Telas e celulares na escola: prejuízo ou aprendizagem?

16/07/2024

Como preparar crianças e jovens para um mundo digital sem deixar que a exposição a telas e redes sociais prejudique seu desenvolvimento? Eis a pergunta de milhões que não tem mais frescor de novidade, mas voltou a ser pauta em grupos de pais e reuniões escolares. Na onda do Movimento Desconecta, muitas famílias e escolas decidiram limitar, e até proibir o uso de celulares entre crianças e adolescentes.

O Movimento Desconecta é uma iniciativa de pais e mães da escola Beacon, uma instituição de elite de São Paulo (capital),  preocupados com “o uso precoce e excessivo de smartphone e redes sociais por crianças e adolescentes.” A proposta é, a partir de informações baseadas em evidências, propor um grande pacto coletivo entre famílias para postergar o acesso a smartphones e redes sociais, que deveria acontecer apenas a partir dos 14 e 16 anos, respectivamente.

Uma das obras que ancorou o surgimento dessa mobilização, e que tem ampliado o debate sobre os efeitos nocivos das telas para educação, é A geração ansiosa - Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais (Companhia das Letras, 2024), do psicólogo americano Jonathan Haidt. O livro mostra os prejuízos para o aprendizado e para as relações sociais, sobretudo no desperdício da infância. Haidt explica que “crianças humanas são programadas para se conectarem umas às outras, em parte por meio da sintonização e da sincronização de seus movimentos e emoções com as demais.” E o uso de smartphones e redes sociais atrapalham essa interação cara a cara que é tão fundamental nesse processo de conexão.

Algumas obras infantis também abordam os danos - e perigos - do contato precoce com as telas. Entre elas, A fabulosa máquina de amigos (Brinque-Book, 2018), de Nick Bland, que conta a história da galinha Pipoca. Ela se vê “cheia de novos amigos” que conhece apenas por troca de mensagens no celular.  No entanto, quando a galinácea decide encontrá-los no mundo real, eles não são nada do que ela pensava...

Ilustração de  'Papai, ó', de Marcelo Tolentino

'Papai, ó!' diz o menino insistentemente para ganhar a atenção do pai que não desvia os olhos da tela em Papai, ó (Pequena Zahar, 2024)

 

Papai, ó (Pequena Zahar, 2024), de Marcelo Tolentino, trata de maneira poética - e com um certo desconforto - como o contato contínuo entre nós, adultos, e nossos smartphones molda a forma como vemos o mundo e nossa relação com os filhos. Enquanto o menino tenta puxar o pai para o mundo de imaginação que ele próprio cria, o pai parece fixado à crueza da realidade sem tirar os olhos do celular.

LEIA MAIS: Verdade ou mentira? Como educar crianças em tempos de fake news?

Como tirar as telas de uma geração que precisa saber navegar em um mundo digital?


Um dos pontos defendidos por Haidt é a proibição total do uso de celulares nas escolas.


 “Durante todo o período de aula, em todas as escolas, desde o ensino fundamental até o médio, os alunos devem deixar trancados celulares, smartwatches e quaisquer outros dispositivos pessoais que possam enviar ou receber mensagens. Só assim sua atenção estará disponível para se concentrar nos colegas e professores.” Trecho de A geração ansiosa - Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais (Companhia das Letras, 2024)


Profissionais lembram, no entanto, que seu uso se tornou essencial na educação, já que a cultura e o pensamento digital integram o mundo globalizado e estão entre as exigências da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que prevê habilidades computacionais entre os alunos. Por isso é necessário entender como telas e celulares podem contribuir de forma positiva para o aprendizado escolar, sem prejudicar o crescimento individual e social dos estudantes.

Dividido em três eixos (pensamento computacional, mundo digital e cultural digital), o complemento ‘Computação’ da BNCC prevê ao estudante a capacidade de “expressar e partilhar informações, ideias, sentimentos e soluções computacionais utilizando diferentes linguagens e tecnologias da Computação de forma criativa, crítica, significativa, reflexiva e ética”. 

É necessário letramento digital, conhecimento da internet e dos elementos virtuais, como fake news, inteligência artificial e privacidade, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Também é necessário desenvolver habilidades de raciocínio lógico e solução de problemas. Mas como despertar tudo isso sem o auxílio das telas e celulares?

A solução pode ser utilizá-los de forma planejada e supervisionada, como explica a socióloga e doutora em Educação, Maria Helena Bertolini, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “As telas dos celulares podem contribuir para a aprendizagem, desde que haja um bom planejamento de uso pelos professores. Por exemplo, uma campanha fotográfica, um concurso, a partir do currículo pensado e elaborado. Nesse caso, os celulares entram como dispositivos para ensinar e aprender.”

Seu uso, reforça ela, precisa ser exclusivamente pedagógico. “Pesquisas com boas perguntas são fonte inesgotável de conteúdo. Logo, o projeto da escola deve ser muito bem pensado para incluir os dispositivos, para que seu uso não fique no entretenimento.”

LEIA MAIS: Quais serão os desafios do futuro para as crianças de hoje?


Tecnologia educacional com o apoio das telas

O uso das telas na aprendizagem é uma das ferramentas da tecnologia educacional utilizada na Beacon School, em São Paulo. Com 1.300 alunos, da Educação Infantil ao Ensino Médio, a escola proíbe totalmente o uso de celulares pelos estudantes, mas oferece dispositivos eletrônicos próprios (como tablets e computadores), plataformas e aplicativos no processo ensino-aprendizagem.

“Compreendemos o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TDIC) como parte integrante da sociedade contemporânea e, portanto, da vida. A utilização das tecnologias se estrutura de forma articulada ao currículo, buscando garantir sua utilização de maneira adequada, sistemática e consistente”, conta a coordenadora de EdTech da Beacon, Maria Eduarda Menezes.

Ela enfatiza que a tecnologia educacional estrutura as ações da área, tanto nas aulas que integram a grade curricular, quanto na orientação diária, baseada em quatro pilares: o Letramento Digital, com foco no uso proficiente de programas e aplicativos; a Cidadania Digital, voltada para o uso ético e consequente das tecnologias; a Aprendizagem Criativa, com o objetivo de aprender fazendo; e o Pensamento Computacional.

É necessário que os objetivos pedagógicos estejam claros e o uso dos dispositivos permita que os alunos explorem conceitos de forma prática e colaborativa. “As ferramentas podem ser utilizadas de diversas maneiras, como aplicativos de leitura, dispositivos de comunicação alternativa para alunos com dificuldades de fala e uma variedade de recursos adaptativos”, fala a coordenadora.

Jogos lúdicos também podem ser utilizados para que as crianças aprendam de forma divertida. “As tecnologias são utilizadas para a produção de conteúdo pelos próprios estudantes, como vídeos, podcasts e revistas”, diz Maria Eduarda.

LEIA MAIS: Como formar crianças leitoras na era digital?

As escolas que baniram os celulares 

Na Beacon, embora as telas façam parte das propostas pedagógicas, o uso de celulares é totalmente proibido para crianças até a quinta série. Para os alunos até o nono ano, o uso só é permitido no contraturno, desde que não estejam em atividade escolar. Já no Ensino Médio, só é permitido antes do início das aulas, na hora do almoço e no final do dia, fora das atividades escolares. “Excepcionalmente, poderá ser usado em sala de aula mediante orientações prévias do professor e com seu devido acompanhamento”, completa a coordenadora. 

Na escola Projeto 21, em Curitiba (PR) o uso do celular pelos 490 alunos da rede também é proibido. “Quando um aluno mais velho precisa trazer o celular para que possa voltar sozinho para casa, e ter esse acompanhamento virtual pela família, o equipamento deve estar sempre desligado e no fundo da mochila. Em nenhuma idade o aluno tem permissão de uso do celular”, afirma Yara Amaral, diretora da escola, que tem alunos da Educação Infantil ao Ensino Fundamental 2. “Isso significa que, para todo trabalho que é realizado digitalmente, o estudante deve fazer uso de material disponibilizado pela escola: chromebooks, laptops ou tablets”, destaca Yara. 

Todo o trabalho pedagógico voltado a materiais digitais é inserido desde os anos inciais, sempre com acompanhamento do estudante e qualificação da equipe. “É necessária uma formação para a curadoria do que pode ou deve ser levado para as crianças, quando isso será conveniente e, principalmente, com que objetivos isso deve acontecer”, diz ela. 

Para formar cidadãos digitais responsáveis e saudáveis, a psicanalista e mestre em tecnologias, Gláucia Brito, da UFPR, reforça ser fundamental a formação dos professores e o apoio conjunto. “É importante adotar uma abordagem multifacetada que envolva alunos, professores, pais e toda a comunidade escolar.”

LEIA MAIS: Plágio, direitos autorais, IA: os limites entre cópia e invenção


Mundo real e saúde mental: o que precisa estar em vista

Ilustração de 'Papai, ó', de Marcelo Toletino

O menino se esforça para fazer o pai enxergar a realidade além do celular em Papai, ó (Pequena Zahar, 2024), de Marcelo Tolentino

As tecnologias, no entanto, não devem substituir o contato com o mundo real. “A criança precisa muito de materiais naturais - muito mais de madeira que de plástico -, se enriquece com a atuação na terra, junto da natureza, e quanto mais experienciar o mundo com as próprias mãos e sentidos, mais rica será sua vivência”, observa Yara, do Projeto 21. 

Nestes momentos, o brincar livre é um ótimo substituto ao uso do celular.  Sem regras, num recreio prolongado, com desafios e objetos que estimulem interação e criação. É o que propõe Haidt em seu livro Geração Ansiosa. O brincar livre, destaca o psicólogo na obra, remete à aprendizagem socioemocional, que envolve fazer amigos, ter empatia, controle emocional, habilidades interpessoais, criatividade, inovação, pensamento crítico, colaboração, comunicação, autodireção, perseverança e habilidades sociais. A prática é uma das soluções apontadas pelo escritor para as escolas reduzirem problemas de saúde mental entre os estudantes, como ansiedade e depressão. 

Outra saída, segundo o autor, é eliminar completamente o uso do celular. “Proibição limitada ao tempo de cada aula é quase inútil. É uma política que não funciona, um incentivo a disfarçar o uso durante a aula e aumentá-lo depois dela, dificultando amizade com outras crianças. É por isso que as escolas precisam proibir os smartphones durante todo o dia. Quando os alunos chegam, devem guardá-lo em um armário específico ou em um estojo com cadeado. Ao fim do dia, eles podem reaver seus aparelhos”, sugere Haidt. 


Prejuízos das telas à aprendizagem e ao desenvolvimento de crianças e jovens

“Há alguma dúvida de que uma escola cheia de alunos mexendo no celular ou pensando nele quase o tempo todo — mandando mensagem, verificando as redes sociais, jogando durante a aula e o almoço — é um estabelecimento com menos aprendizagem, mais conflito e menor sensação de comunidade e pertencimento?”  Trecho de A geração ansiosa - Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais (Companhia das Letras, 2024)

Esses prejuízos são reforçados pela socióloga Maria Helena Bertolini, lembrando que o uso do celular é prejudicial quando não há um interesse pedagógico envolvido, “quando capturam toda a atenção dos estudantes para assuntos muito breves ou quando se permite o desperdício do tempo de concentração para temas sem importância no que diz respeito às aprendizagens”.

Entre os efeitos nocivos a curto prazo, completa a doutora em educação, pode-se perceber o desinteresse pelo currículo escolar a ponto de se perder a função social da escola. “A longo prazo, cada vez mais os estudantes vão perdendo a capacidade de abstrair, o que é fundamental para o desenvolvimento do pensamento crítico e científico.”

A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) também já reconheceu os efeitos adversos dos celulares. Em relatório divulgado em 2023, disse haver poucas evidências de que as tecnologias digitais melhorem a aprendizagem na sala de aula tradicional. Pelo contrário, o uso do celular está associado a menor desempenho escolar e maior disrupção em sala de aula. 

LEIA MAIS: Por que a escrita é a grande revolução da humanidade?

Uma mobilização coletiva: a proposta do Movimento Desconecta

A proibição dos celulares tem apoio de muitas famílias. Entre elas, os fundadores do Movimento Desconecta, que teve início em abril de 2024, em uma turma escolar de São Paulo, mas logo recebeu apoio de pais de 400 escolas em 18 estados brasileiros. “A escola é um ambiente incompatível com uso de celular. Durante as aulas os alunos e professores devem ter foco e atenção, sem distrações de notificações ou outros que o celular dispõe. E durante os intervalos os alunos devem brincar, socializar, resolver conflitos, se frustrar, praticar esportes, ler ou simplesmente não fazer nada”, diz Mariana Uchoa, uma das mães fundadoras do movimento.  

“Propomos algo para além das escolas, ou seja, que haja um adiamento do uso em todo e qualquer ambiente - em casa, escola, festas, etc”, fala. Ela conta que as escolas demonstram apoio ao movimento, que sugere a proibição de celular para menores de 14 anos e redes sociais antes dos 16. "Para os pais que sentem necessidade de se comunicar fora do horário escolar, sugerimos o uso de telefone celular simples, sem acesso à internet e redes sociais, mas capazes de fazer ligações e trocar mensagens de texto. Durante o horário escolar, havendo real urgência na comunicação, ela pode ser feita via secretaria, como sempre foi. Para acompanhar a localização dos filhos existem relógios e tags”, aponta a mãe. 

Entre as propostas educativas do grupo está o uso equilibrado, consciente e responsável, como não levar celulares para mesa na hora das refeições; configurar um limite de tempo para uso diário, especialmente das redes sociais; deixar o celular fora do quarto a noite, checando-o pela última vez pelo menos uma hora antes de dormir; e utilizar despertador separado do celular. “São medidas simples e factíveis, que reduzem o tempo de tela de todos na casa, promovendo mais conexão real entre os familiares”, conclui Mariana Uchoa. 

Por Mauren Luc

 

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog