Como líamos décadas atrás e como lemos hoje? E como funciona a leitura de uma criança nascida já na era digital? Na contemporaneidade, são muitas as mudanças nos jeitos de ler e como essa nova leitura influencia a absorção, a assimilação e a reflexão sobre o conteúdo lido. Decifrar como isso acontece e entender as consequências dessas influências na ciência, na educação e na sociedade são os temas de O cérebro no mundo digital, importante pesquisa da neurocientista americana Maryanne Wolf publicado pela editora Contexto.
O livro aborda numa linguagem acessível as pesquisas e reflexões da autora, que é professora, neurocientista, pesquisadora e defensora do letramento de crianças pelo mundo. Pós-graduada em literatura, sua vontade de entender os processos e meios da leitura veio de uma turma de crianças para quem lecionou numa cidade rural do Havaí: “Eu poderia mudar as circunstâncias das trajetórias de vida se pudesse ajudá-las a ser alfabetizadas, diferentemente do que acontecia com muitas pessoas em suas famílias. Então comecei a pensar seriamente sobre o que significa a leitura. Isso mudou o rumo da minha vida”.
Com essa motivação e um vasto repertório literário, a autora revela sua pesquisa num formato leve e convidativo, narrando suas descobertas em cartas ao leitor. Para entender como funciona a leitura, seus meios e suas vantagens, as cartas são numeradas e aparecem na ordem de nosso aprendizado: uma inicial, de introdução ao tema e à autora; seguida da apresentação da sua pesquisa; a terceira carta, com uma reflexão sobre a leitura profunda e seus impactos neurológicos; a quarta carta, com um teor analítico sobre o dilúvio diário de informações que recebemos e a necessidade das capacidades críticas no leitor moderno; já as cartas restantes finalizam o livro com as respostas para “três perguntas de Kant”: O que sabemos? O que teríamos que fazer? O que podemos esperar? Em busca dessas respostas, a especialista diz que “da primeira à última palavra, as páginas desse livro celebram a conquista humana que é o cérebro leitor”.
Ilustração: Marcelo Tolentino
Uma habilidade a se treinar
Todas essas cartas orientam o leitor a entender os problemas cruciais envolvendo o ato de ler. Maryanne Wolf traz uma primeira questão essencial para o entendimento do tema: a leitura, uma habilidade humana, não é um processo natural ou nascido com o ser. Não está no DNA da espécie e, como qualquer habilidade que não se treina e se alonga, se perde.
Para juntar síladas e absorver conceitos, precisa-se construir um cérebro leitor, com a habilidade de promover ações além das nossas básicas, usando de capacidades biológicas como a visão (ou o tato e a audição) e a linguagem como ferramentas para desenvolver essa função sofisticada da leitura. Isso exige do cérebro novos caminhos e conexões entre as funções cerebrais – ao que a pesquisadora chama de “plasticidade dentro de limites”, o princípio necessário no projeto do cérebro leitor. Essa neuroplasticidade permite o aprendizado, e qualquer nova ramificação de neurônios existentes gera esses novos caminhos utilizando diversas áreas do cérebro. Ouvir música enquanto lê um post nas redes sociais, por exemplo, são “invenções culturais que envolvem intervenções corticais”.
Desse modo, não existe um projeto genético prévio no corpo humano para a leitura, e por isso não existe um “circuito de leitura ideal”, podendo existir vários outros, a depender do seu domínio da língua e dos ambientes em que se dá o aprendizado. A pesquisadora questiona o mito de que a leitura, para a criança, surge naturalmente “quando a criança estiver pronta”, focando na necessidade de uma formação de novos circuitos cerebrais sofisticados, que permitam que essa habilidade se desenvolva num potencial cérebro leitor. Esse processo envolve mais do que apenas as partes cerebrais de visão, motora, linguagem e cognição, mas também do afeto. Esse cérebro, ao tomar conta de todos esses processos em todos esses lados, é capaz fisiologicamente de realizar a chamada leitura profunda, um tipo de leitura específica para a qual Maryanne dedica uma carta para explicar.
A leitura profunda e seus processos
Ao realizar esse tipo de leitura e ativar diversas áreas do cérebro numa mesma tarefa, percebe-se que algumas funções cerebrais surgem à medida que o leitor mergulha num texto. A pesquisadora separa essas funções entre três processos: evocativos, analíticos e gerativos.
Entre os evocativos, por exemplo, está a formação de imagens no cérebro, o que acontece quando lermos um texto. Ao falar sobre essa função, a autora conta sobre um desafio entre amigos escritores lançado ao autor norte-americano Ernest Hemingway. O escritor foi desafiado a criar um conto com apenas seis palavras. Eis o resultado: “For sale: baby shoes never worn”. A edição brasileira traduz para: “Vende-se: sapatos de bebê, nunca usados”. Cria-se assim imagens não descritas no texto. Esse processo, que acontece tanto na prosa quanto na poesia, cria reações cerebrais para aspectos visuais ? como a descrição de um ambiente ou de personagens – e as múltiplas camadas de sentido que podem existir num texto.
Por seguinte, também ajuda o leitor a entender os pensamentos e sentimentos de outros personagens, fazendo-o sentir o que está descrito nos livros, o que leva a outro processo evocativo: a empatia. Na leitura, esse processo mostra o “fértil milagre da comunicação realizada na solidão”, é o que gera o desespero no leitor, por exemplo, ao acompanhar o suicídio da protagonista do romance Anna Kariênina, de Liev Tolstoi. “Os mesmos neurônios que você utiliza quando mexe as pernas e o tronco são ativados também quando você lê que Anna se jogou na frente do trem”, existindo, inclusive, uma ação motora de neurônios-espelho interpretando esse desespero, que é capaz de mover braços e pernas do mesmo modo que os membros da protagonista se movem e o leitor observa durante a leitura da obra, o que Maryanne chama de “transportar-se à perspectiva de outros”.
E isso traz mais conhecimento de fundo ao nosso repertório. Não só para compreender melhor o tema do texto, mas para compreender melhor o próprio mundo. Sem um conhecimento de fundo suficiente para exercitar uma leitura mais sofisticada, menos processos de leitura são acionados, levando as pessoas a aprenderem menos. Para que o conhecimento evolua (do seu repertório pessoal até o conhecimento humano enquanto sociedade), é necessário acréscimos constantes ao conhecimento de fundo.
Sem este repertório, estamos suscetíveis a acreditarmos em informações duvidosas ou falsas, confundirmos conceitos e ignorarmos algumas ciências. Este repertório permite que interpretemos novas informações com inferência e análise crítica. E esta habilidade não funciona apenas para nos protegermos de notícias falsas, mas também guia nossa mente para a capacidade de análise de informação e construção de ideias, e com a avaliação dessas como matéria-prima de pensamentos novos, ou insights, como a autora denomina.
A leitura digital é um perigo?
Num processo diferente de leitura, há a digital, e variadas formas de leitura resultam em mecanismos cerebrais diversos. O meio digital mostra-nos prontas as imagens, oferece links que nos permitem saltar de um tópico a outro e cria um banco de informações acessível para consultarmos, o que poupa nosso cérebro de mantermos nós mesmos essa plataforma de conhecimento de fundo. Um estudo da Universidade da California mostrou que um americano médio consome cerca de 34 gigabytes de informação por dia, o que equivaleria a aproximadamente 100 mil palavras. No entanto, não seria possível dizer que essas mesmas 100 mil palavras poderiam representar um conto, já que muita dessa informação é consumida de modo fragmentado, superficial e disperso, como comenta a especialista.
Se a leitura digital permite esse acesso imenso de informações, as ferramentas características do digital penalizam os mecanismos da leitura profunda: a dispersão e a cognição lenta, pouco pensamento crítico, reflexão, imaginação e empatia. “A qualidade de nossa atenção — base de nosso pensamento — vai ou não mudar inexoravelmente à medida que deixamos para trás uma cultura baseada no impresso e passamos para uma cultura digital?”, a pesquisadora pergunta no livro.
Sherry Turkle, pesquisadora citada em O cérebro no mundo digital, mostra em um estudo que o nível de empatia entre os jovens caiu 40% nas duas últimas décadas. A esse comportamento, Turkle atribui parte da responsabilidade à incapacidade dos jovens de navegar no mundo online sem se desligar do mundo real, o que coloca a tecnologia como formadora de uma distância que muda os próprios indivíduos e como esses percebem uns aos outros. Maryanne sugere a leitura profunda como um antídoto a esse processo: “A pesquisa em neurociência cognitiva indica que aquilo que chamo de ‘adotar a perspectiva’ [ter empatia] representa um misto complexo de processos cognitivos, sociais e emocionais que deixa fortes marcas nos circuitos do cérebro leitor”.
Assim, mesmo em meios que favorecem a imediatez, a alternância de tarefas realizadas num ritmo ligeiro e a disponibilidade de informações, não basta ter apenas essa habilidade de leitura. Se a leitura profunda falha, e com ela falham os outros processos de pensamento crítico, é necessário que nosso cérebro seja capaz de realizar os dois tipos de leitura – a profunda e a digital –, criando o que Maryanne chama de um “cérebro bi-leitor”.
Como criar crianças leitoras?
Como militante do letramento infantil, a autora brinca com os termos laptop e lap (colo), sugerindo uma participação importante dos pais na formação da criança leitora além da digital. No livro, ela mostra um estudo em neuropediatria em que são destacadas as áreas do cérebro ativadas quando os pais criam momentos de leitura para os filhos pequenos: “Proporciona não só as associações mais palpáveis com a leitura, mas também uma interação entre pais e filhos que envolve atenção compartilhada, aprendizado de palavras, sentenças e conceitos, e ao mesmo tempo o conhecimento do que é um livro”. Quando mais velhas, as crianças precisam ter a imaginação e a atenção incentivadas, e isso pode vir de outras atividades que não apenas a leitura – no esporte, nos jogos ou nas brincadeiras.
A especialista reconhece, no entanto, que o letramento das crianças na prática depende também da situação socioeconômica da família. Assim, outra prosposta surge: a necessidade de programas governamentais mais abrangentes na primeira infância, que atendam no ensino de base as lacunas dessas crianças em sua primeira fase de desenvolvimento da linguagem e letramento. No âmbito escolar, a recomendação é que a educação infantil se concentre no uso de materiais impressos, com a tecnologia digital adicionada ao longo do tempo, já que o meio impresso, ao utilizar-se da leitura profunda, melhora a compreensão, a análise e a evocação, além de ajudar o leitor a desenvolver empatia com os temas ou personagens. Vale também acompanhar os estudantes continuamente, além de pensar na formação de professores para que esses também sejam críticos e analíticos, o que “pode ajudar professores de qualquer método a perceber quais degraus na escada podem estar faltando no modo como ensinam crianças”.
Assim, a especialista indica uma solução que não exige abolir o meio digital, mas de conciliá-lo com o impresso, possibilitando que as ferramentas oferecidas pelos dois tipos de leitura beneficiem o leitor nas duas plataformas. Maryanne defende que o desenvolvimento intelectual não surge de um sistema binário de comunicação, em que um dos meios seja intrinsecamente melhor do que o outro. O que ela sugere é a educação de crianças para a formação de um cérebro de leitura bi-letrado “capaz das formas mais profundas de pensamento em meios digitais ou tradicionais”. Ela explica: “Estou convencida de que, com mais sabedoria do que demonstramos até o momento, podemos combinar ciência e tecnologia para discernir o que é melhor, e quanto, para cada criança, do nascimento à adolescência, usando todas as mídias, dispositivos e ferramentas digitais”.
Para a autora, os sentidos das palavras “bom leitor” têm pouco a ver com o grau de eficiência com o qual as pessoas decodificam palavras, “têm tudo a ver com ser fiel àquilo que Proust já descreveu como cerne do ato de ler, ou seja, ir além da sabedoria do autor, para que cada um descubra a sua própria”. Por isso, em sua última carta, Maryanne pergunta quem são os “bons leitores” nesta época de mudanças e pede para que o leitor de seu livro reflita em seu íntimo sobre o papel que exerce numa sociedade democrática – “papel esse que nunca foi tão importante quanto é hoje”. Sobre o papel da especialista, ela mesma conta: ao ser questionada pelos próprios filhos sobre qual era sua profissão, Maryanne, ao invés de dizer “professora” ou “pesquisadora do cérebro leitor”, respondeu: “Sou uma fazendeira de crianças!”