Você, certamente, já se deparou com um mapa-múndi. Na enorme maioria das versões, a Europa aparece centralizada, ladeada, à esquerda, pelas Américas e à direita, pela Ásia. Embaixo, ao lado da América do Sul, está a África e, mais ao lado, a Oceania. Mas você já se perguntou o motivo de a Europa estar sempre ao centro, sendo que a Terra é redonda? Há muitas perspectivas possíveis, mas essa costuma ser a predominante e por um motivo: há sistema ideológico conhecido como eurocentrismo, que coloca a cultura europeia como a mais importante entre todas as sociedades do mundo.
Em Kuján e os meninos sabidos, o criador volta à Terra em forma de tamanduá
Essa posição influencia até hoje,diversas áreas da história, da política e da cultura, o que inclui também a literatura infantil. Embora os ventos, aparentemente, estejam mudando, os elementos que continuam colocando o homem branco e sua maneira de viver como superiores ou como as únicas formas possíveis, aparecem tanto de forma sutil, quanto ostensivamente em muitas narrativas.
Alguns eixos são frequentes em narrativas eurocêntricas, como a existência de um conflito e de um herói, que resolve a situação e salva a todos, de maneira individual. Quantas histórias você conhece, que seguem mais ou menos esse padrão, com algumas variações? “As narrativas eurocêntricas ainda são muito comuns. Isso não seria uma questão se outras narrativas tivessem mais participação, certo? O problema está na desproporção”, diz Débora Alves, editora do núcleo Infantil da Companhia das Letras. “Não estou falando aqui da substituição ou da valorização de uma determinada literatura em relação a outra, mas da possibilidade de a diversidade ser contemplada, de diferentes literaturas existirem e circularem. Considerar outras perspectivas como referências ainda é um desafio no campo literário, sem dúvidas, mas as mudanças estão acontecendo. Podemos estar ainda distantes do ideal, mas estão acontecendo”, afirma.
LEIA MAIS: O olhar das crianças revela a miopia dos adultos
Diversidade e representatividade importam, sim
As narrativas eurocêntricas existem, em grande proporção, mas isso, como lembrou Débora, não seria preocupante, se não invalidasse, invisibilizasse ou apagasse as narrativas e os saberes de outros povos e de outras origens. “Promover um único ponto de vista, um único padrão de beleza ou uma única vivência possível provoca o apagamento de outras existências ou a naturalização de comportamentos ou situações. Isso empobrece reflexões, impossibilita o exercício da tolerância, do convívio, do conhecimento e do autoconhecimento. Não existe uma única possibilidade de existência e é muito importante que ofereçamos às crianças leituras que apresentem diferentes vivências e combatam estereótipos”, diz a editora.
Mas há esperança porque, ainda que a passos lentos, a transformação está sim, acontecendo. Exemplo disso é o fato de Aílton Krenak, ambientalista, filósofo e escritor, tomou posse na Academia Brasileira de Letras recentemente. Ele foi o primeiro indígena a se tornar “imortal”. Não é irônico que tenha levado tanto tempo para que um representante dos povos originários, os verdadeiros nativos do nosso território, fosse eleito para ocupar uma cadeira?
É de Krenak, aliás, o livro Kuján e os meninos sabidos (Companhia das Letrinhas, 2024), com ilustrações de Rita Carelli, um exemplo recente de como a literatura infantil tem ampliado os espaços e, mais do que isso, promovido narrativas a partir de outras lentes. A história já é bem conhecida dos discursos de Krenak e aparece até em uma canção do álbum AmarElo, de Emicida, rapper - e também autor de dois livros infantis pela Companhia das Letrinhas, Amoras (Companhia das Letrinhas, 2018) e E foi assim que a escuridão e eu ficamos amigas (Companhia das Letrinhas, 2020). Em um trecho da faixa É tudo pra ontem, Gilberto Gil narra parte da história indígena, que fala sobre o momento em que o criador, disfarçado, voltou à Terra para saber como estavam suas criaturas. O livro de Krenak detalha como esse criador decidiu vir na pele de um tamanduá e como duas crianças espertas compreenderam o que estava acontecendo e decidiram ajudá-lo.
Kuján e os meninos sabidos, de Aílton Krenak
Para a escritora Ana Fátima, autora de Os dengos na moringa de voinha (Brinque-Book, 2023), as maneiras de narrar prevalecentes nas narrativas para as infâncias enfatizam valores individualizantes ou exclusivistas. “É algo que não cabe nas perspectivas filosóficas ameríndias e africanas/afro-diaspóricas”, afirma. “Enredos centrados na dualidade bem e mal, grande e pequeno, velho e novo, não fazem parte de valores cultuados por comunidades politeístas, pautas na circularidade e cooperação. Logo, ainda temos essas narrativas limitantes das possibilidades de sujeito”, avalia.
No contexto atual, em que se faz ainda mais urgente a necessidade de pensar mais coletivamente do que individualmente, e de zelar pelo planeta em que habitamos, diminuindo a cultura do consumo, agindo para proteger a natureza e cuidanmos uns dos outros e dos recursos que ainda temos, a propagação de valores e saberes ancestrais precisa ser ampliada. Precisamos de mais vozes, mais histórias, mais formas de compreender quem somos e quem podemos ser, juntos. “Em muitas narrativas de culturas, como as dos países leste-asiáticos, o sucesso individual não importa muito. Ele, inclusive, importa pouco”, analisa Janaina Tokitaka, autora e ilustradora de títulos como Almoço de família (Companhia das Letrinhas, 2023) e Vovó veio do Japão (Companhia das Letrinhas, 2018). “Se observarmos outras estruturas, entenderemos que o universal para uma narrativa mitológica leste-asiática é a maneira como o herói vai lidar com as intempéries da vida, como ele vai lidar com o desconhecido, o que ele não controla, o desastre, a tragédia. O que importa não é se ele vai vencer, retornar ou trazer algo valioso em troca, mudar o mundo - e sim como ele vai se manter, se vai se manter honrado e digno até o final, seja esse desfecho positivo ou negativo”, exemplifica.
LEIA MAIS: 8 autores de origem indígena para ler com as crianças
Janaína reforça que as histórias, sobretudo as que vêm da tradição oral, são ensinamentos e passam valores. São narrativas que descrevem determinados entornos e determinadas culturas. “Trazer isso para as crianças é enriquecer a visão de mundo delas”, afirma. Ela, que gosta muito de fazer metáforas com comida, até compara o contato com diferentes histórias ao que vai no prato dos pequenos: “Assim como precisamos apresentar diversos alimentos, de diversos grupos alimentares, temos que apresentar histórias diversas também”.
Quem conta a história?
Outro efeito da colonização, fruto da visão eurocêntrica de mundo, é que, até pouco tempo atrás, entendia-se que somente a pessoa branca poderia escrever. Nesse sentido, ainda que fossem contadas histórias sobre outros povos e outras culturas, isso poderia ser feito somente a partir da visão da cultura considarada dominante. “E, então, o que acontecia - e ainda acontece, em menor grau - era que o escritor tirava a história do contexto original para colocá-la em um molde de uma história clássica ocidental para ser mais ‘palatável’. Muitas vezes até sem saber que estava fazendo isso”, diz Janaína. “Agora, com esse movimento de trazer, de fato, diversidade para o mercado editorial, de ter autores, ilustradores e editores negros, indígenas, asiáticos, o jeito de as histórias serem contadas está se transformando”, aponta.
Ana Fátima também acredita que essa mudança está acontecendo, mas, segundo ela, ainda há um funil muito grande. Ela lembra que ainda há pouco acesso a narrativas e autorias do nordeste ou do norte do Brasil, por exemplo. “Digo isso porque eu, enquanto uma mulher negra, nascida na Bahia, ainda sou vista como exclusividade, quando há tantos nomes e histórias importantes a serem conhecidas, advindas de meus conterrâneos. É preciso qualificar essa curadoria nas editoras e demais componentes do cenário editorial”, opina.
A voz da natureza e dos povos ancestrais
Uma característica frequente das histórias com outras origens, sobretudo africanas e indígenas, é de as forças ou seres da natureza atuarem como personagens: a água, o vento, a chuva, as árvores - outra forma de reforçar a compreensão de que somos parte, também, dessa natureza. “A escritora e pesquisadora Kiusam de Oliveira [autora de Mãos e Tayó (ambos, Companhia das Letrinhas)] traz no conceito da LINEBEIJU - Literatura Negro-brasileira do Encantamento Infantil e Juvenil - o encantamento enquanto um movimento orgânico de nós, seres da natureza, por entendermos que somos todos elementos de uma só família”, cita Ana Fátima. “Assim como as florestas, os rios, os mares, a fauna, a flora, a terra, nós também interdependemos deste ciclo de vida. Seja por uma cosmoperspectiva dos povos originários, das populações tradicionais quilombolas, seja a partir de narrativas com base em energias cultuadas em religiões de matriz africana e brasileiras, a territorialidade e a ancestralidade são valores presentes na maior parte das obras construídas sob esse prisma. O olhar sobre nossos ancestres e nossa descendência está firmado no respeito aos espíritos, aos seres vivos e aos minerais que aterram nossa energia neste tempo presente cíclico - afinal, a terra e o ar que respiro já foi presentificado pelos meus ancestrais, assim como as águas que me banham e me nutrem. Se esta leitura das nossa visão de natureza estiver na literatura enquanto leitura da existência, acredito na possibilidade de atingirmos menos alheamento sobre todos os componentes naturais em degradação - entre esses, nós humanos”, aponta a autora.
LEIA MAIS: O futuro das crianças (e da humanidade) é ancestral e acontece agora
A editora Débora Alves também acredita no papel da literatura como um meio de ajudar a despertar nossa consciência ambiental, mas ressalta que é um meio. “A ação é nossa. A responsabilidade de construir uma sociedade melhor, menos individualista, menos consumista é nossa. O entendimento de que fazemos parte da natureza e que isso deve estar em equilíbrio, citando o autor Daniel Munduruku [autor de Histórias de Índio (Companhia das Letrinhas)], pode passar pela literatura, mas deve ser um compromisso social”, ressalta.