Uma história de violência

16/06/2016

Por Ana Maria Bahiana

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Estava pensando em um monte de coisas bacanas para atacar no post deste mês. Tantas, tantas opções. E aí vem a madrugada de domingo em Orlando. É mais, muito mais do que sou capaz de digerir, esses velhos monstros de sempre -- o fácil acesso a armas de fogo; o ódio; o preconceito; a personalidade fraturada, de feridas abertas, incuráveis, sabe-se lá há quanto tempo. E os números: 49 pessoas mortas, 53 feridas. Filhas e filhos, irmãs e irmãos, primas, primos, sobrinhos, amigos de alguém. E Brenda McCool, de 49 anos, mãe de 11 filhos que criou sozinha, e que dançava com um deles quando aquele ser impensável e impensado roubou-lhes as vidas conquistadas com tanta luta.

E saber isto: que a chacina de Orlando, na madrugada de domingo, foi somente um de 133 ataques com armas de fogo e múltiplas vítimas, nos Estados Unidos, este ano apenas.

Há tanto o que dizer aqui e eu me sinto tão muda. A parte racional, que analisa os dados e encontra respostas, ainda que históricas e retóricas, se encolhe.

Eu compreendo a famosa emenda número 2 da constituição norte-americana, aquela que  diz “uma milícia bem regulada é necessária para a segurança de um Estado livre e o direito do povo em possuir e portar armas de fogo não será contrariado”. Filho direto do Iluminismo e irmão da futura Revolução Francesa, o então muito jovem Estado norte-americano ao mesmo tempo sonhava com e desconfiava do novo poder que estava inventando. A sombra da monarquia absoluta ainda pairava sobre as jovens cabeças dos responsáveis pela emancipação desses Estados Unidos, ainda tão poucos e tão frágeis. Como impedir que algum aventureiro se apossasse dessa república verde e esperançosa e se transformasse no tirano que queriam eliminar? Com, entre outras coisas, “uma milícia bem regulada”.

O tempo criou uma nova música em cima dessa ideia: a tônica foi para o final da emenda, a parte que reza “o direito do povo em possuir e portar armas de fogo…”. É uma migração compreensível numa nação que nasce ao mesmo tempo querendo e não confiando no estado que criou, uma nação que nasce pondo o indivíduo, em suas escolhas e responsabilidades, no centro de seu conceito de sociedade.

Mas daí para frente a história se complica: poderio militar, domínio geopolítico, intervenção militar como política externa, a maior indústria de armas do mundo, tantos interesses, tantos significados, tanto poder se aboletando sobre aquela segunda parte da segunda emenda.

Eu entendo tudo isso e nada disso tem importância nessa hora, porque a emoção toma conta mais uma vez, a velha narrativa do massacre, do indivíduo que se sente ungido pelo poder de vida e morte por motivos x, y e z que são todos sabidamente loucos e pervertidos e não fazem sentido em nenhuma trama alinhavada pela lógica.

Uma vez, não muito tempo atrás, um sujeito me deu uma fechada na freeway. Reclamei, acelerei. Ele saiu atrás de mim, emparelhou, começou a jogar coisas sobre o meu carro, coisas pesadas, sei lá o que eram, o ruído tum tum tum cada vez mais alto, eu tendo que manter o controle sobre o carro a mais de 110 quilômetros por hora, o cara no Honda branco rebaixado, tão jovem, tão enraivecido, olhos injetados, me xingando, uma arma de fogo, grande, silenciosa, implacável, bem ali no banco do carona.

Saí da freeway, parei na primeira rua, chorei tanto. De medo, de raiva, de impotência, do terror do não acontecido, do confronto com um relance do olhar do monstro sobre mim, sobre tudo o que eu compreendia tanto mas não compreendia nada naquele dia, naquela manhã, uma manhã tão bonita, tão azul, tão sul da Califórnia.

E assim não era a história que eu queria contar, mas acabou sendo a história que se contou sozinha, talvez como Sheherazade fazia com o sultão, deixando que monstros e gênios e príncipes e tiranos lhe sussurrassem ao ouvido como adiar a morte por mais uma noite, por mais um dia, por mais um dia.

 

* * * * *

 

Ana Maria Bahiana nasceu no Rio de Janeiro e vive em Los Angeles. Jornalista cultural, escreveu sobre cinema e música em publicações como Rolling StoneBizzJornal do BrasilFolha de S. Paulo, entre outras, e foi correspondente, na Califórnia, das redes Globo e Telecine. É autora de Como ver um filme (Nova Fronteira, 2012), Almanaque dos anos 70 (Ediouro, 2006) e Almanaque 1964 (Companhia das Letras, 2014), entre outros livros. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

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