O que é que ele tem

17/06/2016

Por Olivia Byington

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Ilustração: Olivia Byington

Sempre que eu contava alguma coisa relacionada à história do João, meu marido Daniel me dizia: “Você precisa escrever isso. Seu relato é importante para outras pessoas que percorreram esse caminho”.

Eu não fazia ideia de como começar, o que contar primeiro. Tudo o que eu ensaiava escrever me parecia enfraquecido, sem alma. Foi assistindo a uma entrevista da Tatiana Salem Levy que encontrei o caminho. No lançamento de um dos seus livros, ela revelou seu processo criativo, contou que escrevia fora de ordem e, em algum momento, organizava a cronologia e alinhava a narrativa. Foi o estalo do Vieira.

O primeiro relato que me veio foi a cirurgia em Nova York, que João sofreu aos seis meses, com um pós-operatório difícil no New York University Hospital. Aquelas lembranças foram puxando outras e o livro foi tomando forma. Ainda assim, eu tinha dúvidas se conseguiria chegar ao fim. Sofria de uma resistência psicológica avassaladora e qualquer pretexto para não continuar o trabalho era agarrado por mim com entusiasmo. A ambiguidade de querer contar essa importante história junto ao sofrimento que ela me trazia me paralisava a escrita. O texto foi saindo com a reflexão sobre isso tudo, a ajuda de muitos queridos amigos e a entrada dos editores.

Em seu livro de memórias Meu último suspiro, Luis Buñuel conta que durante muito tempo narrou à sua maneira a lembrança do dia do casamento de seu amigo Paul Nizan, na igreja de Saint-Germain-des-Prés, em Paris, no qual Jean-Paul Sartre era o padrinho. Um belo dia, ele se deu conta de que o amigo, pertencente a uma família de agnósticos e marxista convicto, jamais teria se casado na igreja. Concluiu que a situação era impensável e que provavelmente ele mesmo tinha inventado o cenário da história. Sua conclusão é que “a memória é perpetuamente invadida pela imaginação e pelo devaneio”.

Pensando em Buñuel, flagrei alguns registros fantasiosos no que escrevia e fui atrás da empoeirada agenda do ano de nascimento do João, 1981, assim como dos cadernos de anotações, os resultados de exames, os relatórios médicos para me aproximar ao máximo de sua história. Eu, covardemente, sempre evitei me aproximar daquilo como se fosse material nuclear. Foi preciso que eu desenterrasse esses registros para a reelaboração de vários episódios e mesmo a viravolta de muitos afetos que estavam mal guardados dentro de mim.

João já mudou de século, já evoluiu muito além de todos os melhores prognósticos de quando veio ao mundo. Escrever essas memórias me fez reexaminar minuciosamente a sua trajetória. Foram surgindo lembranças reais, dolorosas, meus erros e tropeços. Mas junto veio a minha juventude, a infância dos meninos, a felicidade vivida em tantos momentos valiosos.

Hoje estou mais forte e mais segura com a minha própria biografia. Fiz as pazes com um monte de assuntos, um balanço do que deixei de fazer na minha carreira e do que eu plantei nas nossas vidas. Mais uma vez, através do João, cheguei a um lugar inesperado. Com o livro pronto, tenho o orgulho de dizer que foi ele quem me auferiu esse novo status, tão longe da construção da minha história quanto respeitado e admirado por mim, o de escritora.

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9788547000110O QUE É QUE ELE TEM

Sinopse: Março de 1981. Durante o parto de seu filho, Olivia, então com 22 anos, percebeu que havia algo diferente. Até ali, havia enfrentado os anseios naturais de qualquer mãe de primeira viagem, mas não estava preparada para a mudança radical em seus planos -- e em sua vida. Assim começa a história de João, que nasceu com a rara síndrome de Apert. Menino valente, saiu da maternidade diretamente para o centro cirúrgico, começando ali uma longa caminhada repleta de incertezas, obstáculos, mas também de muitas vitórias. Este é o sincero e corajoso relato de Olivia Byington -- hoje mãe de quatro filhos -- sobre sua relação com a maternidade, com suas próprias aspirações e medos. O que é que ele tem é uma história de amor. Não qualquer amor, mas o mais difícil e raro: o amor pela diferença.

Evento de lançamento

Rio de Janeiro -- Terça-feira, 21 de junho, às 19h -- Livraria Argumento -- Rua Dias Ferreira, 417

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Olivia Byington iniciou a sua carreira como cantora e compositora no final da década de 1970. Gravou seu primeiro disco em 1978 e, desde então, conquistou uma sólida carreira musical, realizando inúmeros shows no Brasil e no exterior. Em junho de 2016 lança pela Objetiva o livro O que é que ele tem.

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