Verdade ou mentira? Como educar as crianças em tempos de fake news

09/07/2024

O volume de informação cresce a uma velocidade inimaginável há poucas décadas. Parecia futurista acreditar que, hoje, seria possível estar conectado ao mundo todo e até criar diversos conteúdos com inteligência artificial. Mas será que nós estamos preparamos para lidar com o avanço - e a rapidez - dessa realidade? Será que, em meio a uma avalanche de informações que nos assola, vinda das mais variadas fontes, dia e noite, estamos preparados para identificar o que é importante e o que não é? O que é verdade e o que é mentira? A circulação de fake news, especialmente em tempos de eleições, pode ser uma verdadeira ameaça à democracia. 

Ilustração do livro 'Democracia' (Brinque-Book, 2024)

As informações falsas podem ajudar a erguer regimes totalitários - ilustração do livro 'Democracia' (Brinque-Book, 2024)

Questões como o uso da internet e das mídias sociais - e como esses fatores têm tudo a ver com a política - são discutidas no livro Democracia (Brinque-Book, 2024), de Philip Bunting. A obra apresenta os conceitos básicos que ajudam a entender o que é e como funciona uma democracia e analisa, de forma acessível, os fatores que a sustentam. E não é surpresa: nossa relação com a informação tem um papel crucial nessa equação. Afinal, o tipo de conteúdo ao qual somos expostos molda (e altera) nossa percepção do mundo, ajudando a consolidar nosso conjunto de valores e opiniões, nosso comportamento e também nossa visão sobre a política.

Há reportagens e investigações tentando mensurar o efeito da circulação de fake news - e a massiva atuação de robôs - no resultado de eleições presidenciais em diversos países - inclusive no Brasil. 

'A democracia talvez seja a ideia mais poderosa que nós, humanos, já tivemos. No entanto, democracias são delicadas. Temos que nos esforçar muito para que elas se mantenham e cresçam'. Techo do livro Democracia (Brinque-Book, 2024), de Philip Bunting

LEIA MAIS: 'Não fui eu!': as mentiras que as crianças contam

 

Excesso de informação é ruim para os adultos - e ainda pior para os jovens

Se os adultos estão sofrendo para navegar pela enxurrada de conteúdo propagado nas redes, imagine os jovens e adolescentes. Muitas vezes, eles têm mais habilidade para lidar com as novas tecnologias em si - sabem usar os aplicativos, configurar gadgets e usar os recursos disponíveis nas redes de forma intuitiva. Mas isso não quer dizer que tenham as habilidades necessárias para processar e entender os conteúdos aos quais são expostos. É essencial lembrar que eles ainda estão em desenvolvimento e precisam de orientação e ajuda para navegar e filtrar tanta inforamação, seja no mundo real ou no virtual.

“As fake news representam um desafio crescente, principalmente com a velocidade da evolução de tecnologias de inteligência artificial”, diz a professora Antônia Burke, líder do programa socioemocional Raízes e colunista de educação da revista Vida Simples. “Crianças e adolescentes, em geral, ainda não têm a capacidade crítica desenvolvida, o que os torna mais vulneráveis à manipulação. Há ainda a possível influência no consumo de conteúdos e decisões políticas, que podem moldar negativamente as percepções e comportamentos deles; as fraudes online, que estão cada vez mais bem feitas e elaboradas e, principalmente, o impacto na saúde mental desses estudantes”, acrescenta.

Antônia lembra ainda que, em muitos casos, as fake news veiculam conteúdo alarmista e sensacionalista, que pode causar medo e estresse. “Informações falsas sobre saúde, por exemplo, podem levar a comportamentos prejudiciais ou ao pânico”, aponta.

LEIA MAIS: Por que a escrita é a grande revolução da humanidade?

 

Inteligência artificial e os riscos à privacidade

Recentemente, alguns casos de falsos nudes, feitos por adolescentes, vitimando colegas de escola, chamaram a atenção. Esta é apenas a pontinha do iceberg do conteúdo falso e prejudicial em diferentes sentidos, que pode ser criado a partir das ferramentas cada vez mais populares de inteligência artificial. Quase com perfeição, é possível colocar o rosto de alguém, em outro corpo; colocar uma fala na voz e na imagem de uma pessoa que nunca disse aquilo e assim por diante - é o que se chama de deepfake. “Muitas meninas, principalmente, viram suas imagens associadas a pornografia, já que - na maioria das vezes - colegas de classe manipulam as imagens, adicionando corpos de outras pessoas. Isso é muito preocupante, arrisco dizer que pode ser um novo tipo de cyberbullying”, alerta a professora.

A inteligência artificial também ajuda na fabricação e na propagação de conteúdo falso ou confuso. Já é prática de alguns sites de notícia apelar ao uso desse tipo de ferramenta, substituindo parcial ou totalmente redatores e editores humanos, com conhecimento, experiência e critérios reais. 

 

Desmascarar fake news: quem está por trás da notícia?

O impacto das notícias falsas ou manipuladas em crianças e adolescentes tem sido uma preocupação para muitas famílias. Na visão da professora Antônia, porém, isso ainda não ameniza o cenário. “Muitas vezes, os adultos também não desenvolveram a capacidade de identificar as notícias falsas, de verificar as fontes. Logo, entendo que essa é uma função da escola, que deve ser estendida a toda a comunidade escolar”, avalia. 

Para a especialista, que criou um programa socioemocional para escolas que aborda especificamente a questão das fake news, mas também privacidade, intolerância, diversidades, violências, bullying e cyberbullying e comportamento na internet, esses temas não podem ser citados apenas uma vez ao ano, como acontece em muitas escolas. “É um trabalho constante e frequente de conscientização”, afirma. Vale lembrar que a Base Nacional Comum Curricular, um documento que serve de referência para todas as escolas brasileiras - públicas ou particulares - prevê o desenvolvimento de habilidades para preparar crianças e jovens para a participação em um mundo cada vez mais digital. No Ensino Médio, por exemplo, há uma habilidade a ser desenvolvida pelos jovens que prevê : "Avaliar a confiabilidade das informações encontradas em meio digital, investigando seus modos de construção e considerando a autoria, a estrutura e o propósito da mensagem." Checar a origem do conteúdo - onde foi publicado e por quem - é uma das formas de averiguar se estamos sendo enganado por uma notícia falsa. 

Que o diga a galinha Pipoca, personagem do livro A fabulosa máquina de amigos (Brinque-Book, 2018), de Nick Bland. Quando acha um celular em meio ao monte de palha do celeiro, a galinácea começa a trocar mensagens incessantemente e acredita ter feito novos amigos. A empolgação é tamanha, que ela decide fazer uma festa para conhecer em pessoa (ou em pena) seus novos camaradas. Imagine a surpresa dela ao descobrir que eles eram... lobos. Uma metáfora poderosa para nos fazer pensar quem está por trás das mensagens e notícias que trocamos online.

Ilustração de 'A fabulosa máquina de amigos', de Nick Bland

Hipnotizada pelo brilho do celular e pela avalanche de mensagens, a galinha Pipoca nem imaginava quem estava por trás de tantos olás em  A fabulosa máquina de amigos (Brinque-Book, 2018)

LEIA MAIS: Quais serão os desafios do futuro para as crianças de hoje?

Antônia explica que as fake news se relacionam de diversas formas a comportamentos sociais, segurança e saúde mental. “Crianças já são capazes de compreender as consequências das notícias falsas. Quando falamos de mentira, por exemplo, podemos ampliar a discussão, mostrar exemplos, criar histórias. No caso dos adolescentes, a pesquisa, o debate e o estudo de casos ajudam muito a conscientizar”, orienta.

 

Fake news: o que crianças e adolescentes precisam saber 

1) Em primeiro lugar, é preciso informar, ensinar a verificar fontes, a consultar sites que ajudam nessa identificação e, infelizmente, ensinar a sempre desconfiar.

2) A interpretação de textos é essencial para o momento tecnológico em que estamos. Problemas de comunicação - seja na fala, seja na escrita – são frequentes e isso contribui para a disseminação de notícias falsas. Saber interpretar o que o outro disse, identificar ironias, reconhecer quando a mensagem foi passada de forma equivocada… tudo isso é importante e pode ser ensinado.

3) É importante, também, orientar a respeito das consequências de manipular informações e imagens. É preciso que crianças e adolescentes saibam que podem ser responsabilizadas criminalmente por isso.

4) O acesso a celulares e à internet acontece cada vez mais cedo e, na maioria das vezes, sem a supervisão necessária. “Nesse caso, sou bem radical: não é possível oferecer privacidade total a uma pessoa que está em desenvolvimento. Os riscos são muito maiores do que as possíveis consequências de um controle parental teoricamente exagerado”, opina Antônia.

5) A observação, o acompanhamento e o diálogo frequente - sem julgamentos - ajudam muito.

LEIA MAIS: 15 livros para conversar sobre política com as crianças

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog