Como fazer uma festa infantil com menos consumismo e mais afeto

29/01/2025

É aniversário do Ratinho - e ele vai comemorar! Em Feliz aniversário, Ratinho! (Brinque-Book, 2025), o querido personagem de Guido van Genechten, que também é a estrela de O que tem dentro da sua fralda? (Brinque-Book, 2010) e Vamos dormir? (Brinque-Book, 2023), recebe de cada um de seus amigos um presente - que o leitor ajuda a desembrulhar em cada página. 

Ilustração de 'Feliz aniversário, Ratinho!

Framboesas fresquinhas foram escolhidas pela Coelha como presente para o aniversariante em Feliz aniversário, Ratinho! (Brinque-Book, 2025)

A coelha, que é a primeira a chegar na festa, oferece framboesas fresquinhas, colhidas por ela mesma. O porquinho aparece com uma jangada que ele próprio construiu, com rolhas, papel, elástico e um palito. E assim a festa segue: cada amigo chega com um mimo, preparado com carinho, especialmente para o aniversariante, que também tem uma surpresa para os convidados no final…

Nada de presentes extravagantes aqui: o importante é o afeto e a dedicação que os amigos demonstram. Mas a festa de aniversário do Ratinho parece ter virado exceção.

Hoje em dia, o que era pra ser um bolinho para soprar as velas se tornou um evento de luxo ou, pelo menos, algo exagerado, para ostentar. Festas são celebradas em bufês requintados com decorações magníficas, floreadas por esculturas de balões, paletas de cores cuidadosamente pensadas, efeitos especiais na hora do parabéns… Tudo instagramável. E sustentado por padrões inatingíveis para a imensa maioria das famílias. Muitas vezes, a frustração por não conseguir financiar um aniversário com toda essa pompa pode ser inevitável. Mas será que uma criança precisa mesmo de tudo isso? Será que é todo esse luxo que faz uma criança se sentir mais feliz ou mais amada?

E mais: será que faz sentido esse consumo excessivo no momento em que o planeta pede ajuda? Para onde vão todos aqueles itens de decoração depois? Os descartáveis? Os balões? A roupa que muitas vezes será usada uma única vez? 

 

Por onde começar? 

Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo, iniciativa do Instituto Alana, explica que o consumismo traz consequências para o desenvolvimento das crianças. “Isso acontece porque elas são hiper vulneráveis e absorvem com muita facilidade esses estímulos”, aponta. “Além disso, a cultura do consumismo afeta a sociedade, como é o caso dos impactos ao meio ambiente. Isso acontece por conta da utilização de recursos naturais e por conta de um grande descarte, já que o incentivo é para que se tenha o último lançamento, ou a versão mais recente de determinado brinquedo”, ressalta. Mesmo que a criança use uma ou duas vezes e depois deixe o item esquecido.

Feliz aniversário, Ratinho!

Feliz aniversário, Ratinho! (Brinque-Book), de Guido van Genechten

Os bebês e as crianças pequenas vão compreender o mundo a partir das experiências, do que acontece ao seu redor e, principalmente, a partir do comportamento de quem está próximo, sobretudo, os pais e cuidadores. Em muitos casos, são os adultos que acabam influenciados pela ostentação e acabam perseguindo padrões de consumo que nem sempre condizem com a realidade -e que quase sempre não fazem uma grande diferença na vida das crianças. Sabe aquele brinquedo caríssimo que você comprou para o bebê e que acabou deixado de lado porque o pequeno preferiu brincar com as panelas da cozinha ou os pregadores de roupa? É preciso se perguntar o tempo todo se aquilo que chamamos de necessário realmente é - para nós e para nossos filhos.

No caso das crianças maiores e dos adolescentes, que já têm mais acesso às redes sociais, é importante trazer o tema do consumo para as conversas diárias e ir entendendo a que tipo de experiência elas são expostas diante das mídias - que conteúdo procuram, quem elas acompanham nas redes, que tipo de anúncios recebem. “Não com a intenção de julgar e sim para criar um espaço de confiança para o diálogo e, assim, conseguir falar sobre as publicidades, parcerias e investimentos de marcas que acabam viabilizando os altos investimentos nessas festas”, sugere Maria.

A internet, aliás, aumentou o apelo ao consumo. Os influenciadores se tornaram um novo tipo de celebridade - inclusive entre as crianças e jovens. Nas redes sociais não faltam registros de festas de aniversário faraônicas. “Só que nem sempre o que está ali, refletido nos conteúdos de influenciadores, conta a realidade toda, como por exemplo, as parcerias com marcas e até mesmo acordos publicitários”, diz Maria. “Isso acaba por passar uma mensagem errônea de que ter vale muito mais do que ser”, acrescenta.  Tudo isso influencia não somente as crianças, mas os familiares também.

Para a especialista, esse contexto escancara quão fundamental é construir um diálogo aberto com as crianças. “É importante buscar uma forma de falar da realidade por trás dessas festas demasiadamente caras e tentar abordar que a celebração se torne importante não por conta do consumismo, mas sim por conta de partilhar um momento especial e divertido”. 

Mas como abordar? A leitura pode ser uma boa "tática". Pode despertar o interesse dos pequenos, trazer novos pontos de vista e iniciar um diálogo sobre o que de fato importa. Pode até o próprio livro ser uma fonte de inspiração para a festa. E não faltam personagens cheios de boas ideias para criar momentos especiais que não são sinônimo de consumo irracional. Em O piquenique do Gildo (Brinque-Book, 2024), de Silvana Rando, o elefante chama seus amigos para aproveitar um dia de sol ao ar livre. Cada um precisa levar um quitute - uma ideia que pode ser replicada pelas crianças reunindo a turma da escola ou do prédio. 

Já em O homem que amava caixas (Brinque-Book, 1997), de Stephen Michael King, um homem encontra um jeito singelo e cheio de criatividade para expressar o que ele não conseguia dizer ao filho: o quanto o amava. Para demonstrar seu afeto, o homem começa a construir coisas para o menino usando as caixas que ele tanto amava. Com elas, fazia castelos, aviões… O menino e seus amigos também brincavam com as caixas do pai - e se divertiam sem precisar de muito. Dá para se inspirar na história e juntar caixas que iriam direto para o lixo para compartilhar com as crianças.São reflexões para todos nós.

 

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Mais presença, menos presentes

O diálogo, com 100% de presença, ajuda a reforçar o vínculo e a ressaltar o valor do afeto que não depende de comprar presente, nem de fazer passeios caros. É importante lembrar – na prática – que estar junto, brincar e criar memórias é muito mais importante do que adquirir um brinquedo de última geração ou uma roupa que vai ser usada uma vez apenas.

A coordenadora do Criança e Consumo acredita ainda que a busca por mais contato com a natureza também é um grande passo para tornar as celebrações mais sustentáveis. Já pensou em organizar um piquenique no parque ou na pracinha perto de casa? Ou, se for o estilo da família, levar o pequeno para acampar ou conhecer algum lugar diferente? “O cotidiano repleto de compromissos e permeado pelas telas faz com que as crianças e adolescentes fiquem distantes de parques e praças. Então, a oportunidade de promover essa conexão com a natureza é bem significativa e ajuda a dar mais um passo para dissociar os momentos de celebrações do ato de consumir”, acrescenta ela.

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Há outras formas ainda de associar a celebração de datas importantes a atividades que não sejam ligadas ao consumo excessivo e, sim, que representem e comemorem a vida daquela criança. “Os aniversários podem ser uma oportunidade para instituir alguma forma de tradição, como uma sessão de cinema em casa, com o filme favorito do aniversariante, preparar uma receita juntos, fazer um passeio diferente”, diz Maria. O principal é investir na presença e na atenção para que o vínculo seja fortalecido e memórias sejam construídas – independente do que se é capaz de comprar ou exibir.

 

No livro, os amigos levam presentes feitos por eles mesmos em homenagem ao aniversariante

Em Feliz aniversário, Ratinho! (Brinque-Book, 2025), os amigos levam presentes feitos por eles mesmos para homenagear o aniversariante

Para diminuir o consumismo, um esforço coletivo

Vale lembrar que essa cobrança pela mudança de comportamento no sentido de reduzir o consumo e repensar escolhas não pode ser direcionada somente para as famílias. É um debate que precisa estar presente na sociedade, como um todo. “Normalmente, direcionamos as recomendações para as famílias, mas esquecemos que as empresas, sejam elas de brinquedos, roupas e até mesmo as plataformas digitais, lucram ao estimular o desejo consumista em crianças e adolescentes”, destaca Maria. 

Vale lembrar que em 2024, a Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente completou 10 anos e se tornou um marco ao promover um câmbio significativo na exposição de crianças a anúncios publicitários em mídias tradicionais como a TV. No contexto em que as discussões sobre essa resolução aconteceram, nos anos 1990, havia uma exposição intensa de crianças a propagandas direcionadas a elas - com jingles memoráveis, e crianças protagonizando as peças publicitárias e apelos explícitos à compra. A resolução 163 parte do princípio que menores não têm poder de decisão sobre a compra e por isso não podem ser expostos a anúncios. 

“Uma das consequências da publicidade infantil é o estresse familiar gerado por pedidos incansáveis para ter determinado item ou vivenciar determinada experiência”, acrescenta. Por isso, para além do diálogo promovido pela família, é preciso que as empresas tenham responsabilidade e sejam cobradas para respeitar as infâncias e assumir o compromisso de não explorar comercialmente crianças e adolescentes.

 

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