É 'Bateção': canoa, memória e rio na obra de Josias Marinho

17/03/2025


Você sabe o que é “bateção”? Se não tiver convivência perto de rios, talvez não. Se não for da região Norte, talvez conheça por outro nome. Mas para a protagonista desta história, “bateção” é um momento natural que acontece nos rios em que pássaros como os biguás mergulham atrás de peixes para se alimentar. Bateção (Pequena Zahar, 2025) é também, a partir de agora, o nome da obra do rondoniense Josias Marinho, que está começando a chegar nas livrarias. Inspirado em uma memória da mãe, Josias nos conduz de uma maneira única para que possamos como leitora/leitor – ou fruidora/fruidor, como ele gosta de chamar – sentir o que é estar numa canoa e observar o tanto de coisa que acontece no embalo das águas. É um livro interativo? Talvez. É um livro sensorial? Talvez. Mas tem botões para apertar? Não, mas ouvimos muitos ruídos e silêncios. Por que será? 

O rio, e toda a vida que jorra dele, está no centro da narrativa afetiva em 'Bateção'

O rio, e toda a vida que jorra dele, está no centro da narrativa afetiva em 'Bateção' (Pequena Zahar, 2025)

“- Dá licença? 

Assim ela chegou na beira do rio. Desceu o barranco, desamarrou a canoa e seguiu. Depois de remar e se afastar do barranco, ela recolheu o remo e deixou a canoa deslizar ao bem-querer da água.”

O texto do livro abre assim, numa vagorosa descrição em que imaginamos o cuidado com que uma pescadora entra no rio. Depois desta página, vamos virando diversas duplas com imagens, rio abaixo, mergulhos e saídas, texturas de plantas, de cores, vidas acontecendo. Tem um inseto voando ali, pássaros à espera da bateção e onde é que será que está a canoa? Ao final, a sensação de um percurso feito, que se renova ali e se renovará por dias e dias. Assim como as vidas que ali ocupam o rio Guaporé, rio que passa pela região quilombola Forte Príncipe da Beira, no estado de Rondônia. 

Vem diretamente deste lugar o depoimento que está publicado na contracapa da obra. É uma fala de D. Augusta, a mãe de Josias, quilombola como ele, hoje com 90 anos de idade.  É ali que entendemos um pouco da inspiração toda. “Bateção. Se tem outro nome, eu não sei. Onde tem muito biguá, pode acontecer o dia inteiro. E não acontece todos os dias nem em todo lugar.” (...) “Na bateção, quando a gente consegue chegar perto, os peixes miúdos pulam dentro da canoa fugindo dos biguás e dos botos. Isso acontecia também quando saía pra pescar de noite, na lua cheia.”. É com ela e com ele que temos a chance de nos envolver com esse idioma próprio, esse Brasil que tem direitos e muitas histórias para contar. 

Josias é professor universitário e licenciado em artes plásticas, e tem publicações foram selecionadas para o catálogo anual da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil) na Feira de Bolonha, como Zumbi dos Palmares em cordel (texto de Madu Costa. Mazza Edições, 2013) e O príncipe da beira (Mazza Edições, 2011). Ele conversou com o Blog sobre o processo criativo do livro.

 

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Confira a entrevista com Josias Marinho


Blog Letrinhas: Josias, quando estou com um livro seu em mãos, me passa uma ideia de que se coloca ali uma espécie de idioma. Que eu, paulistana, já estou aprendendo com eles, principalmente O Príncipe da Beira. Você sempre me coloca em outro Brasil. Qual é esse Brasil é esse em Bateção, que você traz ao leitor ou à leitora? 


Josias Marinho: Primeiro, eu tenho tentado usar e defendido muito a questão de pensar num “fruidor”, até uso em substituição ao “leitor”, tentando trazer e pensar, junto com a minha formação ali em ensino de artes visuais, na referência, que é a professora pesquisadora, nossa referência até internacional, Ana Mae Barbosa, sobre a abordagem triangular que envolve o fazer, o pensar sobre aquilo, e nesse encontro desse tripé, é muito importante o respeito, como Paulo Freire fala também, às informações que essa pessoa já tem. Respeitando, tentando entender o que essa pessoa já tem. Eu, como educador, sempre fico pensando nisso, e aprendi muito disso.

Então, no processo de edição (do livro), que foi um processo muito cuidadoso e respeitoso, isso veio muito à tona. Quando você me pergunta “que Brasil é esse?”, lembro delas (a equipe da Pequena Zahar), me perguntando algumas questões sobre palavras, sobre alguma descrição que eu fazia ou sugeria no espaço territorial do livro. Então eu penso que ‘esse Brasil’ seja um olhar para o Norte a partir de um nortista, que está distante lá de algum jeito do local de nascimento – eu sempre volto a Rondônia e ao rio Guaporé para pensar sobre isso, mas, de alguma forma, também tem esse olhar de fora. Então esse é o Brasil da lembrança, da saudade também e um jeito de olhar para um fenômeno, um fenômeno natural que acontece lá, faz parte do cotidiano. Ele define o comportamento do pescador. Se ele vai ficar naquele local, se ele vai se afastar, se vai continuar a pescaria ou não... Pode ser, por exemplo, que aconteça esse fenômeno, claro, em menor intensidade aqui na Lagoa da Pampulha (em Belo Horizonte, onde ele mora em períodos do ano), onde também, quando eu vou para lá correr e passear, avisto alguns biguás nadando. Ainda não vi a bateção acontecendo lá, mas pode ser que aconteça alguma coisa semelhante, uma pescaria. Então talvez os mineiros chamem de uma outra forma.


Blog Letrinhas: Ainda mais mineiro que tem um idioma próprio! (risos)

Josias: Sim! Então eu acho que pensar o Brasil, que está falando é envolver não só o modo de ver esse fenômeno, mas também o modo de nomeá-lo.

Envolve várias questões culturais, a questão do saber também ancestral. 


Blog Letrinhas: Me conta sobre sua escolha de como contar essa história, esse cotidiano. Tem um prólogo e um epílogo, certo? Um texto lindíssimo, que começa com um “Dá licença”. Então você põe o texto, a gente navega e aí a gente está na canoa com a personagem. Um jeito de ficar na experiência dela. E tem um silêncio também, né?

Josias: Você é a primeira pessoa que viu a coisa completa. Então é bem interessante tudo isso que você elenca, porque também foram coisas e questões que surgiram nas primeiras conversas ali no processo de edição. Eu sempre pensei o livro como um todo. Hoje, a gente está tentando usar mais essa nomenclatura de “fazedor de livros”, mas lá no livro O príncipe da Beira, acho que em 2009, quando eu comecei a fazê-lo, eu não tinha essa leitura, esse estudo sobre o livro ilustrado. Mas eu já gostava. O meu estudo era em cima dos produtos de outros ilustradores fazedores de livro ilustrado. Então eu já pensava o livro como um todo. 


Blog Letrinhas: Quando que você começa a fazer esse livro?

Josias: Tem mais de dez anos que eu comecei. O primeiro rascunho dele. A princípio, ele seria somente um livro de imagem. Nessa minha pesquisa sobre livro de imagens. (ele mostra um caderno sem pauta com um desenho do pássaro e gira, para que eu veja um movimento) . E aí fui pensando o movimento de mergulho do biguá, como eu iria sugerir para essa pessoa que está olhando o livro que tudo ali vem de uma revoada. Eles mergulham, nadam, de alguma forma se alimentam e depois vão embora. Tem esse movimento, onde eles ficam ali, no rio, e de longe a gente só vê o pescoço deles. É como se estivessem navegando. Aí tem alguns detalhes de vegetação, como que eu poderia pensar texturas a partir disso... 

 

Ilustração de 'Bateção'

O mergulhos dos biguás foi inspiração para o desenrolar do livro 


Blog Letrinhas: O todo e o detalhe ao mesmo tempo, né?

Josias: Sim, e ele foi se modificando um pouco, inclusive na quantidade de páginas. No ápice do livro, ali no mergulho só se vê a água brilhando. É muito bonito. Então a coisa toda acontece ali, nesse momento de pescaria. Eu não estava conseguindo resolver graficamente para que não ficasse uma quantidade de páginas extensa, porque o livro tem que ser viável... Tive que reduzir bastante. E não tinha ainda, por exemplo, a libélula, e eu ainda não tinha feito uso dessa planta, que apareceu para mim de alguma forma, nesses estudos. Eu gosto de brincar com elementos que vão paralelamente aparecendo durante a narração. Quem não perceber inicialmente a libélula e perceber só lá no final, de alguma forma escondidinha, elas estão... não sei qual é a melhor palavra para usar (risos)... cruzando? Se reproduzindo? (risos)... a pessoa vai voltar e pensar “eu vi uma libélula atrás”. 


Blog Letrinhas: A escolha da palavra, a escolha da imagem...

Josias: E você usou aqui a palavra “silêncio” e foi uma das conversas na edição. Uma das propostas da editora era distribuir o texto pelo livro.


Blog Letrinhas: Com a Débora Alves e a Ana Tavares?

Josias: Isso. Mas a gente conversando, falando para elas do processo que é você entrar numa baía, por exemplo, para pescar, depois dessa página de texto em que eu conto praticamente tudo de uma vez, e que depois o rio continuaria esse movimento de contar alguma história. A possibilidade da pessoa (leitora) se deixar levar, poder ouvir o que a água está contando, o barulho dela, o barulho dos animais, o barulho do vento nas folhagens. Quando o texto fala que ela se deixa levar pelo movimento da canoa, também espero que o fruidor, o leitor, se deixe fazer isso. Então, a partir do momento que ele vira a página e não tem mais texto, ele vai acompanhar só o movimento do rio. 


Blog Letrinhas: Então esse movimento continua na página seguinte, e na seguinte, e na seguinte...

Josias: Até que ele é quebrado pela bateção! Então o movimento da bateção mexe com o rio, produz ruídos e você é responsável por ouvir. Quais ruídos você acha que está ouvindo? Uma pessoa que nunca viu, que não é do Norte... o que será que está acontecendo ali? Eu não sei. Eu não estou te falando.


Blog Letrinhas: Deixa para o leitor...

Josias: Na questão plástica, gráfica, gosto de experimentar. Não sei se você observou, mas são duas cores de peixe, o azul e o amarelo. O “peixe batedor” é o azul. Ele avisa do perigo. Bichos que se alimentam do peixe. O primeiro que aparece é um socó, da família das garças, uma ave, que está no meio da colcha de tarope (planta aquática). O peixe vê, e avisa o cardume. E eles não percebem o biguá.


Blog Letrinhas: Eles não percebem a revoada, só veem o socó que está ali mais perto deles. E tudo acontece...

Josias: Sempre isso. No texto, começando pedindo licença, é claro, ao rio em respeito ao que ele é, e de alguma forma também, pedindo uma boa pesca, para que ela possa ter êxito, e para adentrar também em segurança e voltar em segurança. No final, também com o êxito da pescaria, ela agradece. Um “até logo”, um “até outro dia”. E segue a vida. Ao mesmo tempo que ela segue a vida, o ciclo da natureza também segue. Tem uma questão que todos nós que nos dedicamos ao livro, pensamos: de alguma forma eu estou falando da morte. A morte como importante nesse processo.

 

 

Ilustração de Bateção

"Dá licença" marca o início da narrativa de 'Bateção' (Pequena Zahar, 2025), um sinal de respeito ao rio


Blog Letrinhas: Ia puxar isso agora! 

Josias: A morte importante para esse lugar do ciclo da vida. Então o peixe que é devorado ali, e de alguma forma, uma parte deles sobra, vira uma florzinha, um modo de dizer plasticamente, graficamente, que é o adubo ali que vai alimentar outra coisa. E o lugar onde a libélula vai pousar e depositar seus ovos. Por mais que seja violenta para os peixes a bateção, é o ciclo da vida, uma coisa depende da outra. É o alimento para pescador. Alimento para o rio.

Blog Letrinhas: Passa a ideia de a gente estar lá na experiência do rio e sentir algo como “tem tanta coisa acontecendo enquanto a gente está aqui!”. Como se não precisasse ir além daquele tempo que você coloca para contar a história. A história “toda” é imensa, mas a gente tem a sensação de estar vivendo só aquela parte ali do livro. Quando você fala da libélula, a vida começando no cruzamento, e pensamos: enquanto um tem vida o outro tem morte...

Josias: O livro não explica por que ela está indo pescar sozinha e a gente não chega com ela em casa. Ela some da narrativa, o fruidor se torna ela, ela dá espaço para o rio e só volta no final. 


Blog Letrinhas: E a libélula dá um tom do tempo, não?

Josias: Isso! Teu olhar está bem apurado (risos). Duas coisas que eu gosto muito de pensar no livro: o silêncio e a marcação de tempo. Você tem que sugerir de alguma forma para quem está tendo aquela interação com o livro objeto, o movimento de paginação, que também tem essa relação com o tempo. No livro, eu não dou uma mudança de tons de cor para falar que o dia está transcorrendo. Mas eu te dou um elemento. A libélula está lá no início, mas e depois? É como se ela fosse deixada para trás, porque os peixes continuam nadando ali e a gente já não vê mais a libélula.


Blog Letrinhas: Não é um enfeite do desenho.

Josias: Sim! Pensar que a bateção lá no rio Guaporé acontece longe da margem, então uma libélula não estaria tão longe. Ela é um elemento que marca uma passagem de tempo para mostrar, mas também de distanciamento e aproximação da margem. O personagem humano, adentra o rio e sai para pescar. Ela não fica na beira, ela vai. Então de algum modo também a libélula está marcando esse distanciamento da margem. Mostra, então, a pescadora voltando ali para beira, ela vai subir o barranco de volta e pensar que as libélulas estão reproduzindo por ali. 


Blog Letrinhas: E agora me fala um pouquinho das tuas escolhas, do seu trabalho plástico. Como é que você, então, cria as texturas, os peixes...

Josias: Eu gosto muito da paleta preto, branco, tons de cinza e um bege. Isso me dá muito prazer tanto que, inicialmente, os meus primeiros livros, as primeiras ilustrações brincam muito com esse contraste do preto sobre o branco. Eu gosto muito disso, esse contraste chama muito a minha atenção que vai conectar com as coisas gráficas que eu gosto, como a xilogravura e a xilografia. Meu processo de produção foi pensar o movimento desses peixes. E o que eu fiz? Eu desenhei num papel para guardar a marca da caneta, depois eu digitalizei, imprimi para eu ter a maior quantidade, e guardar ainda essa relação com a canetinha que aproxima com a impressão da xilogravura. Aí eu escolhi uma quantidade pouca também de cores. E por que é água tem que ser azul? Por que é céu tem que ser azul? Não. Queria mesmo trabalhar nesses contrastes e trazer outras possibilidades. Em Rondônia também tem o encontro das águas. Enquanto o rio Guaporé é um rio de águas escuras, em alguns momentos mais transparente, mais cristalina, o rio Mamoré, que tem um encontro com ele, é uma água salobra, mais sedimentar e tem a diferença de temperaturas. Como os rios Negro e Solimões, que é o mais conhecido por várias questões. Então isso me faz - enquanto um morador, um ribeirinho, um quilombola que nasceu e viveu ali em contato com o rio - pensar em outras cores. Junto dessa informação, eu gosto muito do papel colado, enrugado e ver o que ele vai trazer de textura para mim. Ao escolher um papel de gramatura bem baixa, colado em uma superfície mais dura. Ele me deu essa textura. Isso foi conversado com a editora, de ser proposital, aparecer a textura. Ou seja: mesmo que eu tenha coberto ali com uma tinta branca para tentar marcar essa diferença do horizonte, onde é céu e onde é água. A minha formação é das artes plásticas e como “artista-professor” quero discutir essas várias possibilidades: por que uma água não pode ser de outra cor?  Eu não quero só uma linha, então comecei a desenhar essas linhas e elas ganharam uma grande força que você só observa uma, mas que é a junção de várias. Aquilo, para mim, é a superfície da água, são as ondas brilhando. E, abaixo dela, no momento do livro que eu não vejo mais é porque nós mergulhamos.


Blog Letrinhas: Dá para sentir tudo isso! Vemos o peixe partido em dois, a tela cheia, estamos imersos...

Josias: Dentro do rio! Na parte do peixe partido, o horizonte que tem esse nome porque é horizontal (risos). Mas, nessa parte, eu virei: coloquei a linha no vertical, a linha da água. Então, se eu estou com o livro impresso, é o movimento da bateção. Os peixes estão fugindo, em espiral, para sugerir também que esse fruidor/leitor possa virar o livro, participando desse movimento dos peixes que fugiram e não fazem mais parte ali do meu campo de visão. Então, como o biguá retornou para a superfície, eu também posso virar o livro e retornar para a superfície. 


Blog Letrinhas: E aí nascem as plantinhas, por exemplo, os peixes perdem as cores porque são material de outra coisa...

Josias: Material da vida. Se a gente não quiser chamar de morte, podemos dizer que eles são, neste momento, material da vida.


Blog Letrinhas: Material da matéria de vida, matéria de poesia, como diria Manoel de Barros!

Josias: Também, né? Total!


Blog Letrinhas: E os outros peixes estão tocando a vida. E, antes de vir o texto final, tem as transformações todas. 

Josias: Eu coloquei umas bolinhas ali, a sugestão de que seriam os ovos das libélulas. Como se elas se unissem ali. Se reproduzissem, colocassem os ovos. Se a gente for pensar em ovo, também o ovo fala de vida, de nascimento.


Blog Letrinhas: É muita vida! Eu queria perguntar agora sobre a Dona Augusta e esse texto, o depoimento dela na contracapa!

Josias: A mãe... a família do meu avô veio ali do Mato Grosso, veio pelo rio até se instalarem no que hoje a gente conhece como Rondônia, o estado de Rondônia. De uma cidade ali que chama Vila Bela da Santíssima Trindade, uma cidadezinha ali do Mato Grosso e quilombola. Eu gosto dessas conversas com a minha mãe, que tem coisas como eu não conheci. Então sempre dou um jeito de conversar com ela. E ela passou numa fase de demência medicamentosa, um período muito, muito difícil, que a memória dela ia para outro lugar. Então o jeito de manter o contato dela, mais conectado com a nossa realidade era conversar. Então eu ligava para ela todos os dias. Ela me contava algumas coisas. Larguei tudo do doutorado e fui para lá um tempo. Falei: Mãe, eu estou fazendo um livro já tem um bom tempo e eu não consigo resolver esse livro. É sobre pescaria, mas eu queria falar sobre bateção. Vou gravar essa nossa conversa de hoje. Faz de conta que eu estou visitando, que eu sou turista aqui em Rondônia. Foi um jeito de fazer com que ela revivesse a experiência dela. Ela ficou viúva e eu tinha sete a nove meses de nascido. Não conheci meu pai. Ela é mãe de nove filhos, mais o sobrinho que ela criou, tinha que dar conta de algumas situações e de colocar comida na nossa boca. Eu fui “raspa do tacho”...


Blog Letrinhas: Eu também fui!

Josias: E falam que são sempre os mais bonitos né? (risos) Ela já tinha seus 45 anos, vai fazer noventa. Foi uma gravidez que não foi muito tranquila, fui o único dos filhos dos nove filhos que nasci na enfermaria ali do quartel que é no quilombo. Não tem hospital. Não tem nada disso até hoje. A gente só conseguiu acessar porque os filhos mais velhos já tinham se alistado. 


Blog Letrinhas: Onde ela mora hoje?

Josias: Numa cidade vizinha, Costa Marques uns 30 quilômetros, faz parte do vale do rio Guaporé, de onde estava esta história. Sempre vamos fazer uma visita no Forte do Príncipe da Beira.


Blog Letrinhas: que é onde você nasceu. 

Josias: Isso. Então, quando eu perguntei para ela para me contar sobre a bateção, ela visitou a experiência dela também com o rio. Então ela me contava. Eu tenho uma caneca de alumínio, carrego ela para todo lugar. Ela viu a caneca, lembrou e apontou para a cozinha. Estava vendo aquela bacia ali? Aquela bacia que estava cheia de peixes... Ela estava narrando a experiência real dela. E no meio fala, ela, como quem abre um parênteses, fala que levou um choque de poraquê, e eu achei magnífico, pensando na construção para o texto do depoimento. Na hora da edição eu fiz alguns pedidos: vamos tentar deixar isso aqui do jeito que está, para marcar que, em alguns momentos da narrativa dela, a memória dela ia para outro lugar.


Blog Letrinhas: Algo a atravessava no meio da narração!

Josias: Eu entendo que nesse comentário dela, pensando em fotos aqui na memória, no costume. Na canoa, ficava descalço, então, se tinha um prego ali, como ela narra que você está com o pé molhado em cima do prego e passa um poraquê. E ficamos sem saber se foi uma descarga elétrica ou se realmente foi alguma outra coisa ali, o prego, mas que faz parte desse imaginário dessa pessoa que convive com o rio. Mas em qualquer lugar do rio que acontece a bateção, mãe? Em qualquer época do ano? E ela, “Não”. Não, na maioria das vezes é quando o rio está seco, e ela não fala que é dona da verdade. Ela fala: “não sei se acontece assim em todo lugar”. Narra a coisa toda a partir da experiência dela e que isso não exclui outras. Não é melhor, não é maior do que a experiência de outras pessoas em outros. 


Blog Letrinhas: Você está narrando de dentro. No momento que ela tem essa luta com a memória. A lembrança do choque, que é uma sensação forte e não é visual, como outras coisas que ela está narrando. Se a gente vai falar “eu entrei no rio”, se fôssemos acessar toda a memória, talvez não falaria, “eu entrei no rio, senti cada gota...” Mas algumas coisas a gente vai substituindo pela organização da linguagem. E é como se ela tivesse esse privilégio de escapar da linguagem, e contasse o que vem à mente, na ordem que quiser. Uma coisa forte.

Josias: De algo que foi importante para ela.


Blog Letrinhas: Vou terminar com mais um trecho do começo do livro, que este livro tenha um lindo percurso!

Josias: Axé! Fiquei feliz de compartilhar com você desta maneira. 


“E o rio começou a cantar a história daquele dia. Uma cantiga

longa, sinuosa, cheia de silêncios, cheia de outras vozes, cheia

de vidas. Era uma cantiga de rio baixo.”

 

(Texto Cristiane Rogerio)

 

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