O que é um livro ilustrado?

28/08/2024

Foi-se o tempo em que os livros ganhavam ilustrações apenas para embelezar as páginas.

Ilustração de 'O muro no meio do livro'

Em O muro no meio do livro (Pequena Zahar, 2019), texto e imagens são interdependentes para construir o sentido da narrativa - e supreender o leitor!

Com os livros ilustrados, as imagens ganham protagonismo na narrativa, contando histórias de forma a complementar - ou subverter - o texto. O papel das ilustrações ganha importância, adicionando não apenas cores e formas ao livro como objeto, mas desenhando novas camadas de sentido à narrativa. A imagem deixa de estar submissa ao texto, presa, com o compromisso de retratar o que as palavras ditam, para andar de mãos dadas com as palavras, em pé de igualdade. É no diálogo entre entre a imagem e o texto que a narrativa se desenha, não de forma óbvia, mas a partir da interpretação do leitor. Depende dele estabelecer essa correlação entre o que as ilustrações contam e o que o texto conta, tecendo uma narrativa singular. 

Mas quando - e como - um livro ilustrado nasce? 

LEIA MAIS: "O ilustrador é um escritor de imagens"

Feitos um para o outro: o texto e a imagem no livro ilustrado

A diferença entre um livro ilustrado e um livro que simplesmente tem ilustrações tem tudo a ver com a relação que se estabelece entre texto e imagem - às vezes considerando até o livro enquanto objeto. Se no livro com ilustração, a imagem está a serviço do texto, limitada ao que as palavras nomeiam, no livro ilustrado – que também leva o nome de livro-álbum ou picture book – texto e ilustração não são um mero complemento, mas uma coisa só, como explica Odilon Moraes, autor, ilustrador e pesquisador referência do livro infantil ilustrado.

Odilon toma como exemplo a música: no livro com ilustrações, a ilustração, como subordinada ao texto, é como a interpretação de uma canção. “Quando o Caetano Veloso toca Dorival Caymmi, ele é autor da interpretação que ele faz do Dorival. Ele não é autor da música. Na ilustração, um ilustrador que vai ilustrar a Chapeuzinho Vermelho é o autor da interpretação que ele faz do Perrault”, explica Moraes.

No caso do livro ilustrado é diferente: os elementos que o compõem – texto, ilustração e design – são tão indissociáveis, tão dependentes uns dos outros, quanto são a melodia e a letra de uma música. “Imagina na música: se você pega Garota de Ipanema e decide mudar de gravadora. E essa gravadora quer comprar só a melodia do Tom Jobim e decide contratar outra pessoa para escrever a letra. Isso não existe. Quando o casamento foi feito, a obra é o casamento”, conclui Odilon.

E assim como em um casamento, também no livro ilustrado as narrativas do texto e da ilustração podem ora se complementar, ora se contradizer, mas sempre trazendo novas camadas de sentido. E o interessante é que isso exige uma certa perspicácia do leitor, que precisa entender o jogo que se estabelece entre imagem e texto, para dele extrair sentido. Assim, tem a história que o texto narra, tem a história as imagens narram e tem uma terceira versão: que é resultado da sinergia entre a história e as imagens, em uma relação inquebrável.

LEIA MAIS: Alargar o olhar: a função poética do livro ilustrado

A terceira narrativa: entre a contraposição e a afirmação

Ilustração de 'O anjo da guarda do vovô'

Não era só sorte! O anjo da guarda, retratado apenas nas ilustrações, dá um novo sentido ao que o texto conta em O anjo da guarda do vovô (Companhia das Letrinhas, 2024)

Em O anjo da guarda do vovô (Companhia das Letrinhas, 2024), de Jutta Bauer, um velhinho, deitado em uma cama de hospital, narra ao neto suas peripércias desde a infância. "Eu era terrível..." ele começa contando. Mas ao avançar nas páginas, o leitor se depara com a presença  permanente do anjo da guarda do vovô, o elemento responsável por sempre fazer com que tudo terminasse bem (ou quase). A presença do anjo faz o leitor questionar quem é o verdadeiro protagonista - não era sorte, afinal! - trazendo surpresa e humor. Mas vai além, acrescentando o consolo de uma presença amiga mesmo nas horas mais escuras - na guerra, na fome e na iminência da despedida entre avô e neto. É um exemplo do contraponto estabelecido entre texto e imagem, que cria um jogo de sentido capaz de desenhar uma nova narrativa. 

Esse jogo de oposição acontece também O muro no meio do livro (Pequena Zahar, 2019), de Jon Agee. Na história, o pequeno cavaleiro está confiante de que o muro que está no meio do livro protege o seu lado, o lado bom do livro, dos perigos do outro lado. Mas não é isso o que o leitor vê. Enquanto o cavaleiro ignora os perigos do seu lado do livro - que claramente não é tão bom! - o lado de lá se revela bem mais acolhedor, trazendo o elemento-surpresa que dá graça à história. Texto e imagens se contradizem, criando um jogo interessante, que faz o leitor tentar, por ele mesmo, escolher qual é, afinal, o lado menos pior do livro... 

 

Ilustração de 'O astronauta'

Fora de órbita: O astronauta (Pequena Zahar, 2024) constrói um paralelo delicado entre o envelhecimento e a perda da memória e viagem dos astronautas ao espaço

Já no recente O astronauta (Pequena Zahar, 2024), de Carol Fedatto e Amma, vemos como a relação que se estabelece entre texto e imagem pode intensificar a narrativa, em um um jogo que não é de oposição, mas de afirmação.  O livro trata de um tema fraturante: o envelhecimento, que vem acompanhado da perda de saúde física e mental. O pai, que sempre vivera com os pés no chão, agora era atravessado por nuvens, "passava por crateras e nebulosas". Nas imagens assistimos ao passar dos anos e ao seu declínio -  junto com os cabelos brancos, o traços de seus rosto também vão se apagando. À medida em que ele se afasta de todos, ficando cada vez mais fora de órbita, vai se metamorfoseando em astronauta - até o dia em que foi viver ao lado da lua. Um exemplo de como o jogo entre palavras e imagens pode ampliar e intensificar a narrativa, trazendo produndidade e, neste caso, construindo a poética. 

O clássico A árvore generosa (Companhia das Letrinhas, 2017), de Shel Silverstein, vai pelo mesmo caminho. A árvore e o menino se amavam profudamente - e a árvore era feliz. Mas à medida que os anos passam, o menino se afasta. E cada vez que visita a antiga amiga, leva consigo algo dela. O leitor assiste - entre estarrecido e enternecido - à árvore perder suas maçãs, depois seus galhos, depois seu tronco... O que sobra - da árvore e do que sentimos sobre a relação ambigua entre ela e o menino - cabe a nós, como leitores, processar. 

Em todos esses livros, fica clara a relação de interdependência que se estabelece entre texto e imagem para construir sentido. Se olhamos só para a imagem ou só para o texto, vemos duas histórias completamente diferentes - e mais rasas.  

LEIA MAIS: Fazer das emoções histórias: a arte de Jutta Bauer

Das iluminuras ao livro ilustrado: uma breve história da ilustração no livro

Hoje, acompanhando a relevância dos livros ilustrados, cada vez mais presentes no catálogo de editoras e em destaque nas vitrines de livrarias, pensar na evolução do papel das ilustrações na história do livro é no mínimo curioso. 

De acordo com a pesquisadora Sophie Van der Linden, em Para ler o livro ilustrado (Cosac & Naify por SESI-SP Editora, 2020) , o livro foi sempre pensado para abrigar o texto. Na Idade Média (mas também durante boa parte da história do livro), a ilustração era vista como instrumento decorativo, um acessório para manuscritos – em geral religiosos – e acessível apenas a alguns grupos privilegiados. Esse trabalho de “embelezar” o texto era chamado de iluminura.

Já com o nascimento da imprensa e a evolução dos processos gráficos, a reprodução de ilustrações se tornou mais fácil, mas foi só com a “democratização” do livro que os impressores começaram a pensar em formas de equilibrar texto e imagens (que explicavam o texto) na mesma página. É nesse momento de avanços técnicos, em que ganha território o estudo do espaço do livro, que surgem também mais obras com ilustrações para crianças. Ainda assim, esses livros ainda se limitavam muito  ao modelo de alternância entre imagens e blocos de texto.

No início do século XX é que se tem enfim a inversão da predominância do texto sobre a imagem: este é o princípio do livro ilustrado moderno. Nesses livros, o olhar do leitor é orientado para as imagens, que não só ocupam maior espaço na página como também na narrativa. Entre eles, o clássico infantil A história de Babar, o pequeno elefante (1931), do autor e ilustrador francês, Jean de Brunhoff.

Ilustração de 'Onde vivem os monstros', de Maurice Sendak

A jornada fantástica de Max à terra onde vivem os monstros se tornou exemplo máximo do livro ilustrado - Onde vivem os monstros (Companhias das Letrinhas, 2023)

O livro ilustrado como o conhecemos hoje, em que texto, imagem e projeto gráfico andam juntos, como uma coisa só, surgiu entre as décadas de 1950 e 1960, resultado do entendimento da ilustração e de todos os outros elementos que compõe o livro (e não só o texto!) como expressão artística. O autor e ilustrador Maurice Sendak é o maior representante desse momento do livro ilustrado, tendo como sua obra máxima o livro Onde vivem os monstros (Companhia das Letrinhas, 2023), um clássico da literatura infantil adorado por gerações, considerado o melhor livro infantil do mundo. Mas é importante lembrar que os livros ilustrados, embora mais presentes na literatura infantil, também agradam adultos. E o mercado editorial já registra o (lento) crescimento de livros ilustrados voltados para os leitores "grandes".

LEIA MAIS: A natureza selvagem de Maurice Sendak: 'a mágica da infância é a sua estranheza'

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog