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Por José Luiz Passos
Recebi meu diagnóstico de câncer na mesma semana em que David Bowie morreu. Ao contrário da minha mãe, que havia recebido o mesmo diagnóstico no mês anterior, não postei a notícia no Facebook. A novidade me parecia injusta. Como assim? Tenho 44, um casal de filhos pequenos, corro toda semana, como salada. No telefonema, a médica me disse que eu estava fora da curva, não era um caso óbvio, tinha sido um acidente e eu teria boas chances depois da cirurgia. Desliguei, agradecendo não sei bem o quê, e, quando minha esposa chegou, falei que precisávamos conversar. Ela ficou com os olhos parados, o rosto lívido. Ligamos a tevê para as crianças e fomos até o quintal. Ela sabia que por esses dias deveria vir o resultado da primeira biópsia. Lá fora não achei outra forma de dizer isso, então falei que a minha bolacha tinha caído com a manteiga para baixo. Ela começou a chorar.
Os primeiros dias foram de grande confusão. Pensar nos filhos, como apoio, era pior. Arrumei as contas de casa e a minha mesa de trabalho. Pedi uma licença à universidade, clareei o horizonte. Restava o quê? Comuniquei o resultado à família e a alguns poucos amigos. Era fevereiro, mês de carnaval. Restavam os livros. Estava no meio d’O marechal de costas, um romance sobre Floriano Peixoto e uma cozinheira tocada pelo desmantelo da nossa política atual. Os meses seguintes foram difíceis. Perdi doze quilos. A cada manhã, penteando os cabelos, eles ficavam mais ralos. As minhas unhas, mais doloridas e finas. A urina mudou de cor. O suor ficou ácido. A caminhada para a escola, a dois quarentões de casa, me dava taquicardia. Os dedos das mãos e dos pés ainda hoje ardem, formigam vinte e quatro horas por dia. Há seis meses que não consigo escrever à mão.
Mas a cada semana também chegavam pedidos de mais notícias. Entre eles, os de Marcelo Ferroni me desejavam melhoras e perguntavam como ia o marechal. Essas perguntas me fizeram voltar ao romance, depois de já ter desistido dele várias vezes no ano.
O marechal de costas faz a crônica da vida íntima e política de Floriano Peixoto, no gosto das amizades e antipatias que guardou por décadas, das humilhações de juventude, da imaginação erótica desabrochada na guerra, de sua obsessão por Napoleão Bonaparte e pela meia-irmã com quem se casou. Em paralelo, há a história de uma cozinheira a quem é atribuído um suposto parentesco com Floriano. No curso de uma noite, após o jantar na casa de um advogado, ela participa de uma longa conversa com um professor falastrão, que ouve a história de sua vida enquanto enxerta casos e teorias sobre a relação entre a política e os afetos. A noite leva todos a participarem de uma passeata de protesto. Tentei mostrar como, aos poucos, a relação entre eles revela laços de dependência e ressentimento. Maltratados por traições e pela solidão, suas vidas denunciam, num eco sombrio, o paralelo entre a crise política presente e a era Floriano.
2016 não está fácil para ninguém. A frustração com o fato de não poder mudar minhas próprias circunstâncias se somou ao espanto com a nossa vida política recente. Essa soma foi o motor do romance. Em Nosso grão mais fino (2009) procurei retratar a ligação entre nostalgia e decadência agroindustrial a partir de uma relação amorosa marcada pelo tabu. Em O sonâmbulo amador (2012) figurou a confusão entre as várias formas de amizade diante de um quadro de perdas afetivas e da dignidade do trabalho. Com O marechal de costas busco mostrar o lado privado e perverso de indivíduos e palavras de ordem que se incumbem da promoção do bem comum. O início da República foi marcado por uma profunda polarização na política e nos costumes. O jacobinismo dos florianistas era, curiosamente, mais conservador do que a agenda liberal do Império. Enquanto escrevia o romance, me vinha uma sensação de déjà-vu. Alguém duvida de que, no presente, o ontem se impôs ao hoje?
Tenho grande interesse pelo gênero da biografia, embora não acredite na maioria das que já li. Na biografia de ficção, por outro lado, a vida de um indivíduo pode ser contada como soma de uma experiência coletiva. E o romance é o campo onde a complexa sensação de tempos entrecruzados pode ser pensada por dentro, enquanto acontece e se torna visível. Por isso escrevi essa pequena biografia de Floriano e da sua parente, a cozinheira. Eles me fizeram companhia nos dois anos mais difíceis da minha vida. Ambos reforçam a minha convicção de que os poemas, contos e romances que escrevemos são parte importante de nosso futuro, ainda mais quando ele se encontra verdadeiramente ameaçado.
O MARECHAL DE COSTAS
Sinopse: Por trás de um olhar imóvel e de um silêncio desconcertante, o marechal Floriano definiu o período mais turbulento da nossa República. Mas o marechal de ferro oculta o sonhador casado com a própria irmã e obcecado por Napoleão Bonaparte. Nascido em Alagoas, Floriano é a figura de maior importância política nos primeiros anos da República. Nas páginas deste romance, passado e presente se intercalam de forma espantosa. Acompanhamos não só um Floriano Peixoto humano e o nascimento da República, como os acontecimentos turbulentos do presente, por meio de uma antiga cozinheira que segue, de perto, as manifestações de 2013 e seus desdobramentos políticos. Um livro poderoso sobre a construção de nossa nação.
O marechal de costas chega às livrarias no dia 21 de outubro pela Alfaguara.
José Luiz Passos nasceu em Catende, Pernambuco, em 1971. Formado em sociologia, doutorou-se em letras nos Estados Unidos. É autor dos ensaios Ruínas de linhas puras(1998) — sobre as viagens de Macunaíma — e Romance com pessoas(originalmente publicado em 2007 e reeditado pela Alfaguara em 2014). Também pela Alfaguara, publicou em 2009 seu primeiro romance, Nosso grão mais fino, selecionado para o prêmio Zaffari & Bourbon de literatura, e, em 2012, O sonâmbulo amador, com o qual venceu o Grande Prêmio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa em 2013. É autor de uma peça de teatro e de contos publicados no Brasil e no exterior — inclusive na revista Granta em português. Vive atualmente com a esposa e os dois filhos nos Estados Unidos, onde é professor titular na Universidade da Califórnia em Los Angeles. Lança em outubro o romance O marechal de costas.
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