Expedição nebulosa, intervenção visual de Victor Heringer
Meu querido amigo,
como se proteger das más estrelas?
O que é um “arquespélago”?
Você ainda acha que esta é a pátria da “gentileza desatenta”
Tantas perguntas ficaram por fazer, tantas perguntas aparecem a cada dia — agora que você não está mais aqui, como seguir adiante?
Por um instante, penso em pedir seu telefone a alguém e gravar um recado na secretária eletrônica, mas aí lembro que ninguém pode ajudar. Não consigo deixar de sentir sua falta, ou porque um assunto lembra você — ou porque quero compartilhar alguma coisa.
Capitão Q, as paredes ainda estão de pé?
Você não viu 2020 chegar e não está vivendo a catástrofe de agora, mas você já sabia que tinha um abismo adiante, você convivia com uma dimensão de falta e sabia transformar aquilo, tinha sempre uma doçura no olhar e trazia palavras ternas para os outros, apesar da dor. Mas agora que estamos aqui sem você, como seguir adiante? Para quem vou escrever? Quem vai fazer um gif para me mandar? Juntar imagens e palavras de um jeito só seu, tocar em uma pedra para ela poder virar pedra, pegar qualquer palavra e objeto e dar vida àquilo, e escrever uma crônica sobre esses tempos que vai me trazer conforto por poder nomear o mundo com a emoção que ele nos provoca? E quem vai me olhar com aquele sorriso e com os olhos marejados, como se fosse uma característica do seu olhar, que tinha mais água do que o normal, e não como se estivesse sempre à flor da pele, do afeto?
A certa altura passei a esperar você fazer os seus trabalhos – poemas, romances, crônicas, vídeos, fotografias – para fazer o meu. E você era das poucas pessoas para quem podia mandar o que fosse, sabia que entenderia. Era como ter uma língua própria com alguém, mas que não precisou ser aprendida, era dada, parecia estar ali pronta para a gente usar – a sensação de poder falar mesmo de forma cifrada algumas vezes e a outra pessoa responderia na medida, estava entendendo aquele idioma; e, ao ouvir você, tinha a sensação de ouvir alguma coisa familiar e nova ao mesmo tempo, alguma coisa surpreendente mas que parecia ter sempre estado ali, e eu já não podia viver sem seus livros e trabalhos.
Qual a sua palavra do ano? “Ebulição”? Canção da calamidade.
Quando você foi embora, estava grávida de quase oito meses e precisei ficar distante de tudo para poder chegar à minha “hora”. Teria sido diferente se tivesse podido estar com as pessoas que eram próximas a você, se tivesse vivido de perto o ritual coletivo pela sua perda? Você não conheceu minha filha, mas o tempo de vida dela é o tempo da sua morte. O fim e o começo ligados pelas pontas, mas eu não pude fazer um tocar no outro.
Às vezes tenho vontade de rir junto com você de alguma expressão paulistana que incorporamos ou de reclamar da saudade infinita do Rio e da tristeza imensa que as ruínas de lá provocam na gente, essa falta que a cidade ou a memória dela nos trazia. Às vezes, vejo vários de “você” na rua, virando uma esquina, vindo na minha direção, sentado em um bar em uma cadeira na calçada. E as cenas antigas voltam à memória, o último encontro, e o primeiro: íamos participar de uma leitura, tudo o que eu sabia era que você tinha morado no Chile, então ficamos dois tímidos lado a lado e eu puxei esse assunto. Em 2013, vim morar em São Paulo e três meses depois você chegou para morar aqui também. E veio nos ver. Pensando bem, esta foi outra primeira vez, como se começasse uma vida nova ali, outro momento, outra cidade, outro laço entre a gente. E, depois, tantas coisas depois.
No primeiro ano da sua morte, escrevi um texto em que “conversamos” um pouco. Chamava-se “Expedição nebulosa”, que era o mesmo nome de um trabalho que fizemos juntos: um poema meu para o qual você fez uma intervenção visual (imagem que abre o post). O novo “Expedição nebulosa”, feito já depois da sua partida, trazia falas suas, versos seus e conversas nossas. Agora eu falo sozinha, continuo nesta expedição, mas queria ter você aqui perto.
Ainda no Rio, quando você fez o vídeo “Oi, você sumiu”, na mesma hora disse que eu precisava escrever sobre ele. Era comovente, e tão pedestre. Acabei não escrevendo. Quando sinto muitas saudades suas, toco este vídeo — e ouço sua voz, vejo seus objetos, o prego na parede, seu autorretrato. O vídeo é feito de muitos recados gravados em uma secretária eletrônica, todos endereçados a você. Recados que ficam sem resposta. Como este aqui. Vituxo, cadê você? Você sumiu.
O ano acabou e a cada ano fica mais difícil ter perdido você.
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Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).