Infância sob o efeito das telas: um papo sobre redução de danos

05/08/2024

Se você é pai ou mãe e faz parte da chamada geração Y ou millenial - ou seja, se nasceu entre1980 e a primeira metade dos anos 1990 -, é provável que se preocupe com a quantidade de tempo que seus filhos passam em frente às telas. Mas também é bem provável que você mesmo tenha sido uma criança que passava um bom tempo diante da TV. É verdade que era outro tipo de relação - afinal, as telas não eram móveis, capazes de nos seguir por todos os cantos, e conteúdos, além de mais restritos, eram limitados a canais e horários específicos. Ainda assim, atire um controle remoto quem não sabia de cor a programação da TV aberta - e mais tarde também a da TV paga. 

Ilustração de 'Papai, ó!', de Marcelo Tolentino

O convívio intenso dessa primeira geração com as telas foi tema do premiado livro Liga-desliga (Companhia das Letrinhas, 1992), de Camila Franco e Marcelo Pires. Mas na história - veja que ironia - era uma televisão que não saía da frente de um menino. Tanto Camila e Marcelo, como o ilustrador, Jarbas Agnelli, são publicitários e tinham total conhecimento de quanto tempo a TV já ocupava no mundo infantil - bem antes que a internet e os smartphones tablets fossem uma realidade tangível.

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Liga-desliga

Mas é preciso admitir que a geração que cresceu em frente à TV e viu toda a evolução da conectividade - da internet discada (com a musiquinha) aos gadgets com conexão ilimitada - vive presa ao celular. Ainda que a preocupação com a forma como as crianças se relacionam com as telas seja legítima - e necessária -, para os próprios adultos é dificílimo alcançar um equilíbrio de exposição. Em Papai, ó! (Pequena Zahar, 2024), sentimos a agonia do menino que insistentemente tenta chamar a atenção do pai - em vão. Enquanto o filho se abastece do que vê para criar um universo próprio cheio de fantasia, o pai mal consegue desviar os olhos do ceular - soa familiar?

Se o uso de telas é um mal necessário - e irreversível - como ensinar crianças e jovens a se relacionarem com elas de forma mais saudável? É possível reverter os danos que a exposição precoce a redes sociais e uso de gadgets podem causar à aprendizagem - ou, pelo menos, minimizá-los?

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Gerações diferentes, problemas diferentes

Não é de hoje que as telas marcam a infância. "A diferença é que as crianças dos anos 1990 cresceram com a participação das telas maiores que são as televisões”, aponta a médica Tâmara Marques Kenski, pós-graduada em Psiquiatria pelo Instituto Superior de Medicina de São Paulo (ISDM-SP). “Na televisão, a gente tinha uma programação mais ampla, programas educativos, de entretenimento”, pontua ela. Ainda assim, eram telas e, portanto, já prendiam a atenção. Tiravam o tempo de outras atividades, deixando a criança mais passiva e reduzindo o estímulo à criatividade e à imaginação. Isso porque, por ser um tipo de entretenimento que já vem pronto, a TV não exige nenhum tipo de interação - basta a contemplação.

Mas se compararmos os conteúdos aos quais a geração Y foi exposta e o que as crianças de hoje assistem, há mudanças significativas. “Os estímulos visuais eram mais simples e previsíveis, sem tanta variação rápida de imagens e sons. Era comum também assistir TV por várias horas, mas havia limites naturais. Os programas tinham horários específicos e você precisava parar para outras atividades”, acrescenta a neurologista Letícia Brito Sampaio, coordenadora do Departamento de Neurologia da Infância e Adolescência do Instituto da Criança e do Adolescente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). Para a geração das crianças de hoje, a tecnologia evoluiu, a internet chegou e ficou mais acessível e rápida, as telas ficaram menores e portáteis. “O que antes ficava restrito à sala e a uma programação em horário determinado, passou a poder ser acessado o tempo inteiro e levado para qualquer lugar”, lembra Tâmara.

Além disso,  os conteúdos são mais diversos e customizáveis, enquanto os gadgets e redes sociais estão o tempo todo estimulando a interação - rolar a página, curtir, compartilhar, comentar. "Os algoritmos recomendam conteúdo com base no histórico de visualização e preferências do usuário. Sem limitação de programação, as crianças podem passar mais tempo interagindo com os dispositivos. Os estímulos visuais e auditivos são variados e intensos, com mudanças rápidas de imagens e sons, afetando a atenção e a capacidade de concentração das crianças. É comum também fazerem várias coisas ao mesmo tempo, como assistir a um vídeo enquanto jogam ou conversam com amigos”, completa Letícia.

Assim, as crianças podem se conectar em casa, no carro, no restaurante, no parque – e até na escola. Diversos estudos, nacionais e internacionais, apontam os sérios e perversos efeitos disso, com a explosão das notificações de doenças como depressão e ansiedade no público infantil e adolescente. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Datafolha, com base em dados da Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde, registrados entre 2013 e 2023, pela primeira vez na história, os casos de ansiedade entre crianças e jovens superam os casos em adultos. A taxa de pacientes com idades entre 10 e 14 anos, atendidos por conta do transtorno, é de 125,8 a cada 100 mil.

“Os dispositivos móveis estimulam a constante troca de estímulos levando a períodos mais curtos de atenção e dificuldades em manter a concentração em uma única tarefa. Algumas atividades podem estimular áreas específicas do cérebro relacionadas à resolução de problemas e coordenação motora, mas o excesso pode afetar negativamente a memória e a capacidade de aprendizado”, explica a neurologista Letícia. Isso sem falar na maior dificuldade de selecionar e monitorar o conteúdo aos quais crianças e jovens são expostos - desde publicações de teor inadequados à faixa etária, até fake news.

Mas não para por aí. “As redes sociais e os jogos podem levar a comparações e pressões constantes, levando a ansiedade, baixa autoestima, estresse e alterações do sono. A reprodução automática e a recomendação contínua de conteúdo pelos algoritmos criam uma estimulação contínua, que pode sobrecarregar o cérebro e dificultar a capacidade de desconectar e relaxar”, acrescenta. Isso sem falar nas demais consequências como o sedentarismo, a obesidade, a perda de interesse em outras atividades, as dificuldades de foco e atenção, os problemas no desenvolvimento de linguagem, os obstáculos de socialização, entre vários outros.

Tudo isso vêm afetando mais crianças e isso tem acontecido cada vez mais cedo. Outro estudo, realizado pelo Cetic.br, ligado ao Comitê Gestor da Internet no Brasil, mostrou que crianças e adolescentes estão se conectando cada vez mais cedo. Segundo o levantamento, 95% das crianças e jovens de 9 a 17 anos acessam a internet e a maioria usa o celular para isso. Desse total, 24% começaram a usar a internet antes de completar 6 anos.

Pais em ação contra as telas

Diante do cenário preocupante, alguns pais decidiram se juntar para tentar reverter ou, pelo menos, frear essa tendência, antes que seja tarde demais. Eles se uniram e criaram o Movimento Desconecta, uma iniciativa que começou com um grupo de WhatsApp de pais em uma escola e, em dois meses, cresceu e se tornou um movimento que se espalhou por vários estados brasileiros.

“A proposta do Movimento Desconecta é adiar a entrega de celular para crianças e adolescentes até pelos menos 14 anos”, explica Fernanda Cytrynowicz, uma das fundadoras. Para ela, a distinção do celular das outras telas, como a televisão e os videogames é um ponto importante, justamente pela facilidade que existe em carregar o aparelho no bolso e acessar a qualquer momento, com diversos recursos. “Acreditamos que é possível manter o uso de outras telas considerando a ‘redução de danos’, a eliminá-las completamente, mas, para isso, é preciso estar consciente dos malefícios do uso excessivo e precoce e adotar algumas medidas para minimizar os efeitos negativos enquanto se permite o uso”, afirma. “Algumas dessas estratégias incluem limitar o tempo de tela, escolher conteúdos adequados para a idade, supervisionar o que as crianças estão assistindo ou jogando, e estar atentos às interações sociais e qualquer sinal de mudança de comportamento. Caso estas estejam sendo afetadas, algo mais drástico deve ser feito e pode-se considerar suspender o uso das telas com acompanhamento profissional psicológico”, acrescenta.

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Crianças e telas: redução de danos

Diante de tantos dados, estudos e do cenário que se apresenta, é consenso entre os especialistas de que o limite do tempo de tela e a escolha dos conteúdos são fundamentais para evitar prejuízos ao desenvolvimento e à saúde das crianças e dos adolescentes. Adiar o momento em que as crianças ganham o próprio smartphone assim como o acesso às redes sociais são alguns dos cuidados. Ainda assim, nas situações em que retirar completamente os dispositivos não é uma opção, é preciso supervisionar, limitar e saber o que os pequenos estão assistindo, jogando e com quem estão interagindo. “Em ‘emergências’, os pais podem fazer escolhas menos prejudiciais. Selecionar conteúdos educacionais ou programas adequados para a idade de cada criança, com um tempo determinado e optar por conteúdos que promovam aprendizado ou que sejam interativos, por exemplo, pode ajudar a reduzir os impactos negativos da exposição às telas”, diz Fernanda, do Desconecta. 

Com a ajuda das especialistas, reunimos aqui algumas dicas para ajudar as famílias a navegarem pelo convívio das crianças e adolescentes com as telas, nos momentos em que precisarem recorrer a elas: 

  • Estabeleça limites: Determine um tempo máximo diário para o uso de telas com base na idade da criança. A Academia Americana de Pediatria (AAP) recomenda que crianças de 2 a 5 anos tenham, no máximo, uma hora por dia de uso de tela, enquanto crianças mais velhas devem ter limites consistentes com o tempo necessário para outras atividades.
  • Além das telas: Incentive períodos de uso de tela equilibrados com outras atividades, como brincadeiras ao ar livre, leitura e interações sociais.
    Curadoria de conteúdo: priorize aplicativos e programas que tenham valor educacional e que sejam apropriados para a faixa etária da criança, como jogos educativos que desenvolvam habilidades cognitivas e motoras. 
  • Supervisão, sempre: monitore o uso da tela, participando e discutindo o conteúdo com a criança. Use aplicativos de controle parental para monitorar e limitar o tempo de uso de dispositivos, além de filtrar conteúdo inapropriado.
  • Seja exemplo: demonstre comportamentos saudáveis, limitando seu próprio tempo de uso de telas e mostrando como se relacionar com os dispositivos de forma responsável. Dedique tempo de qualidade em família, sem a interferência de dispositivos móveis. Promova atividades fora das telas, como desenhar, pintar, ler livros físicos, jogar jogos de tabuleiro e participar de esportes. Incentive a curiosidade e a exploração do ambiente ao redor, ajudando a desenvolver habilidades motoras e sociais.
  • Desative a recomendação e o início automático de outros vídeos, nos aplicativos de streaming:  é uma estratégia eficaz para reduzir os riscos associados ao uso de telas em crianças. Isso pode ajudar a controlar o tempo de exposição, reduzir a hiperestimulação, promover autodisciplina, evitar conteúdo inadequado e incentivar pausas regulares. Combinado com a escolha de conteúdo de qualidade e outras práticas saudáveis, pode contribuir significativamente para um uso mais equilibrado e benéfico das telas.
  • Evite vídeos curtos, como os do TikTok ou “shorts”, do Youtube:  vídeos curtos podem ser mais prejudiciais devido à sua natureza de gratificação instantânea e rápida rotação de estímulos. A exposição repetida a vídeos curtos pode treinar o cérebro para esperar uma rotação rápida de estímulos, o que pode dificultar a capacidade de focar em tarefas mais longas e complexas. Na maioria das vezes, as crianças e adolescentes nem assimilam o que estão vendo. Vídeos mais longos, com enredos mais desenvolvidos e pausas naturais, tendem a ser menos prejudiciais e podem até oferecer benefícios educativos e de desenvolvimento. Desenhos animados e séries, geralmente têm histórias mais desenvolvidas que incentivam a atenção sustentada e a compreensão de enredos mais complexos. 
  • Prefira plataformas de streaming, em vez de redes sociais ou Youtube: as plataformas geralmente investem em produções de alta qualidade, com orçamentos maiores, o que pode resultar em histórias mais elaboradas, efeitos especiais avançados e atuações profissionais. Isso nem sempre é garantido em plataformas mais abertas, onde o conteúdo pode variar amplamente em termos de produção e qualidade. As plataformas têm equipes dedicadas à seleção e curadoria de conteúdo, garantindo que apenas materiais apropriados e de qualidade sejam disponibilizados. Em contraste, plataformas abertas, como YouTube e TikTok, dependem mais de algoritmos e de controle pelos próprios usuários para filtrar conteúdos inadequados.
  • TV pode ser melhor do que o celular, em algumas situações: em uma casa com mais de uma criança, assistir TV pode significar ter que entrar em acordo sobre a programação, rir e chorar juntos, conversar sobre o que foi visto depois do filme ou programa. Além disso, as crianças ficam a uma distância maior do aparelho, reduzindo o efeito negativo aos olhos. Também há menos distrações já que não há recursos interativos e notificações, além de haver menor risco de acesso a conteúdo inapropriado e maior controle, principalmente, quando os pais estão presentes no mesmo ambiente.  
  • Use antes, use junto: sempre que possível, assista aos conteúdos escolhidos junto com as crianças e promova trocas. Questione o que é ou o que há nos jogos, antes de liberar o acesso - e se puder assista e jogue antes. Leia a classificação de idade, veja os comentários de outros pais e procure fazer dessa atividade um momento compartilhado.
  • Educação digital: nunca é cedo demais para ensinar as crianças sobre segurança online, como não compartilhar informações pessoais, ter cuidado com chats. Responsabilidade, limites e consequências devem ser ensinados dentro do letramento digital desde cedo. 

Mais livros para repensar a relação das crianças com as telas

A fabulosa máquina de amigos (Brinque-Book, 2018), Nick Bland

Pipoca era uma galinha muito simpática. A mais simpática da fazenda Fricotico. Insistia em dizer olá para todos os amigos pela manhã, usava palavras como maravilhoso, fabuloso e alegrava todo mundo. Além disso, ela também contava histórias e fazia companhia aos outros animais. Até que um dia, no celeiro, encontrou um misterioso retângulo iluminado que dizia olá. O que seria aquele objeto? Ela resolveu dizer olá também, já que era tão simpática, e de "olá" em "olá", foi fazendo novos amigos. Será? Uma divertida fábula sobre relacionamentos na era da tecnologia, ilustrada com as cores, a irreverência e o talento de Nick Bland.

Que planeta é esse? (Pequena Zahar, 2024), Eduarda Lima

Capa de 'Que planeta é este?'

Era uma noite como outra qualquer, quando, de repente, sem aviso... TZZZZR! A cidade toda ficou no escuro. Sem luz e sem internet, lá se foi a reunião da mãe, o jantar do pai, a conversa da irmã com as amigas... Apagam-se as telas, então abre-se um livro e assim começa esta aventura. Atravessamos florestas ancestrais no Brasil e mares de mil cores na Austrália. Do Alasca à Papua-Nova Guiné, somos surpreendidos por aves-do-paraíso, desertos alienígenas e luzes que dançam no céu. Uau! Um a um, todos os membros da família se juntam e partilham o deslumbramento da natureza nas suas diversas manifestações. Nas páginas finais, somos levados a imaginar a utopia de uma "Cidade Verde", que fica como hipótese, desejo, esperança e incentivo ativista. É este o convite da premiada ilustradora Eduarda Lima: olhar lá para fora e redescobrir este planeta, cujo amanhã está nas nossas mãos construir.

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