Vitor é um menino de 13 anos, nerd e tímido, que passa os dias jogando em seu computador. Lá fora, um novo vírus, batizado de Bola, se multiplica na velocidade da luz, ameaçando a vida em sociedade - soa familiar? O garoto é convencido por Samara, sua paixão platônica e irmã de seu melhor amigo, a entrar em um jogo misterioso: o Skull. É uma competição diferente, que se passa nos sonhos de cada participante e transcorre como se fosse uma vida paralela. É preciso dormir para jogar. Mas Vitor descobre se tratar de algo muito maior do que um jogo online… e se vê com o futuro da humanidade em suas mãos.
A história de Vítor mistura um clima de fim de mundo e mistério com ciência e tecnologia e é contada em um ritmo acelerado no livro Sociedade da Caveira de Cristal (Escarlate, 2024), de Andrea del Fuego - um prato cheio para os amantes de ficção científica, a sci-fi.
Capa de Sociedade da Caveira de Cristal (Escarlate), Andréa del Fuego
Embora tenha sido escrito em 2007, narrando um mundo aparentemente distópico, a trama se aproximou da realidade com a pandemia de Covid-19. De lá pra cá, outros temas que antes pareciam tão distantes, e estavam presentes em ficções futuristas também se aproximaram do cotidiano de crianças e jovens: mudanças climáticas, metaverso, games…
Talvez essa seja a explicação para que novos leitores se sintam tão atraídos por livros de sci-fi. Talvez, a literatura, como arte, se ofereça como uma maneira possível de captar e interpretar a realidade, trazendo um mínimo de sentido para a nossa existência - até quando o mundo como conhecemos parece não fazer mais sentido algum.
LEIA MAIS: Verdade ou mentira? Como educar as crianças em tempos de fake news
Mas o que podemos chamar de sci-fi?
Para a professora Eliana Guimarães Almeida, pesquisadora e doutora em leitura literária, do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), as obras de ficção científica podem ser compreendidas a partir da presença de elementos e cenários imaginários, criados hipoteticamente a partir de fatores presentes na ciência e tecnologia de cada tempo. Ela destaca que mesmo que nos livros que não são classificados como ficção científica, não são raras as narrativas que apresentam, por exemplo, viagens no tempo ou cenários imaginários, ligados ao universo da tecnologia, e conectadas, neste sentido, a essa perspectiva. “Percebo que as aventuras em universos paralelos, como personagens que ficam presos ou que transitam entre o mundo virtual e o mundo real, necessitando resolver alguma situação-problema chamam bastante a atenção das crianças e dos adolescentes”, afirma a especialista.
É o caso do livro Árvore - os três caminhos (Escarlate, 2017), de Janaina Tokitaka. Na história, Sofia, vê sua vida mudar completamente a partir do momento em que consegue abrir uma porta misteriosa no casarão de seu avô. Lá dentro, ela encontra uma árvore gigante no centro de uma biblioteca. Mas não se trata de uma espécie qualquer: a menina se vê diante da Árvore da Vida, da qual toda vida no planeta Terra depende.
Já em Passa-anel (Companhia das Letrinhas, 2023), de Fits e Nicole Janér, é o encontro com um objeto mágico, que a princípio parece banal, que muda a vida dos amigos Bel e Samu. Em uma volta no parque, Samu encontra um anel, que não apenas fala, como revela que ele é o escolhido, capaz de salvar o destino de todos a sua volta, derrotando os espíritos malignos que ameaçam a cidade. A aventura dos amigos é contada em quadrinhos ricamente ilustrados, apresentando o universo ancestral que sustenta toda a trama.
A sci-fi abriga um leque amplo de temas - como tecnologia, ciência, vida extraterreste... E Eliana não acredita que haja uma faixa etária específica para que os pequenos e jovens sejam atraídos por esses assuntos. Na visão dela, o interesse pela literatura sci-fi está mais ligado ao processo de socialização e às interações vividas por cada criança do que à faixa etária por si só. “Noto que o contato com jogos digitais em geral influencia a busca por livros que retratam o universo Minecraft ou cenários imaginários que envolvem ciência e tecnologia”, destaca.
Samu encontra um anel mágico que muda seu destino de repente em Passa-anel (Companhia das Letrinhas, 2023)
Ela explica que, normalmente, crianças de seis a oito anos demonstram bastante interesse também por temáticas ligadas ao espaço sideral. Um exemplo é Aliens: a lição (Companhia das Letrinhas, 2020), de Mari Brigio, com ilustrações Rodrigo Chedid, publicado como parte da Coleção Canoa. Na história, contada em rimas, os aliens estão cansados de ver a forma esteriotipada como são tratados pelos humanos - e decidem dar um basta nessa situação.
"Já os adolescentes costumam gostar de narrativas distópicas, obras com viagens no tempo, universo de fantasia, mas não necessariamente ligados a ciência e tecnologia”, avalia Eliana. Segundo a especialista, diferentes segmentos atendem faixas etárias variadas, mas essas divisões não são estanques.
LEIA MAIS: Biblioteca do pequeno ativista ambiental: 12 livros essenciais
Ficção para uma geração nascida e criada pela tecnologia
Com a popularização da internet dos anos 2000 em diante, a geração atual cresceu imersa na tecnologia - e conectada em tempo integral. Crianças e jovens também passaram a ter um acesso cada vez mais fácil ao conhecimento e à ciência – ainda que as informações, sejam, por vezes, confusas, desencontradas e excessivas. “Essa imersão impacta o interesse das crianças. Como nativas digitais, elas transitam com facilidade nos ambientes tecnológicos, principalmente quando têm muito acesso a jogos e conteúdos que abordam o universo virtual. Diante desse acesso, acredito que a busca por obras que abordem o tema é potencializada, principalmente quando há trocas entre pares em torno do assunto”, observa Eliana. Além disso, muito mais que um leitor adulto, as crianças, em geral, conseguem estabelecer pactos ficcionais quando entram em contato com obras literárias – capacidade que é potencializada quando há uma boa mediação.
LEIA MAIS: Nem criança, nem adolescente: o que lê a galera dos 9 aos 12 anos?
Quando se trata de universo mais fantasioso, de situações hipotéticas que trazem vínculo com a realidade, elas conseguem realizar analogias interessantes, quando convidadas a dialogar em torno das leituras”, Eliana Guimarães Almeida, pesquisadora e doutora
As similaridades entre a ficção e a realidade são observadas em muitas obras, sobretudo no contexto atual, em que vivemos imersos em um mundo atravessado por questões complexas, ligadas ao universo virtual, às conexões, ao avanço da tecnologia, à inteligência artificial e até a ameaças biológicos globais, como aconteceu, na vida real, com a pandemia de covid-19. Mas é verdade que todas essas conexões, dependendo da idade e do contexto, podem até despertar um certo receio nos pequenos leitores. “Um cuidado para que isso não aconteça é tratar a ficção como ficção, ainda que haja vínculos com a realidade, dando espaço para que as crianças e adolescentes se posicionem, se expressem e troquem impressões sobre as leituras entre pares, preferencialmente com a presença de mediadores”, opina a professora. Para ela, falar sobre as questões que nos afligem ajuda a elaborar o pensamento e a delimitar o que é real e o que é fantasia – embora permita que associações e paralelos interessantes sejam traçados.
Eliana ressalta ainda que é importante afastar a literatura de uma visão utilitarista, que embute nas histórias a obrigação de precisar ensinar algo - embora como ela mesma lembra, inevitavelmente acabe ensinando. “Obras que se aproximam da sci-fi, por trazerem elementos ligados à ciência e à tecnologia, podem oferecer a oportunidade de inserção nesse universo, despertando o interesse por esse campo do saber, de modo mais amplo", reflete a especialista. Para ela, o contato com essas temáticas próprias do gênero pode até, de modo mais específico, jogar luz sobre possíveis consequências das ações humanas, como em obras que constróem cenários distópicos ligados à exploração dos recursos naturais ou à substituição massiva de humanos por máquinas. "As crianças podem aprender também que há etapas para o desenvolvimento de pesquisas científicas (em caso de situações em que personagens precisam construir soluções para problemas relacionados ao uso da ciência e tecnologia, por exemplo)”, acrescenta.
O mais importante é deixar a imaginação fluir e mergulhar nas histórias, viajando pelo tempo, pelas dimensões e por infinitos universos inventados, e poder voltar para a realidade com doses extras de criatividade e a inspiração, para enfrentar o que for necessário no mundo que conhecemos.