A discussão da oralidade e da escrita, da ortografia, das línguas artificiais, do futuro das línguas existentes e, sobretudo, do português, empreendida pelo poeta que escreveu: "Quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma".
A discussão da oralidade e da escrita, da ortografia, das línguas artificiais, do futuro das línguas existentes e, sobretudo, do português, empreendida pelo poeta que escreveu: "Quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma".
Fernando Pessoa viu na Língua Portuguesa um Império a desvendar e a fazer vingar. Império poético e profético, regido pelo Vieira sebastianista e "Imperador da língua portuguesa", como diz um poema de Mensagem. Império que transmutaria as conquistas e o fracasso histórico de Portugal, pontuados pelo desaparecimento de d. Sebastião e pelo mito de sua volta, num misterioso destino de irradiação cultural e de liderança espiritual.Os textos apresentados neste livro dão matéria nova a esses conteúdos, já conhecidos em outras partes de sua obra, mas sem a especificidade lingüística que eles ganham aqui. São fragmentos do seu esforço de formulação de uma política da língua, e entram pela discussão da oralidade e da escrita, da ortografia, das línguas artificiais, do futuro das línguas existentes e do destino exponencial que o poeta consagra ao idioma português na Babel do mundo.Todas as suspeitas conhecidas sobre um ideário mitopoético dessa natureza encontram aqui, se quiserem, terreno fértil. Mais que nunca o sebastianismo pessoano, traduzido em minúcias gramaticais e na defesa da antiga ortografia etimológica, parece pura fantasia compensatória, com ares de delírio miudamente organizado, para o papel desproporcionalmente menor de Portugal no mundo contemporâneo.No entanto, esses textos imaginosos até a excentricidade ao mesmo tempo que aridamente detalhados, sem data expressa mas datados pelas circunstâncias que os geraram, são, como sempre no caso de Fernando Pessoa, de uma outra ordem de grandeza. As suas considerações sobre o caráter democrático da fala e o caráter necessariamente construído e artificial da escrita, sua comparação das ortografias espanhola, italiana, inglesa e francesa, a partir da qual ressalta a peculiaridade da antiga ortografia portuguesa e brasileira (na qual vê a combinação de uma solene universalidade etimológica com um nacionalismo anti-espanhol), a associação necessária de forças centrípetas e centrífugas na vida das línguas, onde balanceiam a âncora da tradição e o livre jogo criativo, num movimento ao mesmo tempo programático e anti-normativo, tudo isso abre vieses incomuns de pensamento sobre as línguas em geral, e sobre a "inculta e bela" em particular.Sem falar do próprio mito da língua, que pode ser entendido também como um desejo e uma aposta de grandeza, sem os quais a vida, "metade de nada, morre".José Miguel Wisnik