Fazer das emoções histórias: a arte de Jutta Bauer

11/07/2024

Quem passa os olhos pela obra da artista alemã Jutta Bauer, 69, à procura da faísca que suscitou mais de 80 histórias publicadas talvez encontre resposta na atenção aos sentidos. Em quase 40 anos de carreira – para sermos exatos, 39 – escrevendo e desenhando para crianças, suas personagens frequentemente estão envolvidas em tarefas do dia a dia - conversar com o vizinho, fazer o jantar, preparar-se para dormir. Porém, não é isso o que faz delas pessoas como você e eu- e, sim, aquilo que pensam e sentem. Há o medo de ficar sozinho. Há os dias em que a gente se desfaz em mil pedaços. Há  as violências típicas de estar no mundo. E para cada uma dessas situações, há uma história: que estende uma mão, dá um colo ou inventa um bando de raposas invisíveis.

Entre uma experiência e outra, o leitor de Jutta Bauer se depara com perguntas filosóficas, mesmo sem pronunciá-las. “O que é felicidade?”, “Como demonstrar amor?”, “Será que eu sou feliz?”. E se vê refletido em personagens somos nós, felizes ou angustiados, lidando com a vida. Seja para um pinguim, uma ovelha ou um homem atravessando uma guerra, há sempre espaço para uma experiência comum. Suas histórias nos provocam a imaginar o mundo como ele poderia ser.

Uma de suas obras mais emblemáticas, O anjo da guarda do vovô (Companhia das Letrinhas, 2024) acaba de ganhar uma nova edição, com tradução da poeta Sofia Mariutti. O livro, que é frequentemente referenciado como um dos melhores exemplos de livro ilustrado, pela narrativa que nasce da relação que se estabelece entre texto e imagem, conta a história de um avô que sempre compartilhava com o neto episódios marcantes de sua vida. As lembranças ecoam aventuras da infância e marcas de guerra, em uma costura impecável entre texto e imagem. A obra condensa o estilo narrativo que situa Jutta Bauer entre as mais artistas mais expressivas da literatura ilustrada do mundo. Em 2010, Bauer recebeu o Prêmio Hans Christian Andersen pelo conjunto de sua obra, e, em 2001, o renomado Prêmio de Literatura Juvenil Alemã. 

Jutta Bauer Crédito: MaguaRed

A autora Jutta Bauer. Crédito: MaguaRed


“Fiz todos os meus livros para aprender com eles. Dentro deles estão escondidos desejos, aquilo que gostaríamos que fosse.” (Jutta Bauer, em entrevista à Moka Seco, 2017)


Do desenho desde a infância à arte como ofício

Quinta filha de Franz e Berta Bauer, Jutta Bauer nasceu em janeiro de 1955 em Volksdorf, nas proximidades de Hamburgo, na Alemanha, onde fica seu ateliê, o coletivo de arte Goldbekhof. Após a morte do marido, a autora vive na companhia do seu gato, de muitos pincéis e lápis de cor, e dos inúmeros protótipos de personagens, entre um apartamento em Hamburgo, e uma casa no lago em Schwerin.

Na escola, sofria com o que ela chama de incapacidade lógica, mas costumava ouvir dos professores que tudo iria dar certo. “Os professores do colégio diziam para eu não me preocupar, porque mesmo que fosse um desastre em outras matérias, pelo menos poderia desenhar muito bem”, disse a autora, em entrevista à Moka Seco, em 2017. Foi na família que desenvolveu a autoconfiança que transparece em seus enredos e personagens. Segundo a autora, recebeu dos pais a dose certa entre acolhimento e segurança. “Eles não te mimam e nem elevam ao céu”, declarou à especialista em livros infantis alemã Caroline Roeder.

A alemã Jutta Bauer ainda criança

A alemã Jutta Bauer desenha e imagina histórias desde a infância. Arquivo pessoal / facebook.com/jutta.bauer.98


Quando criança, ela gostava de ler catálogos que chegavam pelo correio. As referências artísticas naqueles primeiros anos iam da cultura cotidiana alemã até grandes nomes da arte mundial, como o francês Jean Effel, passando por publicações populares na Europa, como Petzi, série em quadrinhos de Carla e Vilhelm Hansen. Outro destaque no repertório artístico de Bauer são as aventuras dos Moomins, famosos personagens da escritora finlandesa Tove Jansson, que viraram febre na Alemanha nos anos 50. 

 Moomins (fonte: Pinterest)

Referência afetiva para Jutta Bauer, Os Moomins já viraram desenho para TV, história em quadrinhos e até parque de diversões, na Finlândia. No Brasil, a série é publicada pela Autêntica. fonte: Pinterest


Aos 69 anos, ela se mantém atenta a novos talentos da ilustração contemporânea, como os jovens franceses Marc Boutavant e Benjamin Chaud, artistas que admira, e, quando está criando, não se preocupa em determinar quem vai ler. O convívio desde cedo com diferentes referências artísticas alimentou uma convicção que a autora imprime até hoje nos livros: a importância da bibliodiversidade, apoiada na singularidade de cada leitor. 

 

“As crianças são muito individuais, assim como os adultos. Você não pode simplesmente prescrever um livro para crianças da mesma maneira.” (Jutta Bauer, em entrevista à Caroline Roeder)

 

Antes de cursar design na Faculdade Hamburgo, a ilustradora fez muitas coisas. Trabalhou como auxiliar de enfermagem em um lar para pessoas com deficiência e como babá. Foi também membro do Grupo de ilustradores de Hamburgo, nos anos 80. Aquele foi o período em que publicou os primeiros livros, como Zauberbäcker Balthasar (1981 – em tradução livre, “Balthasar, o padeiro mágico”), de Uwe Wandrey; Gülan mit der roten mütze ( 1981 – “Gülan com o chapéu vermelho”), de Ilse Ibach; e Die reise zur wunderinsel: eine fast wahre geschichte, de Klaus Gordon (1983 – “A viagem para a ilha das maravilhas: uma história quase verdadeira).

A partir de 1985, Bauer trabalhou como cartunista, durante sete anos, em uma das mais conhecidas revistas feministas da Alemanha, a Brigitte. Ainda nesse período, em 1986, nasceu seu primeiro e único filho, Jasper, hoje com 38 anos. Jutta Bauer também já atuou como professora, ensinando ilustração na Universidade Bauhaus, entre 2006 e 2007, instituição que é a principal referência da arte de vanguarda alemã.

Além de seu reconhecido trabalho na literatura ilustrada, com dezenas de livros publicados e exposições em diversos países da Europa, a autora atuou fornecendo ilustrações e desenhos animados para publicações e filmes de animação. Durante anos, Jutta trabalhou com as autoras de livros infantis Kirsten Boie – com quem produziu a série de sucesso Juli – e Christine Nöstlinger. Hoje, a artista passa boa parte de seu tempo lendo, desenhando e conduzindo workshops em todo o mundo, além de oferecer cursos de ilustração.


Traumas visíveis e invisíveis na obra de Jutta Bauer

O anjo da guarda do vovô (Companhia das Letrinhas, 2024), publicado originalmente na Alemanha em 2001, é uma das criações mais conhecidas da bibliografia da autora, com tradução para dezenas de idiomas.A nova edição que acaba de chegar pela Companhia das Letrinhas tem tradução da poeta Sofia Mariutti. Ajudando a trazer beleza aos traumas da guerra, a autora se inspirou no próprio pai, que passou pela Primeira e pela Segunda Guerra Mundial. Em suas entrevistas, Jutta Bauer costuma contar que na infância não ouvia uma palavra do pai sobre o assunto, e foi justamente por isso que resolveu criar a história, como um incentivo aos avós para conversarem sobre suas dores do passado.

ilustração de O anjo da guarda do vovô

Em O anjo da guarda do vovô (Companhia das Letrinhas, 2024) os leitores são os únicos que conhecem o mistério que envolve a vida dos personagens. 

No livro, destacam-se elementos inventivos que até hoje são considerados referência no estudo dos livros infantis, como o contraponto narrativo, em que as linguagens verbal e visual brincam com os caminhos do texto, cada uma contando uma história diferente. E também a síntese das palavras, o traço marcado por detalhes narrativos, e um humor escondido nas entrelinhas. “Este é um livro com duas narrativas entrelaçadas: a que o avô conta ao neto e uma outra à qual só nós leitores temos acesso”, conta o ilustrador e pesquisador do livro ilustrado Odilon Moraes, na contracapa da nova edição brasileira.


“[O anjo da guarda do vovô] É uma história que nos mostra que há sempre algo de misterioso e encantado por trás de nossa vida cotidiana.” (Odilon Moraes, artista)


Ao abrir o livro, o leitor recebe o primeiro convite à leitura e uma pista do que vem a seguir. “Vovô adorava contar histórias. Ele sempre contava alguma quando eu ia visitá-lo”. A partir daí, acompanhamos, em retrospectiva, a vida de um avô enquanto o neto o visita no hospital. O que sabemos é que ele está doente, e que o neto está ouvindo suas aventuras. Mas, entre uma história e outra, um detalhe chama atenção: o avô nunca está sozinho como pensava estar. 

As motivações de O anjo da guarda do vovô dizem muito sobre o gênio criativo da autora, entre a necessidade de dizer e a sensibilidade do “como” dizer. O que nem todo mundo sabe é que o momento “eureka” para este livro aconteceu enquanto ela observava pela janela as crianças da escola vizinha onde trabalhava. Sua mesa de desenho ficava no estúdio de um amigo do cinema. Ali, Jutta costumava passar um tempo olhando para uma mesma cena: as crianças brincavam e se divertiam, mas também se perdiam em pensamentos. Uma distração que parecia natural por ser contemplativa, como os artistas costumam fazer. “Observando aquilo, não pude deixar de pensar que todas essas crianças geralmente chegam em casa em segurança. Então tive a ideia do anjo da guarda”, conta a autora. 

Na época, ela procurava ideias engraçadas para um filme. Aquele que viria a ser um dos clássicos infantis mais lidos da Europa não foi, afinal, concebido inicialmente como um livro para crianças.

Jutta valoriza o encontro dos leitores com os livros, e seus livros não seguem receitas do que é um livro adequado para este ou aquele público. 


“Acredito que as histórias são como vasos. Eles oferecem um formulário, mas cada leitor – seja jovem ou velho – preenche-o novamente com as suas experiências e as suas histórias individuais.” (Jutta Bauer)


A autora alemã Renate Raecke resumiu as qualidades de Jutta em um texto publicado na revista especializada JuLit: “Talvez seja isso que defina a força de Jutta Bauer: o olhar exigente e a linha desenhada, em combinação com a expressão que liberta associações. Suas palavras e imagens são apenas dicas sobre as quais o espectador reflete e, na melhor das hipóteses, amplia. Intelecto e emoção combinam-se no seu trabalho de uma forma sem precedentes”, diz.


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Por onde começar a ler Jutta Bauer?

Quem acessa o site oficial da autora logo se depara com uma simpática e peluda criatura. Uma pequena ovelha, que aguarda na página principal, feito um cartão de visitas animado. É Selma, a protagonista de um de seus best-sellers. 

Selma, de Jutta Bauer
 

Selma, a famosa personagem de Jutta Bauer que encontra beleza no comum do dia a dia. Divulgação.


Basta uma passagem do cursor para ela mexer as patas, pronta para voar, com uma mochila cor-de-rosa nas costas. Um clique leva a um universo familiar, mas também potencialmente desconhecido, todo escrito em alemão. A brincadeira interativa continua na próxima página, que fala com o leitor como se recebe um velho amigo para um café da tarde. É uma declaração de amor literária, assinada pelo escritor suíço Jürg Schubiger, vencedor do Hans Christian Andersen em 2008. “O que Jutta Bauer nos traz são boas notícias de um mundo habitável. Mas sua habitabilidade não é de forma alguma garantida. Existem os desabrigados e um sentimento de abandono. Você vira as páginas ainda mais. O sentimento tocou você friamente. Na próxima vez que você ler, você vira duas páginas de cada vez, e fica. Morar junto, você percebe, é precioso.” Pronto, estamos prontos para entrar nos livros como se estivéssemos em casa.

Há muitas portas de entrada na vasta produção infantil da autora, e, possivelmente, poucas de saída, considerando o frequente encantamento que acomete seus leitores. No Brasil, os leitores podem ler Jutta Bauer desde o início dos anos 2000, quando foram publicadas suas primeiras edições em língua portuguesa pela extinta Cosac Naify. 

Histórias como A rainha das cores (Cosac Naify, 2003), sobre o quall Jürg Schubiger escreveu: “imagino que oa ilustrador está segurando um sanduíche de mel”; Selma (Ciranda na Escola, 2023; Cosac Naify, 2007), Mamãe zangada (Cosac Naify, 2008), e Eu passei pelo inferno (Cosac Naify, 2015) conquistam leitores cativos no Brasil, não só pela simplicidade que a autora mobiliza para mostrar a complexidade humana, mas também como uma espécie de voz que sempre fala a verdade. Não há meias palavras – e nem meias imagens – ou concessões, seja o leitor uma criança pequena ou alguém já no fim da vida.

Recentemente, chegaram ao Brasil edições de outros livros da autora. O mais atual em língua portuguesa é O anjo da guarda do vovô. Os leitores podem encontrar Cadu está a caminho (Camaleão/Alta Books, 2024), sobre a saga de um rato que precisa passar um recado ao rei, mas nunca consegue chegar ao seu destino. Há também a edição Por que moramos fora da cidade? (Sesi, 2018), em parceria com o premiado escritor suíço Peter Stamm, que conta a história de uma família que vive em lugares inesperados e muitas vezes inóspitos, como uma floresta, uma ponte, um ônibus e até na Lua. 

Em uma obra extensa, que envolve livros autorais e diversas parcerias, muitas criações de Jutta Bauer permanecem sem tradução em língua portuguesa. São obras que valem a pena conhecer. É o caso de Steht im wald ein kleines haus (2012 – em tradução livre: “Uma pequena casa no bosque”), que conta sobre um grupo de animais que dão abrigo uns aos outros para fugir de um caçador. E também de Ich sitze hier im Abendlicht (2003 – em tradução livre: “Estou sentado aqui ao entardecer”), que traz cartas coletadas e ilustradas por Jutta Bauer, incluindo algumas inventadas, como uma toupeira que escreve para si mesma. 

Outros exemplos podemos citar Abends, wenn ich schlafen geh (2007 – “Quando vou dormir à noite”), publicado originalmente nos anos 90, e inspirado no filho de Jutta e seu amor por raposas. O livro conta quem toma conta das crianças durante o sono. E também in mittelschönes Leben (2011 – “Uma vida até que agradável”), de Kirsten Boie, sobre um homem que fica sem teto depois de uma tragédia, além da série Emma (2009), coleção infantil que mostra o cotidiano de uma criança pequena, trazendo como personagem principal uma ursa em suas primeiras descobertas. 

Dentre seus livros em coautoria mais recentes publicados fora do Brasil, estão Der Bärbeiß (2024 – “A mordida do urso”), série em parceria com Annette Pehnt e Josephine Mark, Oh, Weia! Kriese auf der wiese (2023 – “Oh, céus: crise no campo”), projeto em conjunto com Franziska Ludwig, e criado em parceria com uma fundação de proteção climática da Alemanha, além de Kater Liam (2021 – “Gato Liam”).

Maternidade real e os ‘temas difíceis’

Quem já viu um coração se encolher depois de uma briga não se esquece de uma das cenas mais emblemáticas criadas por Jutta. Em Mamãe zangada ((Cosac Naify, 2008), um filhote de pinguim se despedaça em pleno ar depois de um grito da mãe. A coragem de expor as imperfeições das relações, o afeto que algumas vezes se manifesta em medo ou autoridade desmedida, os modos irregulares de ser gente: todas essas coisas têm lugar nos livros da autora. 

Em entrevista ao site alemão Kinderbuch, Jutta se autodefine como uma pessoa corajosa, tanto na vida quanto nos livros, e confia na empatia provocada pela sua obra. “Algumas pessoas rejeitam as suas ideias antes de implementá-las. Geralmente, eu termino minhas coisas. A coragem para fazer isso vem do fato de que na maioria das vezes deu certo”, ela diz. Não por acaso, muitos de seus livros tratam de assuntos considerados difíceis – talvez, mais para os adultos que para as crianças –, como a perda, a raiva, o medo.

Em 2018, Jutta publicou um livro juvenil, produzido em parceria com a sobrinha, a designer gráfica e ilustradora Katharina J. Haines. Ainda sem edição no Brasil, Armut: Schüler fragen nach (em tradução livre, “Pobreza: os alunos fazem perguntas”) fala sobre desigualdade social, coletando perguntas das crianças sobre o tema, e trazendo respostas de personalidades famosas, como o rapper Samy Deluxe e o jogador de basquete Dirk Nowitzki. “Por que os ricos estão sempre felizes e os pobres estão sempre tristes?”, “Por que os apartamentos estão ficando cada vez mais caros?”, pergunta o livro.

Jutta Bauer é fã declarada da série Ursinho Pooh, clássico infantil do inglês Alan Alexander Milne. A saga do urso que caminha pela floresta filosofando sobre a amizade, o tempo e a natureza, fazendo trapalhadas enquanto aprende a viver, faz lembrar uma das histórias mais conhecidas da autora: Selma. O livro foi traduzido no Brasil nos anos 2000 e, no ano passado, ganhou nova publicação. Na história, a ovelha é, como o urso de Mine e também como nós, em muitos momentos, cheio de perguntas e sem nenhuma resposta, apenas querendo encontrar a felicidade.

O que a criança encontra em Jutta Bauer não são adultos que sempre sabem o que fazer, mas personagens cheios de camadas, que erram e tentam consertar. Já os adultos se identificam com essas personalidades que improvisam, sem respostas prontas nem sucesso garantido. Uma obra que pode ser apreciada por leitores diversos, como é característico da literatura crossover, capaz de dar vida, em qualquer fase, às ambivalências da infância.


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