Normal é ser diferente: como estimular as crianças a conviver com a diversidade

02/09/2024

"Não espere coitadismo ou exemplos de superação, não. Espere crianças como você e como eu, que têm em comum a infância cheia de aventuras e descobertas.”

O alerta é sobre o livro ABPcD: Letras, vidas e infâncias de pessoas com deficiência (Companhia das Letrinhas, 2024) e parte de uma das autoras, a jornalista e infuenciadora Ana Clara Moniz. Em parceria com Lígia Azevedo, Ana Clara apresenta 26 biografias em um formato inusitado: por meio de histórias de infância, ilustradas por Bruna de Assis Brasil.  "Da letra A até a letra Z, são nomes de pessoas do mundo inteiro, que fizeram alguma coisa muito legal”, explica Ana Clara em suas postagens.

Os relatos mesclam fatos com alguma dose de imaginação, percorrendo o passado de personalidades como a artista Frida Kahlo, a ativista Greta Thurberg e o atleta Xu Qing. Frida contraiu poliomielite quando criança e aos 18 foi vítima de um acidente. Greta tem síndrome de Asperger, uma forma de autismo. E Xu perdeu os dois braços em um acidente de carro quando ainda era criança - e hoje é o maior medalhista paralímpico da China.

Ilustração de ABPcD, de Ana Clara Moniz

Frida Kahlo retratada por Bruna de Assis Brasil em ABCpD: Letras, vidas e infâncias de pessoas com deficiência (Companhia das Letras, 2024)

Já Ana Clara foi diagnosticada, ainda bebê, com uma condição rara chamada Atrofia Muscular Espinhal, mais conhecida como AME. É uma doença degenerativa que faz com que ela não tenha força nos músculos do corpo. Por isso, ela usa sua cadeira de rodas - que chama carinhosamente de Janaína  (“Jana” para os íntimos), para se locomover. 

Embora todas as pessoas retratadas no livro tenham algum tipo de deficiência, o livro não é sobre isso, mas sobre as histórias de cada um deles. Suas identidades, suas aventuras, seus sonhos. "Da letra A até a letra Z, são nomes de pessoas do mundo inteiro, que fizeram alguma coisa muito legal”, explica Ana Clara em suas postagens. 

ABPcD

ABPcD: Letras, vidas e infâncias de pessoas com deficiência (Companhia das Letrinhas, 2024), do livro de Ana Clara Moniz tras histórias de pessoas com deficiência

O que todos esses relatos mostram juntos é que antes de qualquer deficiência estão pessoas, com um universo de subjetividades que as tornam únicas. E que a diversidade faz parte da natureza humana.

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Ser diferente é normal - e precisamos mostrar isso às crianças

Carolina Videira, fundadora da Turma do Jiló, organização que promove a educação inclusiva, defende a importância de expor as crianças à diversidade o quanto antes. '“É importante explicar, desde cedo, que todas as pessoas têm maneiras diferentes de comunicar, de se mover, de aprender e de interagir com o mundo. É preciso conversar sobre essas diferenças de forma natural, antecipar, fazer perguntas, como: ‘Você já viu uma pessoa que usa uma bengala? Sabe por que isso é importante para ela?’ Essas conversas ajudam a normalizar e a reduzir o estigma”, explica.

É claro que o ideal é promover a convivência com crianças e adultos com deficiência. Mas além disso, oferecer livros, filmes e brinquedos que representem a diversidade humana são ações importantes. “Essas são ótimas ferramentas para ajudar a criança a naturalizar que aquelas pessoas existem”, afirma Carolina,

Ilustração de ABPcD

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Olhar a pessoa antes de olhar a deficiência

Para conversar com as crianças sobre tantas possibilidades diferentes de ser, pensar e interagir com o mundo, é importante se educar primeiro e usar os termos certos, sem cair nos estereótipos que desvalorizam e reduzem as pessoas. Capacitismo é a palavra usada para definir o preconceito e a ideia geral de que pessoas com deficiência são incapazes ou são inferiores. 

“A sigla PcD [usada para “pessoa com deficiência”], por si só, já é capacitista”, afirma Carolina. Ela explica que é melhor dar preferência ao termo completo e falar sempre "pessoas com deficiência". Dessa forma, há mais destaque à pessoa e não à deficiência. "Isso ajuda a tratar todo mundo com mais respeito e evitar que a deficiência seja o único foco. Assim, usamos uma linguagem que reconhece as pessoas de forma mais humana e inclusiva", comenta.

Ao falar de diversidade e inclusão com as crianças ou ao responder alguma a dúvida delas, também é importante tomar alguns cuidados. O primeiro é usar uma linguagem simples e factual, adequada e compreensível para a idade. “Explique que todas as pessoas são diferentes de várias maneiras e que essas diferenças fazem parte da diversidade humana”, orienta Carolina.

E para dar mais concretude a essa ideia, traga exemplos. “Podemos dizer que algumas pessoas têm necessidades diferentes ou usam ferramentas para ajudá-las a fazer as coisas de maneira única. Por exemplo, algumas pessoas usam óculos para enxergar melhor, outras usam cadeira de rodas para se locomover", orienta. Outro caminho para construir um olhar não capacitista desde cedo é enfatizar as habilidades que a pessoa tem e não suas limitações. Em vez de focar naquilo que ela não consegue fazer - não consegue andar, não consegue escutar, não consegue falar - podemos ressaltar o que ela faz. "Podemos dizer: 'essa pessoa usa uma cadeira de rodas porque se locomove melhor dessa maneira, e ela é atleta, ela dança, ela é muito boa de matemática’”, exemplifica Carolina.

A especialista lembra também que é preciso tomar cuidado para não estereotipar e rotular. É preciso lembrar que antes de ser uma pessoa com deficiência, aquele indivíduo tem um nome, tem suas preferências, seus gostos, suas habilidades, tem todo um conjunto de subjetividades que precisa ser consierado. “Não trate como categorias ou como exemplos de superação. Evite o termo coitadinho ou especial, atípico, ter pena... Tudo isso reforça uma visão capacitista”, ensina. 

 

A inclusão na infância cria uma base para uma sociedade mais justa e acolhedora, onde todas as pessoas são valorizadas, por serem quem são”, Carolina Videira, fundadora da Turma do Jiló, organização que promove a educação inclusiva

 

Quando a criança já cresce em um ambiente em que a diversidade é naturalizada, é abordada e faz parte da convivência, dos espaços, das brincadeiras e das histórias, ela fica menos propensa a ter visões capacitistas.  “As crianças aprendem empatia, respeito, flexibilidade e adaptação. Elas entendem que existem muitas maneiras de se fazer as coisas e que todas elas são válidas; compreendem que as diferenças enriquecem as experiências humanas e que uma sociedade diversa é uma sociedade mais forte”, acrescenta a especialista.

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A curiosidade das crianças é normal - e não precisa ser reprimida

As crianças que convivem com a diversidade desde sempre entendem que existem várias formas de ser, de viver, de agir. Carolina avalia que estimular as crianças a não adotarem uma postura inclusiva é mais comum por parte dos adultos, embora elas, naturalmente, tenham uma predisposição à inclusão. Mas como tudo na educação, um exemplo vale mais do que mil explicações.  “As crianças aprendem observando os adultos. Se o adulto é inclusivo, ela também vai ser. Nossa atitude e o nosso respeito vão fazer com que os pequenos desenvolvam isso também”, diz ela.  

Uma das situações que mais causam constrangimento nos pais é quando uma criança se depara com uma pessoa com algum tipo de deficiência visível, como a cadeira de rodas ou uma prótese, por exemplo, e aponta, perguntando, sem constrangimento, por que aquela pessoa anda assim ou tem aquilo ou se movimenta de outro jeito. Frequentemente, os adultos enrubescem na mesma hora e cutucam a criança, fazendo “Shhhhhiiiu”entre os dentes ou pedindo que ela fale mais baixo – o que só deixa a criança ainda mais confusa. 

Em uma educação inclusiva ideal, em que a criança a criança convive com pessoas diferentes dela, pessoas com deficiência visível ou não, um encontro com alguém que anda de cadeira de rodas ou que tem uma bolsa de colostomia não vai espantá-la ou gerar uma curiosidade gritante. Ainda assim, é normal e saudável que os pequenos observem, reparem, perguntem. A própria Ana Clara produz com frequência vídeos em que explica sua deficiência às crianças ou responde às dúvidas delas ou conta dos comentários que costuma receber dos pequenos - que são mais mais engraçados e perspicazes do que as observações dos adultos.

Quando esse tipo de situação acontece, da criança começar a perguntar sobre uma pessoa com deficiência em voz alta, o primeiro passo, segundo Carolina, é manter a serenidade e não pedir para a criança ficar quieta. “Se seu filho fizer um comentário em voz alta ou apontar, responda com calma: ‘Sim, aquela pessoa está em uma cadeira de rodas porque isso ajuda ela a se locomover melhor ou essa é a maneira que ela tem para se mover’. É preciso incentivar a curiosidade respeitosa, dizer à criança que é ótimo ser curioso, mas que é importante fazer as perguntas de maneira educada e respeitosa”, sugere.

Para ela, se for apropriado, os pais podem, inclusive, encorajar a criança a cumprimentar a pessoa e a perguntar diretamente a ela. “Nós, adultos, não somos obrigados a saber tudo. Então, também podemos dizer que não sabemos e que podemos descobrir juntos. Além disso, é possível usar o momento como uma oportunidade de aprendizado. Depois que a situação passar, converse com a criança sobre o que aconteceu, o que ela sentiu e ressalte como as pessoas podem ser diferentes de várias maneiras”, orienta. 

Estimular a convivência com a diversidade humana desde cedo é importante para que as crianças normalizem a diferença

E qual é o papel das escolas por uma educação mais inclusiva?

O objetivo da Turma do Jiló, organização fundada por Carolina, é justamente, promover a inclusão nas escolas e garantir que todas as crianças e adolescentes tenham voz e tenham direito à educação. Mas essa luta não deve ser só das famílias de crianças com deficiência e sim de toda a comunidade. 

“É preciso se envolver, participar de eventos, participar de grupos de apoios que promovam a inclusão”, sugere Carolina. Segundo ela, além de expor as crianças a diversas experiências, isso é algo que ajuda a criar um senso de pertencimento. A escolha de escolas inclusivas – ainda que você não tenha uma criança quenecessite de inclusão – também é importante e, para Carolina, deve ser um critério básico na hora de escolher uma instituição de ensino para matricular seu filho. “Pergunte quais são as políticas de inclusão e como a escola suporta os alunos com diferentes necessidades, porque todo mundo vai precisar ser incluído de alguma maneira. A inclusão deve ser uma prática escolar e não apenas uma política”, afirma Carolina.

Nesse arranjo, os pais precisam colaborar com a escola "Se oferecer para participar de comitês de inclusão, ajudar a organizar eventos que celebrem a inclusão e a diversidade, olhar a para a formação contínua dos professores. Não tem receita de bolo. A inclusão é um processo”, explica a especialista. E no dia a dia, é importante que as famílias promovam a amizade entre as crianças e estimulem a fomação dos vínculos. Chamar para vir em casa e conviver além da escola são exemplos. “Educar sobre justiça e equidade, conversar sobre como podemos ajudar quem enfrenta alguma barreira... Tudo isso é fundamental”, completa. 

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