As lebres são rápidas. As corujas são silenciosas. Os gorilas são brutos.
Ou não...
Será que dá mesmo para cravar características unânimes para absolutamente todos os animais de uma mesma espécie? Será que não há uma lebre que chegue sempre atrasada por preferir caminhar lentamente, em vez viver correndo? Ou uma coruja que faça tanto barulho como os papagaios? Ou ainda um gorila que, apesar do seu corpo grandão, tenha trejeitos delicados, como uma flor?
Nem todo (Companhia das Letrinhas, 2024), de Marcelo Tolentino
É mostrando que para toda "regra" há uma exceção que Marcelo Tolentino vai apresentando os personagens de Nem todo (Companhia das Letrinhas, 2024). O efeito surpresa funciona para os leitores menores – e para os grandes também – provocando reflexões sobre como reagimos ao nos depararmos com comportamentos que fogem às nossas expectativas. Indicado para crianças a partir de 4 anos, o livro é um convite para celebrar a diversidade e quebrar estereótipos, um assunto que precisa ser abordado por toda a sociedade se quisermos viver – e conviver – em um mundo mais justo e gentil.
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É claro que todas as espécies têm muitas características em comum. No entanto, são as diferenças que tornam cada ser único. É impossível dizer que todos são e-xa-ta-men-te iguais – principalmente quando estamos falando da espécie humana. Alguns têm cabelos compridos, outros não têm cabelos. Alguns usam óculos, outros têm a pele escura, outros são baixos, alguns preferem escutar rock, outros gostam de comer uma bela macarronada, enquanto outros juram que chuchu é sua comida preferida. Com tantas diferenças e particularidades, seria um desperdício (e uma injustiça) fazer com que todo mundo se encaixe em um mesmo padrão.
Será que todas as espécies têm integrantes iguaizinhos? Em Nem todo (Companhia das Letrinhas, 2024), fica claro que para toda regra há uma exceção - e que bom!
Quando criamos e reforçamos estereótipos é isso que estamos buscando: colocar cada pessoa dentro de uma caixinha, ignorando aquilo que a diferencia, fechando os olhos para o que a torna singular. Ao tentar compactar tanta diversidade em um mesmo balaio, acabamos criando preconceito e discriminação. Ou seja: pessoas diferentes do que é considerado padrão ficam de fora, são excluídas, rechaçadas e individualizadas. E muitas vezes passar a acreditar que não podem fazer algo que desejam, que aquilo não é para elas... só porque não atendem a um determinado padrão.
Ainda bem que Ana, que sonhava em ser bailarina, não deu ouvidos a todos os que acharam que ela não poderia dançar por ser gorda. A jornada da menina, que insistia com a mãe que queria porque queria fazer aula de balé, é contada com versos dançantes em Cordéis para crianças incríveis (Companhia das Letrinhas, 2024), de Jarid Arraes, com ilustrações de Veridiana Scarpelli.
Estereótipos x generalização: tem diferença?
É preciso lembrar, no entanto, que generalizar ou agrupar nem sempre é ruim. Aliás, pode até ser uma estratégia fundamental para nos ajudar a compreender melhor o mundo e tudo o que faz parte dele. Já os estereótipos, por outro lado, acabam limitando e criando rejeições e hierarquizações com base em preconceitos. Para entender melhor a diferença entre esses dois conceitos, que pode ser bem tênue, e pedimos ajuda ao psicólogo clínico e social Daniel Kerry, que é Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Professor colaborador de Psicologia no Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).
Para Daniel, que atua como professor, psicólogo e pesquisador na área de psicologia social, gênero e sexualidades, o estereótipo pode ser definido como o componente cognitivo do preconceito. “O estereótipo é um conjunto de crenças, ou seja, de estruturas cognitivas que orientam a forma de perceber, assimilar e interpretar determinados grupos ou pessoas. Os estereótipos são construídos histórica, social e culturalmente a partir de articulações complexas entre discursos, normas, relações de poder, políticas cognitivas e estruturas sociais de opressão e subalternização, como o racismo, o machismo, a LGBTfobia, a xenofobia, a aporofobia, o capacitismo, entre outras”, exemplifica.
As generealizações ajudam no aprendizado, mas os estereótipos fomentam o preconceito e a discriminação
Portanto, segundo o professor, é possível dizer que os estereótipos funcionam como o “núcleo” do preconceito e da discriminação. O preconceito, ele explica, refere-se a atitudes de emoções negativas mobilizadas pelos estereótipos. “Essas emoções – medo, raiva, nojo, desprezo, ódio – são reações afetivas construídas com base nas crenças estereotipadas sobre determinados grupos”, descreve. “Já a discriminação corresponde ao comportamento ou ação dirigidos contra esses grupos específicos”, define.
Existe uma relação entre estereotipar e generalizar. No entanto, não se trata da mesma coisa, já que os processos não são equivalentes. “Todo estereótipo é generalizante, mas nem toda generalização resulta em estereótipos”, afirma Kerry. “A generalização é um mecanismo psicológico que, em certa medida, visa a uma ‘economia de energia mental’. Por exemplo, quando uma criança entra em contato pela primeira vez com um cachorro, ela pode aprender a reconhecer esse animal a partir de características gerais (como pelos, focinho, patas, dentes, latidos, cauda etc.). Uma vez que a criança aprende que um animal com essas características é um cachorro, ela pode generalizar o conceito ‘cachorro’, reconhecendo diferentes cachorros, independentemente de raça, tamanho ou cor”, explica. Se não fosse assim, a criança precisaria reaprender o que é um cachorro toda vez que se deparasse com diferentes animais dessa espécie. A diferença está em um detalhe importante: o preconceito se fundamenta nas generalizações constituídas por crenças negativas e/ou infundadas sobre grupos e pessoas. “Podemos dizer que o estereótipo funciona como uma ‘cristalização’ de generalizações negativas sobre determinados grupos”, diz o professor.
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Voltando ao exemplo: se uma criança que já aprendeu o que é um cachorro se depara com uma ovelha, ela pode, a partir de seu repertório prévio, achar que se trata também de um cachorro. Afinal, também se trara de um animal com pelos, patas e focinho. “Mas, se mediarmos a relação da criança com esse novo animal, ela poderá facilmente compreender que se trata de outro animal e aprender, finalmente, o que é uma ovelha”, explica o especialista. “Com os estereótipos, esse processo de revisão é mais difícil, porque eles são construídos sobre crenças rígidas e cristalizadas, que tendem a resistir a mudanças e à reformulação com base em novas informações. Por mais que apresentemos informações consistentes e fundamentadas que visem a modificação da percepção estereotipada de uma pessoa sobre um determinado grupo, não necessariamente essa percepção se modificará”, diferencia.
Estereótipo: a gente aprende quase sem notar
Por isso, ao educar uma criança, é tão importante prestar atenção para evitar que as generalizações sejam fundamentadas em elementos que possam ser excludentes, violentos, normativos e opressores. Às vezes, esses estereótipos já são tão fortemente enraizados na sociedade, que repassamos adiante, sem pensar duas vezes. Quem nunca se viu fechando rapidamente o vidro do carro ao ver uma pessoa em situação de rua se aproximando? (Vale conferir a matéria sobre aporofobia).
“Por exemplo, se estabelecemos mediações que reproduzem concepções racistas com as crianças, é provável que elas desenvolvam concepções racistas sobre determinados grupos étnico-raciais e, consequentemente, adotem atitudes preconceituosas e discriminatórias em relação às pessoas desses grupos”, diz o psicólogo.
É essencial cuidar das formas de mediação cultural às quais as crianças estão expostas, seja por meio da educação informal e/ou formal, ou por artefatos culturais como as mídias, redes sociais e outros meios de comunicação, Daniel Kerry, professor, psicólogo e pesquisador
São as nossas diferenças que nos tornam únicos - e fazem do mundo um lugar muito mais interessante
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Estereótipos: primeiro conhecer, depois questionar e romper
O professor Daniel Kerry destaca que, como a criança está inserida em um meio que inclui todas as suas relações sociais e culturais, inclusive as interações com outras crianças, não são apenas os adultos que favorecem a construção de estereótipos. “Quebrar estereótipos é função da educação, das escolas, das famílias, das comunidades, da política, dos movimentos sociais, das artes. Todas essas instâncias podem contribuir para um alargamento das compreensões acerca das múltiplas formas de existência e expressões culturais”, diz ele, que reconhece também que esta não é uma tarefa fácil. “Exige não apenas mudanças nas relações interpessoais, mas também profundas transformações sociais, políticas e culturais. Nesse processo, as crianças podem aprender que as diferenças não precisam se traduzir em relações desiguais, hierárquicas, excludentes e violentas”, afirma.
Os estereótipos de gênero, por exemplo, são um resultado de toda essa dinâmica de poder. Menino não pode isso, menina não pode aquilo, menino é desse jeito, menina, só se for daquele. Será mesmo? “Nos últimos anos têm crescido o que temos chamado de ‘ofensivas antigênero’, que são movimentos políticos ultraconservadores se que posicionam contrariamente a todo debate sobre gênero e sexualidade”, afirma o professor. Para ele, a repercussão desses movimentos tem impactado tanto o campo das políticas públicas quanto a opinião pública. "A educação, em particular, tem se constituído como um verdadeiro ‘campo de batalha’, onde se disputam quais assuntos podem ou não ser abordados com crianças e adolescentes”, analisa.
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Por isso, são cada vez mais recorrentes os casos de proibições e censura nas escolas, quando se fala sobre questões de gênero, sexualidade e direitos humanos. “Professores e professoras que abordam essas temáticas têm sido perseguidos/as e intimidados/as. No contexto atual, o que observamos é mais um acirramento dos antagonismos sociais em relação a gênero e sexualidade do que avanços concretos. Onde ficam as crianças nessa história toda? É preciso que educadores/as, familiares, a comunidade e o Estado se responsabilizem nessa tarefa e assumam criticamente os debates de gênero e sexualidade - assim como discussões sobre relações étnico-raciais, deficiências etc. Sem um posicionamento político e crítico, continuaremos a perpetuar os antigos estereótipos machistas, misóginos, cis heteronormativos, capacitistas, racistas e xenofóbicos”, diz Kerry. Nunca é demais reforçar que qualquer estereótipo que desumanize, desqualifique, oprima e violente o outros precisa ser descontruído "se quisermos aprimorar pluralidades democráticas", como reforça o especialista. Basta reparar em como, historicamente, grupos considerados minoritários têm sido representados de forma estereotipada e preconceituosa.
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A arte que rompe com padrões
Uma das ferramentas mais poderosas para questionar e derrubar estereótipos, aliada à educação, é a arte. “Atualmente, há uma considerável produção de materiais que abordam questões sobre diversidades, como literatura infantil; produções audiovisuais (documentários e filmes); exposições de museus com curadorias críticas etc”, afirma. Ele destaca, no entanto, a importância de pensar soluções para fazer essas produções circularem de forma democrática e acessível, alcançando, assim, os vários segmentos da população. “A educação popular pode oferecer contribuições importantes para a ampliação desse alcance”, avalia.
As diversas expressões da cultura podem mobilizar transformações do sensível, da percepção e da subjetividade, contribuindo para a desconstrução de estereótipos, preconceitos e discriminações, Daniel Kerry, professor, psicólogo e pesquisador