Vale introduzir as crianças desde cedo no mundo digital?

22/08/2017

 

Em um mundo conectado, as pessoas leem cada vez mais, desde o noticiário on-line até o feed do próprio Facebook. Para as crianças, não é diferente, pois é cada vez maior a quantidade de conteúdos a que elas têm acesso na rede. Mas como é possível aproveitar as plataformas digitais como suporte para o desenvolvimento literário infantil?

José Nicolau Gregorin Filho, professor da disciplina de literatura infantil da Universidade de São Paulo (USP), está ministrando no Centro Universitário Maria Antônia o curso “Literatura para crianças e jovens: textos, suportes e leituras”, voltado para educadores. Nos encontros, a proposta é refletir sobre o papel que a literatura tem na sociedade de hoje. 

“A questão é pensar que o verbo ‘ler’ não é intransitivo, ou seja, ler o quê? Crianças leitoras de quê? Então, elas já leem o que lhes interessa nas plataformas digitais, nos tablets e nos celulares”, diz o professor, que defende que há conteúdo relevante nos meios impressos e digitais.

Para Gregorin, a questão a se pensar não está relacionada à plataforma em que se consome arte, mas na maneira com que olhamos para ela. O afeto que se tem com o objeto livro não é o mesmo com objetos eletrônicos passageiros, em constante renovação. “Penso que vivemos uma crise com referência à arte, à educação do olhar para a arte”, diz. E completa:  “Não serei o profeta do apocalipse quanto ao fim do livro e não serei eu a fazer uma apologia à leitura nos meios digitais”.

Leia a seguir um bate-papo com o pesquisador.

 

 

Uma das grandes questões educacionais é formar crianças leitoras. Qual o papel que as novas tecnologias podem exercer nesse processo? E como é possível aproveitar as plataformas digitais como suporte para o desenvolvimento literário infantil?

A questão é pensar que o verbo "ler" não é intransitivo, ou seja, ler o quê? Crianças leitoras de quê? Então, elas já leem o que lhes interessa nas plataformas digitais, nos tablets e nos celulares – e por aí vai... Acredito que o que precisamos pensar é no papel que a literatura tem na sociedade de hoje, isso em conjunto com as outras artes. Por que o mundo digital sobrevive sem a literatura, mas e a sociedade? Sobrevive sem a arte?

Se antes o acesso a livros podia ser um problema, hoje ele é facilitado pelas plataformas digitais e todos os recursos disponíveis na internet. As pessoas, entretanto, leem cada vez menos livros, dedicando o seu tempo para textos curtos. Como a avalia a questão? A internet é um ambiente propício para a leitura? 

Acho que uma parte já respondi, mas precisamos pensar que a literatura não é feita só de romances longos. Há os poemas, as crônicas e outras formas mais breves. E será que o acesso à internet também não custa dinheiro? A internet é um importante veículo hoje, mas ler literatura apenas na internet acho que não dá.... Existe uma coisa importante que é  a relação afetiva com o objeto livro, coisa que não temos com os instrumentos eletrônicos, pois eles são passageiros e se renovam sempre! Penso que vivemos uma crise com referência à arte, à educação do olhar para a arte.

Quando se fala da leitura de crianças, então, como fica essa questão? As plataformas digitais são um desafio maior para introduzirmos as crianças no universo da leitura?

Quando as crianças vão para a escola, elas têm muita vontade de ler! Mas talvez a escola tenha se perdido no caminho da formação de leitores. Tenha partido para o estudo da literatura e não da formação do leitor. Acho que um dos maiores desafios para formar o leitor está em fazer famílias leitoras, é dar condições para termos professores leitores. As crianças repetem modelos de comportamento que veem... Então, é o trabalho é maior do que isso. É mudar uma postura frente à literatura, frente à arte.

A imersão nas plataformas digitais muda a função do olho: se antes ele servia como mero mediador entre o objeto observado e a mente, hoje há outro fator nesse processo (as mãos). Tudo o que é visto deve ser também objeto de interação. Como vê essa afirmação?

Antes as mãos não serviam para virar as páginas? Acho que há muita coisa sendo falada e muita criança deixando de sentir experiências porque os pais buscam aplicativos para tudo. Há muitos livros que despertam outros sentidos. Não serei o profeta do apocalipse quanto ao fim do livro e não serei eu a fazer uma apologia à leitura nos meios digitais.

Há narrativas digitais interessantes para o público infantil hoje? Se sim, poderia dar exemplos?

Há, os sites dos grandes autores da literatura de papel. Como há lindos livros ainda! A experiência leitora deve ser variada e devemos dar o direito de a criança vivenciar todas elas. Gosto muito do site da Angela-Lago, mas vejo que há muitos que não trazem arte, trazem jogos.

Em entrevista ao Por vir, a CEO da plataforma Elefante Letrado (que oferece atividades pedagógicas e biblioteca digital a alunos de 27 escolas) disse que não é concorrente dos livros físicos. Qual a sua opinião? Esses ambientes estão relacionados? Como o diálogo entre o meio físico e o digital deve ser realizado?

Exato, é o que eu respondi antes. Há um mercado tentando se impor. Acredito que o que está acontecendo hoje seja o mesmo de quando os livros em rolo foram substituídos pelos livros que conhecemos hoje. Ou mesmo antes, quando os tabletes de argila deram origem aos rolos. Hoje, a experiência leitora se utiliza de um tablet e desenrola o texto, ou vira páginas virtualmente. 

Por fim, adianta fugir dos meios digitais? Como ensinar as crianças a fazer melhor proveito deles?

Talvez nós ainda tenhamos que saber tirar o melhor proveito dos meios digitais, tudo é tão novo na história que ainda não sabemos o potencial. Vivemos uma era em que todos os paradigmas estão caindo, uma Era do Desmanche, como dizia Nelly Novaes Coelho. Como poderíamos ensinar uma criança a lidar com um futuro que ainda não conhecemos? Talvez o que possamos fazer é oferecer a infinidade de meios para a leitura e acompanhá-la nessas descobertas. Nisso, tenho certeza de que a sociedade está falhando: deixar a criança sozinha com aquilo que pensamos ser uma máquina, esquecendo que o ser humano criou aquilo e outros seres humanos podem estar ensinando essas crianças.

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