Rugas que contam histórias: o que estamos ensinando às crianças sobre envelhecer

10/10/2024

“Vovô, o que você tem no seu rosto?”


O menino Iotam não queria saber dos óculos nem dos bigodes do avô Amnon, mas de suas rugas. No livro Toda ruga tem uma história (Companhia das Letrinhas, 2024), de David Grossman, participamos de um diálogo sensível entre um menino curioso e seu avô, que param no café de sempre depois da escola. Iotam quer saber se as rugas dóem, se pode tocá-las… e se um dia ele próprio terá rugas também.

 

Ilustração de Toda ruga tem uma história (Companhia das Letrinhas, 2024)

Ao invocar as perspectivas que a passagem do tempo oferece a todos os humanos, marcando a pele conforme o envelhecimento avança, se desenrola uma reflexão bonita sobre o papel das rugas como registros de vivências. Um livro estampado na pele que conta pedaços da nossa história. Não à toa, o avô garante que uma das rugas era de tanto sorrir quando Amnon nasceu.

Em um mundo onde juventude e beleza são imperativos - e muitas vezes tratados como sinônimos - cultivar e apreciar as próprias rugas é um gesto de resistência. Mas não precisa ser assim. Em algumas culturas orientais, tanto as rugas quanto a sabedoria e a experiência que se acumulam com a idade têm um espaço especial de admiração. No Japão, os idosos são reverenciados. Por lá, quando alguém chega ao 60º aniversário, há até uma festa especial de comemoração, o “Kanreki”, que é um rito de passagem para a velhice. Na Grécia, os anciãos são considerados as peças-chave dentro das famílias. Na Coreia, os mais velhos não são apenas figuras de autoridade, mas os mais jovens encaram como um dever assisti-los durante a velhice. Em algumas culturas indígenas brasileiras, os mais velhos são os maiores detentores dos saberes culturais, que em sua maioria são preservados por tradições orais, e por isso, fonte de aprendizagem para os mais jovens.

Toda ruga tem uma história

Toda ruga tem uma história (Companhia das Letrinhas), David Grossman

Mas essa não é uma visão compartilhada por todo mundo. Há sociedades em que os mais velhos são desvalorizados, vistos como inferiores ou menos importantes e até abandonados. Será que vem daí o medo de exibir as rugas?

No meio do caminho, tinha uma selfie

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A briga com o processo de envelhecimento, sobretudo nas sociedades ocidentais, não é algo novo e já acontecia na comunicação, no entretenimento e na moda. Há muito tempo, somos constantemente expostos aos ideais de juventude e padronização estética. Mas, segundo a jornalista Mariana Mello, pesquisadora de envelhecimento e autora do projeto Maturidades (@maturidades_br), isso pode ter se intensificado a partir da popularização dos celulares com câmeras frontais. Nunca antes fomos tão expostos à nossa própria imagem e tivemos recursos tecnológicos capazes de alterá-la, com filtros e aplicativos de edição. “Hoje, o número de transtornos psíquicos ligados à própria imagem cresce no mundo todo – sobretudo em meninas e adolescentes. Isso se conecta com o debate sobre o envelhecimento no sentido de que quanto mais se esconde, se disfarça ou se nega as marcas que o tempo imprime em nossos corpos – como as rugas – mais distantes estamos de uma cultura que acolhe, celebra e valoriza a maturidade”, diz Mariana.

Toda ruga tem uma história

Que histórias contam as marcas ao redor dos olhos do vovô Amnon em Toda ruga tem uma história (Companhia das Letrinhas, 2024)?

Isso é importante porque envelhecer é um fenômeno natural, que faz parte de estar vivo. “Não se trata de uma escolha: envelheceremos, todos. E não há nada de errado nisso”. A jornalista lembra ainda que, do ponto de vista evolutivo, pode-se dizer que o aumento da expectativa de vida é uma das maiores conquistas da humanidade. "A velhice, portanto, deve ser celebrada, honrada e entendida como um patrimônio da sociedade”, destaca.

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Há, sim, beleza em envelhecer

As crianças de hoje já nascem em um contexto que estimula a busca por uma "fonte da juventude". Não faltam ofertas de preenchimentos, ácidos, cirurgias, cosméticos e vitaminas que prometem fazer o relógio andar para traz. E no mundo online, filtros e ferramentas de edição apagam as marcas da pele, como se fôssemos eternos como bonecos de plástico. Como, então, estimular nas crianças a compreensão de que envelhecer é normal, natural, desejado, e mais do que isso, bonito? 

Mariana tem se dedicado à educação para o envelhecimento, algo que pode começar em qualquer idade. Segundo ela, o primeiro ponto é prestar atenção em como nós, adultos, nos referimos à velhice. Tanto quando falamos diretamente sobre isso com as crianças, quanto nas nossas conversas com outros adultos  e em como agimos em relação à nossa própria imagem. “Quais são as histórias que as crianças escutam? Com quais exemplos elas convivem? Será que sempre falamos do tema como algo ruim, negativo e cercado de problemas?”, indaga Mariana. Ela lembra que a linguagem também é muito importante. “Usar diminutivos, repassar memes, buzinar para a pessoa que está dirigindo devagar… tudo isso compõe a forma como a criança entende a velhice. Minha sugestão é prestar atenção, além de procurar contar histórias de conquistas, exemplos e inspirações voltados a pessoas idosas”, recomenda.

Assim como o avô de Iotam, na história, talvez seja importante mostrarmos às crianças, no dia a dia, que um rosto com rugas é o rosto de alguém que viveu e aprendeu. “Podemos lembrar que essa pessoa talvez tenha histórias e ensinamentos incríveis; que é uma pessoa que chegou bem antes de nós e que, por isso, tem algo a nos ensinar”, diz ela. “Podemos associar a ruga a algo positivo - e não a um desleixo, como costuma ser. Precisamos ensinar que a aparência física é apenas a camada mais superficial do ser humano – e a menos interessante”, sugere.

Toda ruga tem uma história

Também não se trata de romantizar o envelhecimento ou de demonizar o autocuidado e os procedimentos estéticos, que podem ter, segundo Mariana, um papel importante na autoestima e na autoconfiança. “O que podemos questionar são os motivos pelos quais decidimos investir nesses procedimentos, assim como no tingimento dos cabelos brancos e tantas outras manobras para ‘parecermos mais jovens’”, aponta. “Apenas a consciência de que o envelhecimento faz parte naturalmente do curso da vida pode nos dar uma relação mais saudável com nossa própria aparência. A alternativa a não envelhecer é morrer jovem - e ninguém quer isso”, completa.

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Para conversar com as crianças sobre o envelhecimento

  • Apresente pessoas comuns e célebres que continuam produzindo e sendo inspiração para outros durante a velhice;
  • Estimule as pessoas idosas da família a compartilhar memórias, contar histórias sobre sua infância, sobre parentes e valorize esse conhecimento uma herança preciosa a ser transmitida;
  • Mostre fotos antigas de todas as pessoas da família, para ilustrar como o crescimento e o envelhecimento são parte natural do processo de estar vivo;
  • Apresente livros que falam sobre envelhecer e sobre a vida na terceira idade de forma acessível às crianças. Veja alguns:

Manuel, Rita, Flor... (Companhia das Letrinhas, 2024), de Renata Bueno

Capa de Manuel, Rita, Flor

Diferentes velhices com diferentes histórias são retratadas nessa mistura de perfis reais e inventados, inspirados em vivências reais. Com humor, sensibilidade e curiosidade, vamos desvendando cada personagem e nos aproximando das memórias preciosas que se acumulam ao longo de muitos anos de vida.

O anjo da guarda do vovô (Companhia das Letrinhas, 2024), de Jutta Bauer

https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9786554850315/o-anjo-da-guarda-do-vovo?utm_source=blog-da-letrinhas&utm_medium=blog-letrinhas&utm_campaign=o-anjo-da-guarda-do-vovo&utm_id=Rugas-que-contam-historias-o-que-estamos-ensinando-as-crian%C3%A7as-sobre-envelhecer

Por quanta coisa já passou alguém que tem a sorte de chegar à velhice! Em um jogo bem articulado entre texto e imagem, o avô reconta sua trajetória ao neto, dos tempos de criança às aventuras da juventude, se apaixonando, depois se tornando pai. Mas tudo adquire um novo significado graças à presença constante do anjo da guarda do vovô. 

 

 

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