneiras. Leia +.

 

9) Ionit Zilberman

Ilustradora dos livros: Hocus Pocus e Canarinho, cachorrão e a tigela de ração

“Não me lembro exatamente como ou quando ouvi falar do feminismo pela primeira vez. Mas lembro bem de uma amiga, mais velha que eu, me falar sobre o machismo e eu dizer que não me sentia oprimida por ser mulher. Pensando nisso hoje, entendo que o machismo está tão embrenhando (não consigo pensar em outra palavra melhor) na nossa sociedade – assim como o racismo e outros tantos preconceitos – que, às vezes, é difícil percebê-lo. No entanto, uma vez visto, conseguimos enxergar suas raízes.

Em 2017, fui com uma amiga à Marcha do 8M, a marcha das mulheres. Foi uma das experiências mais fortes e bonitas que já vivi. Acho que nunca tinha estado com tantas mulheres juntas. A gente andou do MASP ao Teatro Municipal, cantando. Ali, senti uma sensação de pertencimento muito rara, muito especial. O feminismo pode estar no cotidiano, nas escolhas que fazemos diariamente, no quanto respondemos ou não àquilo que se espera de nós e da coragem que temos para assumir nossos posicionamentos e viver a vida que queremos viver, não a vida que outros querem que vivamos."


10) Natália Calamari

Ilustradora do livro: Era uma vez 20

“Eu provavelmente ouvi a palavra ‘feminismo’ de modo pejorativo várias vezes quando menina, mas apenas me lembro da ocasião quando me foi dita por uma feminista, durante a adolescência. Era uma amiga, escritora, que passava os dias on-line escrevendo sobre o assunto, numa época em que a conexão de internet não era muito acessível e ainda um tanto misteriosa para mim. A impressão que tive era de ser um tema exclusivo de algum grupo secreto, sem relação direta comigo, e que era preciso saber de muitas coisas antes de poder falar sobre o assunto. 

Hoje, entendo que trabalhar as desigualdades de gênero é um processo universal e educacional. Envolve perceber as contradições em atos já cristalizados pelo nosso comportamento e transformá-los, com o único fim de sermos pessoas mais felizes, como bem resume Chimamanda. Seu livro agora poderá iluminar o caminho de meninas e meninos que entenderão o tema de forma simples, sem mistérios ou preconceito.”

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