Muitas histórias parecem previsíveis. É como naqueles filmes exibidos à exaustão na televisão aberta: se você assistir por menos de cinco minutos já sabe com quem a mocinha vai ficar no final e saca quem é o vilão - que acaba mal. Não é preciso ir até o fim para saber como a história vai acabar. Mas e quando você acha que já entendeu tudo e a narrativa tem uma grande reviravolta? Nada era como você pensou que fosse. O mocinho na verdade é o bandido. Ou a mocinha na verdade é uma ogra - soa familiar? Ou o protagonista morre subitamente - arruinando a previsível jornada do herói.
Essa estratégia de construir uma narrativa que apresenta uma grande reviravolta, conduzindo o leitor a desfechos imprevíveis, se chama plot twist. Ela não aparece apenas no cinema, mas também na literatura infantil - e quando bem executada, costuma exercer um efeito incrível nos pequenos leitores, despertando a paixão pelos livros a partir de grandes surpresas. “Plot twist significa uma reviravolta na trama; uma mudança radical na direção esperada ou prevista para o enredo de um livro, filme ou série, dentre outras linguagens”, explica a professora Giselle Vitor da Rocha, mestre em estudos literários e técnica de programas e projetos do Cenpec, uma ONG que desenvolve projetos com foco na melhoria da educação pública. “É uma estratégia narrativa muito praticada para manter o interesse do público em uma obra, com uma pitada de tempero: uma surpreendente mudança da rota da história, a tão aguardada ‘surpresa final’”, define.
Há vários livros para crianças que se tornaram notáveis por seus plot twist: o premiadíssimo Bárbaro (Companhia das Letrinhas, 2013) é um ótimo exemplo. A história toda é ressignificada nas últimas páginas, quando (lá vem spoiler!) entendemos que o pequeno viking, que corajosamente enfrentou tantos perigos montado em seu cavalo branco, na verdade estava dando uma volta em um carrossel - de onde é tirado por seu pai aos prantos. Agora, o autor e ilustrador lança Estátua! (Companhia das Letrinhas, 2024), que também traz uma grande surpresa ou, como ele mesmo definiu, em entrevista ao Blog da Letrinhas, “o jogo de velar e revelar”. Habilmente, Moriconi só revela uma informação crucial sobre a personagem principal no final do livro - e, com isso, descortina uma nova dimensão para toda a narrativa. “Há nos meus livros a ruptura de uma lógica interna, que eu mesmo criei, e me contradigo, gerando um espanto risonho no leitor”, afirmou o autor.
Moriconi define Estátua! como uma “antítese de Bárbaro”. “Estátua! e Bárbaro jogam esse jogo em comum, além de outras similaridades. Isso aconteceu sem querer. Quando percebi algumas semelhanças, resolvi frisá-las – como o nome da personagem principal, a Bárbara. Só descobri seu nome depois que me dei conta que um livro poderia dialogar com o outro”, explicou. “Estátua! acabou virando, por uma lógica interna da sua narrativa, uma antítese do Bárbaro, a começar pelo gênero do personagem principal, ou do gênero do adulto que o busca, além do formato da publicação – uma vertical, outra horizontal. E até mesmo pela conclusão, sendo que um é a revelação da realidade e o outro, da fantasia”, acrescenta.
Uma coisa é certa: em ambos os livros, os leitores certamente não conseguiram prever o que os aguardava quando começaram a virar as páginas - e a sensação de ser surpreendido é divertidíssima.
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Nos livros ou no cinema: o fascínio da surpresa
Giselle lembra que, no cinema, um dos casos que virou referência de plot twist é o Sexto sentido (1999). Você se lembra do filme em que o garotinho dizia ver gente morta o tempo todo? Mas também podemos citar Clube da Luta (1999), e mais recentemente os thrillers Garota exemplar (2014) e Uma garota de muita sorte (2022).
Embora todas essas produções tenham ficado marcadas como muito inovadoras por seus elementos-surpresa, o que muitas pessoas não sabem ou não reparam, segundo a especialista, é que o plot twist é um recurso muito antigo, utilizado desde a época das primeiras tragédias gregas. Um exemplo é o caso de Édipo Rei, tragédia de Sófocles. Em resumo, estamos falando da história de um homem que, sem saber, mata o pai e casa-se com a mãe, como previa uma profecia. "Na trama, quando fatos inesperados sobre o protagonista e sua família são revelados, a compreensão da história muda radicalmente”, lembra. Não é um “truque” novo, mas a criatividade na hora inventar uma forma de usá-lo ou apresentá-lo ao leitor faz toda a diferença no resultado final.
“Essas reviravoltas podem aparecer de várias maneiras em uma narrativa, a exemplo da traição de uma pessoa amiga, da revelação de uma verdade inesperada envolvendo o passado de um personagem que vem à tona, da descoberta de um narrador não confiável a certa altura da história, com o poder de manipular o leitor e assim por diante. A grande estratégia, neste caso, é trazer para o enredo elementos-surpresa que mudam o curso da narrativa de forma inesperada”, resume a professora.
No caso dos livros infantis, há vários exemplos. Além de Bárbaro e Estátua! , o próprio Renato Moriconi assina outras obras que empregam essa estratégia, como Uma planta muito faminta (Companhia das Letrinhas, 2021). Tem também E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas, (Companhia das Letrinhas, 2020), de Emicida, Olhe pela janela (Brinque-Book, 2022), de Katarina Gorelik, que traz não só uma, mas uma série de plot twists ora assustadores ora reconfortantes. E ainda Cachinhos dourados e um urso apenas (Brinque-Book, 2013), de Leigh Hodginkson, que brinca com personagens conhecidos em um reencontro inusitado, e o consagrado O Grúfalo (Brinque-Book, 1999), de Julia Donaldson, que cativa os leitores pela surpresa de encontrar - de verdade - um monstro que parecia ser inventado. Não faltam exemplos de obras que as crianças amam - e os adultos também!
“Essas reviravoltas inesperadas das narrativas fascinam tanto os pequenos leitores, sobretudo, pela possibilidade de serem surpreendidos, de poderem levar ‘um susto’. Em muitas situações, o riso pode ser o grande chamariz” Giselle Vitor da Rocha, mestre em estudos literários
O plot twist e suas muitas possibilidades de formatos
Mas o que faz um bom plot twist? Em alguns casos, a história não dá nenhum indício de nada e a reviravolta chega de repente. Em outros, algumas pistas vão aparecendo ao longo da narrrativa para que a reviravolta faça sentido lá na frente - às vezes, o leitor percebe. Mas outras vezes, não. Quando ele descobre a surpresa, só quando lê novamente é que pensa: “Olha, tinha uma pista bem aqui e eu nem percebi!”.
“Estas pistas podem aparecer com mecanismos diferentes, por exemplo, na composição de uma narrativa não linear”, explica Giselle. E como se dá essa estratégia? “A ideia é ir revelando a trama e os conflitos dos personagens em uma ordem não-cronológica, o que demanda do leitor o exercício da junção de pedaços para a composição e compreensão da história”, acrescenta.
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Segundo ela, existem vários elementos para alcançar um bom plot twist. São eles:
● A anagnórise, ou descoberta, que é o reconhecimento súbito do protagonista (ou de outro personagem) de sua própria identidade e natureza. A obra mais famosa que representa esse recurso narrativo é Édipo Rei.
● O flashback ou analepse, o recurso mais conhecido dos leitores. Se estrutura por uma interrupção súbita da sequência cronológica narrativa da história pela interpolação de eventos ocorridos anteriormente. É usado para surpreender o leitor com informações previamente desconhecidas, que fornecem a resposta para um determinado mistério, colocando certo personagem em uma visão diferente ou revelando a razão para uma ação anteriormente inexplicável.
● A cronologia reversa, que tem como função revelar a narrativa em ordem inversa, ou seja, a partir do evento final para chegar no inicial.
● O narrador não confiável. que distorce nuances da trama. Esse narrador é quase sempre revelado no final da narrativa, neste momento, se descobre que o mesmo havia manipulado ou inventado a história contada até então, forçando o leitor a questionar suposições prévias sobre o texto.
Surpresa que cativa - e ensina muito!
Além de representar um elemento extra de prazer pela leitura, os plot twists enriquecem as histórias, reforçando o tema e as mensagens, potencializando o engajamento do leitor. Essa surpresa ajuda a cativar, fisgar e despertar o interesse pela busca por novas histórias que causem sensações e estímulos parecidos. “Sabemos que a formação de um leitor começa na infância. A possibilidade de se vincular à leitura depende de uma boa mediação e das obras que perpassarão a formação desses pequenos. Por isso, obras literárias que estimulem a curiosidade sobre a história ou a vontade de ler mais obras sobre aquele mesmo personagem são essenciais para alcançar a fruição leitora”, completa Gisele.
Livros assim acabam sendo também ótimas ferramentas educacionais. A partir dessas leituras, as crianças se engajam e, conforme aumentam o repertório, começam a prestar atenção nas tais “pistas” que possam ser encontradas ao longo do texto, para tentar se antecipar a possíveis surpresas. Tudo isso amplia a atenção e a interpretação da obra. Assim o jogo do “velar e revelar”, como diz Moriconi, vai aparecendo em novas histórias e revelando novos - e apaixonados - leitores,
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