O culto à personalidade do editor ou quais são as verdadeiras caras da Companhia das Letras — um post sinceramente feminista

19/10/2016

Por Luiz Schwarcz

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Ilustração: Alceu Chiesorin Nunes

livre42A relação entre Alfred Knopf e sua mulher, Blanche Knopf, tratada brevemente num texto anterior deste blog, é bastante emblemática. Se estiverem corretos os dados da biógrafa de Blanche, ela teve muito mais responsabilidade na formação e no desenvolvimento de uma das mais importantes editoras americanas do que seu marido, pelo menos mais do que aparece em alguns textos oficiais da Knopf. Blanche teria aguardado durante toda a vida para ter seu nome fazendo parte da marca da editora junto ao do marido, assim como esperou pelo reconhecimento público de seu papel, o que nem sempre obteve.

A imprensa era cruel com Blanche, ignorava-a em muitos textos sobre a Knopf, principalmente por ocasião dos aniversários da editora. Blanche ficava furiosa, com razão, quando um autor editado por ela -- e muitos dos mais importantes da Knopf faziam parte desse grupo -- era considerado como “do marido”. Segundo Laura Claridge, autora de The Lady with the Borzoi: Blanche Knopf, Literary Tastemaker Extraordinaire, isso aconteceu inúmeras vezes. O casal não poupava os funcionários ou amigos e brigava violentamente, sem recato, expondo uma vida que era tão calcada numa parceria profissional profícua quanto em disputas de ego e profunda separação amorosa.

A vida infeliz do casal não me serve neste post a não ser para exemplificar o culto à personalidade dos editores, muito comum e danoso à prática editorial. Não tenho como julgar se a biografia de Blanche é parcial e acaba sendo injusta com Alfred. Pode ser. Em muitos casos, o biógrafo se aprofunda no sofrimento de sua personagem e termina privilegiando excessivamente o ponto de vista do biografado ou biografada. No entanto, não é incomum ver editores sendo cultuados, incensados como verdadeiros artistas que não são, ou melhor, que não somos. Montar uma editora e tocá-la com propriedade requer algum conhecimento intelectual e, no caso de editoras não literárias, talento para farejar best-sellers. É preciso ter noção comercial e de comunicação aguçadas e, principalmente, saber formar uma equipe coesa, disposta a uma dedicação muito superior à requerida em outros empregos, que não lidam com aspectos autorais a cada novo produto.

Nada disso justifica os editores se transformarem em estrelas ou serem equiparados aos seus autores, glamorizados por jornalistas e colunistas sociais.

O talento na formação de uma equipe que entenda bem a personalidade da editora e a incorpora é, sem dúvida, o grande mérito que pode ser atribuído a um editor. Porém, a não ser pelo fato de que trabalhamos com produtos múltiplos e tão delicadamente individuais, essa me parece ser uma qualidade necessária a todo empresário, afinal, já não vivemos mais na era dos primeiros empreendedores, do capitalismo que dependia mais da inovação individual do que da criação coletiva. Na Companhia das Letras, sinto que a equipe mais do que pensa como eu, pensa por mim e melhor que eu.

Aí está o ponto mais importante. Na biografia de Blanche ou no texto comemorativo dos 100 anos da Knopf, que também citei aqui no mesmo post, pouco aparecem os editores da casa, que tanto devem ter contribuído para o resultado final de cada livro e pela construção de um valiosíssimo catálogo. Assim, não é só Blanche que foi injustiçada e afogada no ego supostamente dilatado do marido. A equipe da Knopf talvez tenha sido a mais injustiçada, como são as equipes de todas as editoras com um culto a um chefe supremo.

Um outro exemplo está no livro Hothouse, de Boris Kachka, que conta a história da Farrar Straus & Giroux, sem prestar o devido valor a Jonathan Galassi, que, tendo começado como editor há décadas, hoje é o presidente da empresa.

Por isso, no aniversário da Companhia que se aproxima, quero estar onde um editor deve estar, no bastidor, ou animando meus autores a falarem, exibindo-os nos livros e em alguns casos no palco, com orgulho. Quero também ostentar a equipe, e este texto é o primeiro porta-voz dessa vontade. A Companhia das Letras não seria o que é sem todos os nomes que aparecem mencionados abaixo e que trabalham ou um dia trabalharam conosco. Espero que a pesquisa em nossos arquivos esteja aqui exposta sem lacunas ou falhas. Além deles, seria necessário colocar o nome de todos os revisores, designers e prestadores de serviço que não tenho como mencionar. Peço desculpas a eles por isso, mas gostaria que se sentissem igualmente homenageados neste texto.

Começamos Lili e eu a Companhia das Letras com poucas pessoas. Estávamos lá nos primeiros dias com a Gisela Creni e o Zé Lú (José Luís de Souza), além do Ricardo Braga de Andrade. Não havia outros editores nesses primeiros dias da nova casa, porém, sem as editoras Maria Emilia Bender, Marta Garcia e Heloísa Jahn, que chegaram logo depois, que estiveram na Companhia por tantos anos e definiram o modo Companhia de editar, nada teria sido como foi. Sem o Sergio Windholz, que entrou em 1991  e finalmente colocou a casa em ordem — depois de um sucesso inicial inesperado e para o qual não estávamos preparados —, hoje seríamos parte de uma história diferente. Sem a Elisa Braga, que entendeu a alma gráfica e visual da Companhia como ninguém, se transformando de certa forma em um dos grandes corações da editora, o aniversário de 30 anos comemoraria uma editora totalmente diversa da que temos hoje. Sem Matinas Suzuki Jr., com quem hoje compartilho em primeira mão parte significativa dos meus anseios e angústias profissionais, não teríamos como ter dado os passos que demos nos últimos anos. São esses três profissionais que participam comigo e com a Lili Schwarcz da diretoria da Companhia. Em grupo, nós tomamos as principais decisões, que em muitos casos são atribuídas somente a mim. As mais ousadas ou espinhosas passam pelo crivo dos sócios, e nesse caso contamos com o companheirismo e amizade do Fernando Moreira Salles, um entusiasta da editora desde o começo e dos representantes da Penguin Random House, que não interferem, só apoiam.

As decisões editorias e estratégicas também passam hoje por um grupo de quatro jovens publishers, nome mantido em inglês apenas para diferenciá-los dos editores que com eles trabalham e por falta de equivalente em português. Júlia Moritz Schwarcz, Otávio Marques da Costa, Bruno Porto e Marcelo Ferroni são em muitos casos mais responsáveis por nossos acertos do que eu, embora seja a minha cara que aparece nas fotos. É injusto.

O culto à personalidade dos artistas ou escritores, embora ruim quando exagerado, é devido e correto. Existe como forma de reconhecimento do trabalho criativo e artístico do qual os leitores tanto dependem para viver. São assim os que leem avidamente: pessoas com a mente mais inquieta, que precisam de literatura para estarem felizes. Talvez sempre tenhamos sido menos numerosos do que o ideal, mas nós leitores agradecemos aos escritores transformando-os em nossos guias, gurus ou ídolos, numa atitude mais que compreensível.

No entanto, os leitores, como tenho dito incansavelmente aqui, também fazem a arte e a literatura existir. No caso dos livros, contribuem criando conjuntamente o produto final. Os leitores que cuidam da eternização dos textos, de sua compreensão e encaminhamento social. O culto midiático ao editor ou proprietário de editora é uma deturpação de sentido que só se explica pelo sistema de criação de mitos nas sociedades contemporâneas, pelas nossas fraquezas de ego, e pela necessidade de divulgar os livros e as nossas marcas num mercado que disputa novos títulos e autores furiosamente

Na cerimônia de comemoração do 25º aniversário da Companhia, agradeci a Lili por ser a verdadeira editora da minha mente. A frase repercutiu até em órgãos que costumeiramente não dão atenção especial à minha pessoa. O agradecimento foi indevido, pela modéstia com que tratou a homenageada, por atribuir a ela apenas o papel de “editora”. A participação dela em minha vida é muito mais autoral que editorial, enquanto a minha em sua vida talvez seja de cunho mais editorial. A Lili sempre foi a autora da minha mente e do meu coração e coautora de todos os meus atos que optaram pelo caminho certo. Nossa relação frutificou em um casamento muito diferente daquele que usei como exemplo no começo deste post. Nada do que fiz e que pode ser digno de avaliação como parte de uma história coletiva de sucesso deixou de ter a marca pessoal destacada da Lili. A ideia que ouvi tantas vezes quando jovem, principalmente do meu avô, de que por trás de grandes empresários e empreendedores há sempre uma “grande mulher” é preconceituosa e machista. Faz parte da mentalidade de outros tempos, por sorte já passados. As mulheres não estão por trás, mas junto, ou na frente, antevendo, preparando o campo e realizando. Assim foi com tudo na Companhia. Mais uma vez a foto deveria ser coletiva, do casal neste caso, e não minha.

Aliás, é interessante aproveitar a ocasião para apontar o papel fundamental das mulheres no mercado de livros. Sabemos que as leitoras são majoritárias com relação aos leitores, e que influenciam mais que estes. A equipe de marketing da Penguin Random House dos Estados Unidos, ao receber como bônus do seu CEO Markus Dohle uma polpuda verba para desenvolvimento de ações promocionais, resolveu investir num site destinado às mães chamado readbrightly.com, atingindo assim várias áreas editorias com uma tacada só.

Quando entrei no mercado editorial, em 1978, as mulheres já eram parte significativa da força de trabalho internacional das editoras. Concentravam-se, porém, principalmente nos departamentos de direitos estrangeiros. Hoje em dia, muitos dos cargos altos dos diversos departamentos das editoras são ocupados por elas. Dentro do grupo Penguin Random House dos Estados Unidos, os postos de presidente da Penguin, Crown e Random House são ocupados, respectivamente, por Madeline McIntosh, Maya Mavjee e Gina Centrello. As divisões de livros infantis, de marketing, e tantas outras são também de comando feminino. Barbara Marcus na Random House e Jen Loja na Penguin. Sem falar nos direitos estrangeiros, é claro. Talvez a maior concentração masculina ainda esteja no setor comercial, embora com certeza isso também esteja mudando. Curiosamente, muitos dos grandes editores ou proprietários de editoras destinam boa parte do seu trabalho na área comercial. Esse era o caso de Alfred Knopf e de Bennett Cerf, da Random House. Na Companhia, até o setor comercial hoje tem comando feminino, e a proporção de mulheres no campo editorial e de produção é bem maior que a de homens. Do total de funcionários hoje no grupo, praticamente 50% são mulheres. Se levarmos em consideração que na área de expedição e entrega a proporção de homens é de quase 100%, vemos o quanto o trabalho editorial é feminino. É uma alegria ver o espaço profissional dividido igualitariamente — ou majoritariamente — por mulheres, o que talvez nem sempre foi verdade, mesmo no mundo editorial. Seria ainda melhor se tivéssemos mais mulheres começando suas próprias editoras e galgando postos ainda mais altos na hierarquia das grandes corporações. É justo esperar que a força de trabalho das editoras, que avançam com um olhar especial para o público feminino, seja dominada pelas mulheres. Nesse aspecto, o mercado de livros é também diferenciado, privilegiado e especial.

Por fim, eu gostaria hoje de ilustrar este post com a foto de cada colaborador da editora, da família que trabalha diretamente ao meu lado,* dos sócios, dos funcionários, dos autores e artistas a quem tentamos homenagear diariamente com nosso cuidado editorial. Pense você mesmo em alguém que está ou esteve na Companhia, pense em você mesmo leitor, e se coloque na ilustração que abre o post, como meu homenageado. Muito obrigado a vocês todos, que são e formaram a verdadeira cara da Companhia das Letras.

Confira aqui os nomes de todos os funcionários que trabalham e já trabalharam na Companhia das Letras:

 

 

 

*Nota: Deixa-me especialmente feliz o fato de ter também meus filhos nesse time: a Júlia, a mais velha, é publisher de tantos selos fundamentais para a editora hoje, e o caçula, Pedro, tem hoje também papel importante na editora, coordenando as atividades sociais de divulgação da leitura em bairros menos favorecidos, em creches e no presidiário feminino, além dos clubes de leitura em livrarias em geral.

 

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna quinzenal.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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