‘Quem come pão de queijo vira poeta?’ as perguntas divertidas dos leitores aos autores

03/04/2024

Crianças e artistas têm muitas características em comum. A lista de semelhanças é grande, mas a curiosidade fica frequentemente no topo - como as cerejas de um bolo apetitoso. Guardar na ponta da língua as palavras “por quê?”, “como?” e “onde?” – sem um pingo de medo de parecer menos esperto – é um dos trunfos das infâncias. Como dizia a poeta Wislawa Szymborska, “não há perguntas mais urgentes do que as perguntas ingênuas”. 

“Os livros têm caráter subjetivo, tratam de assuntos que ninguém sabe, nem pode ensinar: as paixões humanas; a busca do autoconhecimento e da identidade; o conflito arcaico e inevitável do velho contra o novo; as utopias pessoais; as injustiças; as contradições e ambiguidades humanas.” (Ricardo Azevedo)


Convidamos autores dos selos infantis da Companhia das Letras para compartilhar as perguntas mais surpreendentes que já receberam das crianças - algumas divertidas, outras sensíveis, outras até críticas. Ao apresentarem seus livros em escolas, eventos de lançamento, bate-papos e até em encontros espontâneos, quais são as interrogações que elas dirigem a eles? Será possível dar conta de tantos porquês – alguns sem pé nem cabeça, outros com um parafuso a mais?  

Mais do que tentar responder a essas questões, cada pergunta recebida é como um pequeno pulso de vida, movimentando o pensamento e o corpo a continuar criando -  basta lembrar quantos livros nascem a partir de uma pergunta de criança ou de um lampejo criativo. Sorte de quem consegue manter esse espírito perguntadeiro conforme os anos passam. E sorte dos que têm ouvidos sempre atentos às perguntas das crianças. 

“O sentido da vida é você estar aqui e agora me fazendo essa pergunta, e eu também estar aqui e agora dando esta resposta. Se não existisse a vida, não haveria esse sentido.” (Fernando Nuno)

Abaixo, você lê o que cada escritor ou ilustrador guardou na memória dessas indagações infantis cheias de humor, filosofia, sensibilidade, expectativa e surpresa. 

 

Ilustração de Contos de Fraldas, de Tino Freitas

Ilustração de Contos de Fraldas, de Tino Freitas

As melhores (e mais engraçadas) perguntas das crianças aos autores


Tino Freitas, escritor, autor de Os invisíveis (em parceria com Odilon Moraes), Contos de fraldas, O que é preciso para ser rei?, dentre outros

“Uma vez, conversando com uma turma que havia lido Os invisíveis, uma criança levantou o braço e perguntou:

'Ô, Tino, quanto tempo demora pra fazer um livro?'
Ao que eu respondi:

'Depende do livro, depende ao que você diz: se escrever o texto, ou fazer tudo: texto, ilustrações, gráfica, etc, até chegar à livraria. Mas, esse livro que vocês leram, por exemplo, Os invisíveis, ele tem 16 frases, e eu devo ter passado uns dois anos para terminar de escrevê-o.
A criança, perplexa com minha resposta, respondeu quase num átimo:

'Mas você é burro, hein, Tino!'

A turma toda, a professora e eu rimos um bocado daquela conclusão.”


Blandina Franco e José Carlos Lollo, autores da série Pum, que começou com Quem soltou o Pum?, dentre outros, como Ernesto e O coiso estranho.


“Teve uma visita que fiz em uma escola e que fui sozinha – por algum motivo o Lollo não pode ir comigo – e lá, respondendo às perguntas das crianças, eu contei que era casada com o Lollo. Então, uma menina ficou muito espantada, porque ela achava que o Lollo não existia. Ela disse que como só eu tinha ido no encontro e as nossas bios nos livros são desenhos, ela achou que o Lollo era um personagem desenhado, como os dos livros. Foi uma festa quando mostrei fotos do Lollo e tive que prometer que na próxima vez que eu fosse na escola eu levaria o Lollo pra eles verem que ele era real.

Também teve uma vez eu estava autografando em uma livraria e quando a criança me entregava o livro eu perguntava o nome. Para não correr o risco de escrever o nome da criança errado, perguntava coisas como:  'é Rafael com F?'; 'Isabel com S?'  só pra garantir.  Então chegou um menino e quando eu perguntei sobre o nome dele, ele pegou a caneta da minha mão e disse: 'deixa que eu autografo. Tô vendo que você não sabe escrever direito!'

O Lollo sempre faz um desenho no livro junto com o autógrafo que dá para as crianças. As crianças adoram e escolhem o que querem que ele desenhe, mas teve um menino que, na vez dele, chegou dizendo assim: 'Só assina, deixa que eu desenho porque eu faço mais caprichado!' e começou a desenhar no livro. Enquanto desenhava, ele dava dicas pro Lollo de como desenhar direito, como tem que segurar o lápis e o que fazer pro desenho ficar dentro da linha.

E teve também uma vez que quando contamos para as crianças na escola que somos casados uma menina levou um susto e perguntou:

'Mas vocês se beijam?!"

Renato Gama, escritor, autor de Neguinha, sim!

“Uma das coisas que mais me chamaram a atenção foi o caso de uma menina de seis anos chamada Ana. Ela comprou o meu livro, Neguinha, sim!, na Feira do Livro USP, e, quando ela me encontrou, a mãe dela disse: 'Filha, ele é o Renato, pede um autógrafo'. E ela respondeu: 'Não, o livro não é dele, é meu, sou eu que estou na capa. E ele é homem!'

E no lançamento em Jundiaí (SP), várias meninas foram com o cabelo igual à capa do livro. Ao ver aquelas meninas, perguntei como chamava o penteado. A resposta foi: ‘Neguinha sim!

Ilustração de Neguinha, sim!, de Renato Gama

Ilustração de Neguinha, sim!, de Renato Gama

Aline Abreu, escritora e ilustradora, autora de Tá chegando? e Achou!


“Quando visito escolas, costumo levar alguns materiais que são os mais usados nas minhas ilustrações. Eu tenho uma coleção de toquinhos de lápis grafite e carvão e alguns lápis pastel. Adoro meus toquinhos e uso até o fim. E levo pras crianças verem que dá pra gente usar bem os materiais e fazer um monte de desenhos com um simples toquinho de lápis. Eles sempre curtem muito pegar os mini lápis e na maioria das vezes alguma família ou educadora depois me conta que as crianças passaram a usar os lápis até o fim, e que isso rende bastante conversa sobre o aproveitamento de todos os materiais que eles têm.”

 

Fernando Nuno, escritor, autor de O quintal da minha casa e O livro que não queria saber de rimas


“É sempre bacana o contato com as crianças para tratar de livros. Nessa questão das perguntas, então... Muitas vezes, em vez de perguntas, ouvimos declarações de amor aos livros e até, surpreendente ou não, alguém que tem a 'coragem' de dizer 'não gosto de ler livros', o que provoca uma bela conversa.

As perguntas, em geral, se repetem, do tipo: 'Se não fosse escritor, você faria o quê?', 'Quando você escreveu seu primeiro livro?', 'Há quanto tempo escreve?', 'Quantos livros você já escreveu?', 'De qual gosta mais?' etc.

Lembrei agora de duas perguntas surpreendentes, uma que é menos importante e outra que é importantíssima.

Às vezes, depois desta pergunta, menos comum:

'Dá pra viver de escrever?',

vem esta outra, mais rara e, portanto, um tanto surpreendente:

'Você é rico?'

A minha resposta geralmente é:

'Sou!'

E, depois de uma curta pausa:

'Está tudo guardado aqui dentro.'

E aponto para a cabeça, continuando:

Então, vou tirando daqui e usando quando acontece. A riqueza da imaginação é uma das maiores, senão a maior.

Já a pergunta mais inusitada que consigo lembrar é de uma vez em que as professoras selecionaram uma menina de oito anos para fazer a questão de encerramento, enquanto contavam:

'Sabe, Fernando?, nós temos uma aluna que é uma pequena filósofa, e ela tem uma pergunta muito importante.'

E a pergunta que a menina fez foi realmente muito importante:

'Qual é o sentido da vida?'

Na hora, me lembrei do filme O sentido da vida, do Monty Python, aquele grupo inglês de humor. E então respondi:

'O sentido da vida é você estar aqui e agora me fazendo essa pergunta, e eu também estar aqui e agora dando esta resposta. Se não existisse a vida, não haveria esse sentido.'

Depois que o evento terminou é que me ocorreu, como geralmente acontece, uma resposta talvez melhor. A resposta que deveria ter dado, foi:

'O sentido da vida é existir. Simplesmente isso. Se a vida não existe, ela não tem sentido. E, já que nós existimos, que tal fazermos sempre o melhor que pudermos, agirmos da melhor forma que soubermos agir, evitando falar e fazer o que sabemos que não é legal, para nos sentirmos bem? Assim, aproveitamos o fato de existirmos, e isso dá sentido mais pleno para o viver.'


Ricardo Azevedo, escritor e ilustrador, autor de Aviãozinho de papel, Uma velhinha de óculos, dentre outros


“Trabalho há 44 anos com livros de ficção e poesia. Vou contar uma experiência, entre as muitas que tive, em visitas às escolas.

No início da minha carreira, lá por 1982, com poucos livros publicados, tive um deles adotado na terceira série de uma escola. Conversei com as crianças e depois me convidaram para um papo com as professoras. Eram umas dez, talvez nem isso. A reunião foi numa sala pequena. Coloquei-me à disposição. A primeira pergunta já me derrubou.

Uma das professoras sapecou a seguinte questão: 'sobre o quê você escreve?'

Eu era inexperiente. Pego de surpresa, respondi que sei lá, podia escrever sobre qualquer assunto que me desse na telha e que me permitisse criar uma boa história. As professoras me examinaram espantadas. Lembro de uma olhar para a outra com as sobrancelhas arqueadas e um ar de tédio e decepção. Me senti como se estivesse sendo visto como um picareta despreparado. De certa maneira, naquele momento, por ser um escritor iniciante, um pouco eu era!

Fiz o que pude na conversa, mas aquela pergunta ficou buzinando na minha orelha. Levei um bom tempo, talvez anos, para compreender que sua tradução era: 'sobre que matéria você escreve?' ou 'o que seu livro ensina?'.

Hoje diria àquelas professoras: trata-se da velha e triste confusão entre livros técnicos ou didáticos e livros de ficção e poesia."


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Joana Penna, ilustradora, autora das ilustrações de Diário de Pilar

“A primeira pergunta que todas as crianças fazem é quando eu comecei a desenhar. Eu acho isso superengraçado, porque eu costumo responder com outra pergunta: 'quando os outros adultos deixaram de desenhar?'. Qualquer criança que a gente conhece que vai para a escola já desenhou alguma vez na vida, a gente desenha e faz garatujas (primeiros grafismos e expressões criativas da criança) antes de começar a ler e escrever.

É uma graça quando as crianças fazem perguntas que os próprios livros do Diário de Pilar não respondem. Por exemplo, se as viagens da Pilar na rede mágica são rápidas ou demoravam bastante tempo. Há muitas coisas que ficam para a imaginação das crianças decidir, se a Pilar pratica algum esporte, se ela já foi para algum lugar que não está nos livros, ou seja, se a vida dela é só a literatura, ou se ela tem uma vida fora dos livros. Essa eu acho genial, pensar a Pilar quase como uma atriz que tem outras vidas.”


Flávia Lins e Silva, escritora, autora da Coleção Diário de Pilar e Detetives do Prédio Azul

"Uma das perguntas mais divertidas que me fizeram foi em uma escola em Minas Gerais. Um garoto me perguntou assim:


'Se a ambrosia dos deuses faz ficar imortal, o que acontece se comer pão de queijo?'

E eu respondi: 

'Ah, aqui em Minas, se come muito pão de queijo, com certeza vira poeta. Terra de Drummmond e de tantos poetas maravilhosos'.

Aposto que quem come pão de queijo em Minas tem talento para ser poeta."


Guilherme Semionato, escritor e tradutor, autor de Laila e Jasmin, e tradutor de Rã e sapo são amigos


“Já me perguntaram se eu fiquei rico com o livro Nossa bicicleta, porque ganhei um prêmio com ele. Essa foi uma pergunta engraçada, todo mundo riu, eu também, e a professora não gostou muito. Até agora ninguém me perguntou se eu tenho filhos, ou se quero ter filhos. Morro de medo que as crianças me façam essas perguntas, porque a resposta seria 'Não e nem vou ter; vocês dão muito trabalho'. 

Não consigo lembrar de outras perguntas engraçadas, mas já aconteceu de eu ser meio destratado numa visita a um colégio. Eu repito bastante os nomes 'João' e 'Pedro' nos meus livros, e aí um rapaz levantou a mão e fez uma constatação: 'Falta de criatividade, né?'. O mesmo garoto também me disse: 'Esse livro não faz nenhum sentido' para uma de minhas histórias, Um belo dia.”


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Rosinha, ilustradora das obras Os tesouros de Monifa, escrito por Sonia Rosa, e Histórias do Xingu, escrito por Orlando Villas Bôas e Cláudio Villas Bôas


“Tem uma do meu filho:


'Mãe, o que você vai ser quando crescer?'

'Você acha que sou criança, Artur?'

'Acho. Você só fica desenhando o tempo todo."

 


Silvana Rando, escritora e ilustradora, autora da série Gildo, Salvos por um fio  e da coleção do coelho Bibo

“Na última visita escolar, durante a minha fala, uma criança levantou o braço e perguntou se eu poderia amarrar o seu tênis…rs

Foi bem inusitado!

Mas sempre me perguntam se eu trabalho ou se eu ganho dinheiro desenhando. Essas são as mais recorrentes.

Eu invejo essa espontaneidade.

Viva as crianças!”

Ilustração de Gildo está fora do ritmo, de Silvana Rando

Ilustração de Gildo está fora do ritmo, de Silvana Rando


Guilherme Karsten, escritor e ilustrador, autor de Carona e Se eu tivesse asas 

"Apesar de escrever histórias que têm o teor de comédia, a minha melhor lembrança é uma que me deixou com os olhos marejados. 

Me lembro de uma experiência ao ler o meu livro Você é um monstro? numa escola. É uma história sobre um pequeno monstro que procura outros monstros e faz essa pergunta do título ao leitor. Ele tenta achar similaridades como ter uma cauda comprida, unhas pontudas, espinhos nas costas, etc. E fica decepcionado por não encontrar nenhum outro monstro com esta aparência, até que descobre outras semelhanças e assim a brincadeira acontece. Ao fim da leitura, alguns alunos me fazem perguntas e noto um menino com certa timidez na fila e, na sua vez de perguntar, não pergunta nada, apenas diz:

'Gostei muito do Monstro porque tenho algo em comum com ele, tenho 6 dedos nos pés.'

Ele disse isso e voltou em silêncio para o seu lugar. Eu não soube o que dizer para ele, mas tive a sensação de que o meu livro alcançou a sua função maior (e eu que falei que não deveria ter função), se conectou com o leitor e criou um espaço para uma conversa."

Heloisa Prieto, autora de O estranho caso da massinha fedorenta, Divinas travessuras, dentre outros 

"A melhor que ouvi foi:

'Nossa, como você é diferente do que eu imaginava! - disse o leitor de dez anos - Pensei que você fosse uma velhinha daquelas meio malucas que ficam o tempo todo acendendo incenso.'

Minha primeira coleção, Tudo o que você queria saber, foi publicada pela Companhia das Letrinhas antes das redes sociais. Eu estava na casa dos trinta anos, mas pedi então que minha foto de autora não fosse publicada na quarta capa. A coleção abordava vários temas misteriosos e eu não queria chamar atenção. 

O garoto gostou da surpresa e o espanto dele abriu uma longa discussão sobre a liberdade de escrever ficção. Será que toda narrativa deve ser um espelho? Hoje em dia, mais do que nunca, essa pauta permanece viva."

Bruna Lubambo, ilustradora, autora das ilustrações de De passinho em passinho e As aventuras de Dorinha

 "Os comentários inusitados que consegui me lembrar foram do meu filho, de um pequeno leitor e da minha avó.

Meu filho disse assim:

'Não gosto das suas ilustrações.'

'Por que, filho?' - perguntei.

'Elas não têm margens como as do Capitão Cueca.'

E minha vó deixou o seguinte recado para a minha mãe me passar:
'Avise a Bruna que ela está desenhando as galinhas dobrando os joelhos para frente, galinhas dobram os joelhos para trás.'

Teve ainda um pequeno leitor revoltado com o desfecho do livro O Bicho mais Poderoso do Mundo (Aletria Ed.), que disse:
'ESTE LIVRO ESTÁ ERRADO! É CLARO QUE O BICHO MAIS PODEROSO DO MUNDO É O DINOSSAURO!"

(Texto: Renata Penzani)

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