O que torna uma mãe a melhor do mundo?

20/04/2022

Se houvesse um concurso para escolher a melhor mãe do mundo, quem ganharia? No mínimo, haveria um empate dos grandes, ainda mais se os votantes fossem crianças. Independente de quem seja essa mãe, e do quanto ela possa oferecer em termos materiais, de tempo, presença e afeto, ela será perfeita sempre apenas por ser. E olhar por esse prisma é a grande sacada do livro da historiadora, poetisa e tradutora Nina Rizzi, ilustrado por Veridiana Scarpelli. A melhor mãe do mundo toca de uma maneira sensível, e de certo modo leve e até alegre, em um assunto que pouco se vê na literatura infantil: o encarceramento feminino e a maternidade coletiva, pelos olhos despidos de preconceito de uma criança.

Ilustração do livro A melhor mãe do mundo, de Nina Rizzi e Veridiana Scarpelli

Mas o leitor só descobre que a mãe está presa ao final do livro. No decorrer da história, sabe-se apenas que a criança se vangloria por ter a melhor mãe do mundo. Ela joga bola, inventa histórias, ajuda na lição de matemática, cozinha para a vizinhança inteira, cuida não só do próprio filho, mas também das crianças dos vizinhos num exemplo de maternidade coletiva que ainda é muito forte nas comunidades.

Apesar de tratar do tema do encarceramento, A melhor mãe do mundo não é apenas sobre isso. É sobre essa maternidade coletiva tão necessária para aliviar a pressão sobre todas as mães, é sobre se identificar na vivência da comunidade e na forma de falar do personagem (com gírias da quebrada), é sobre saber o que importa realmente para as crianças nessa relação materna: amor, cuidado e afeto. ”Imagino que possamos refletir sobre a maternidade como responsabilidade coletiva, sobre pais que estão presentes, crianças crescendo felizes, pessoas que se movimentam em suas comunidades e sobre a vida comunitária e, é lógico, sobre a liberdade”, comenta Nina.

Capa do livro infantil A melhor mãe do mundo, de Nina Rizzi

Capa do livro A melhor mãe do mundo, de Nina Rizzi. Leia+

 

Mães encarceradas

A autora conta que nunca tinha escrito um livro infantil e que começou a escrever a narrativa como um poema, sem a intenção de publicar um livro. “Comecei a pensar como seria, do ponto de vista de uma criança, estar longe da mãe por razões que pouco são faladas e, quando são, de forma criminalizante. Então, comecei a escrever, mas quis que essa voz narrativa fosse positiva, alegre e divertida, como é a da maioria das crianças, e não partindo de estereótipos e culpas”, explica.

Mas como juntar a visão e a linguagem infantil a um assunto tão sisudo, tão real? Afinal, estamos falando de uma questão que atinge milhares de famílias. De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em 2021, eram mais de 30 mil mulheres encarceradas no Brasil. Destas, 1.043 têm filhos pequenos, cerca de 35% deles menores de 3 anos. Apesar de toda a complexidade do tema, a escrita ganhou ritmo natural pelas mãos da autora. “Na verdade, foi um dos textos mais fluidos que já escrevi! Escrevi de uma sentada e, quando li em voz alta, mudei apenas uma outra palavra para soar melhor e mais natural”, relata.

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Linguagem das ruas

Dá para notar, ao longo da leitura, que a linguagem se aproxima mesmo da linguagem das ruas, com gírias. O leitor quase consegue “ouvir” o personagem falando. “Não faria sentido a narrativa acontecer ali e ter uma linguagem rebuscada. Seria falso e as crianças que vivem nesses lugares nunca poderiam ser reconhecer”, afirma a autora.

Talvez a sinceridade e a clareza com que Nina fala sobre o tema para os pequenos esteja relacionada a algumas experiências próximas já que, durante a faculdade de História, ela fez um estágio na antiga Febem (hoje, Fundação Casa), no interior de São Paulo. Ela também já realizou saraus em centros socioeducativos de homens e mulheres e em outras instituições de reclusão para adolescentes. “Além disso, tive experiências mais próximas, de familiares que foram encarcerados, como meus dois irmãos, a quem dedico o livro”, destaca.

Nina confessa que, ao ver o arquivo prontinho, com as ilustrações e com o texto, partindo para a impressão, não conseguiu conter a emoção. “Chorei tanto”, lembra. “Pela história, pelas imagens e pelo conjunto, por tudo o que representa”.

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Ilustração de Veridiana Scarpelli para o livro A melhor mãe do mundo, de Nina Rizzi

 

A poesia simbólica dos pássaros

O projeto de ilustração de Veridiana Scarpelli foi outra grande sacada do livro. O ponto de partida foi uma conversa que as duas tiveram antes sobre o que não desejavam. “Não queríamos delimitar gênero, para que qualquer criança leitora pudesse se reconhecer; não queríamos delimitar raça, apesar de, por todo racismo estrutural. A partir do que não queríamos, Veri, fabulosamente, teve a ideia de fazer os personagens como pássaros”, explica Nina.

“O texto da Nina tem muitas camadas fortes. Podemos falar de comunidade, maternidade comunitária, feminismo, patriarcado, racismo, amor, acolhimento”, diz Veridiana. Para ela, os pássaros resolviam as questões que mais a preocupavam. “É sabido (e horrível) que a política de encarceramento do Estado tem um alvo muito bem definido: a população negra. Desenhar um grupo de personagens ‘brancos’ seria irreal e leviano, ignorando uma situação muito grave, descolando a história de um grupo de leitores que vivenciam isso diretamente e que, mais uma vez, seriam ‘apagados’ da própria história. Por outro lado, fazer os personagens negros seria, ao meu ver, naturalizar ou, pior ainda, corroborar essa posição nefasta”, explica a artista.

Poderia ser qualquer outro bicho, mas os pássaros, mais especificamente os pardais, têm uma simbologia que também ajuda a contar a história e a chamar a atenção para o que importa, dentro do tema. “A ideia de serem pássaros e não outro bicho qualquer vem de um sentimento pessoal de tristeza absoluta em ver pássaros engaiolados. Acho de uma violência absurda. Como a política racista de encarceramento”, complementa. “A história é muito forte e bonita. A Nina soube equilibrar tão bem um tom leve e bem-humorado do bom sentimento, com um lado mais pesado e difícil, que o grande desafio, para mim, foi criar um clima que não pesasse demais para nenhum dos lados”, afirma a ilustradora.

Em algumas páginas cheias de poesia, amor, linguagem das ruas, crítica social e muita arte, A melhor mãe do mundo traz para o universo infantil um assunto tão longe, mas também tão perto. E não só para quem vive essa realidade. A liberdade e a prisão têm muitas camadas. A relação entre mães e filhos também. Mas o que importa mesmo, no fim das contas, é que cada criança tem a melhor mãe do mundo.

(Texto de Vanessa Lima)

 

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