No palco com os escritores -- ou sobre a existência de blagues didáticas

27/04/2016

Por Luiz Schwarcz

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Ilustração: Alceu Chiesorin Nunes

livre42Espero que meus leitores e leitoras percebam que não levo muito a sério a contraposição que tenho feito da literatura com os valores morais tidos como adequados pela sociedade. Faço isso com o intuito de mostrar como leio um livro, como entendo a literatura, e também para melhor tentar compreender a alma dos escritores. Com isso procuro compartilhar minha visão de mundo como editor e pensar na melhor forma de realizar o meu trabalho. Trata-se no fundo de uma espécie de blague didática. Mas será que uma blague pode ser didática? Acho que acabo de criar um oximoro, uma contradição em seus termos. Me desculpem, me entendam.

Já falei num texto anterior que uma das acusações mais frequentes aos escritores é a de que estes querem chamar a atenção para si o tempo todo. Muitos acham que os escritores têm mania de grandeza e que se acostumaram tanto a fingir e representar que, na vida real, exageram até ao pedir uma média na padaria da esquina. Para os que partilham desse ponto de vista, muitos escritores são mais influenciados por Humphrey Bogart do que por Machado de Assis. Infelizmente há casos desse tipo -- por sorte são uma absoluta minoria.

Há histórias hilárias de escritores que foram grandes histriões e protagonizaram cenas dignas da melhor ficção; cenas que caberiam em seus roteiros, peças, romances, sem necessidade de revisão ou copidesque. Fizeram isso sem que seu trabalho literário perdesse a qualidade, com naturalidade. As frases do dia a dia saem ou saíam da boca desses autores já editadas, como se fossem destinadas a personagens, ou como se fossem ditas para irem direto para as páginas dos livros. Hemingway, por exemplo, transformou a parte final de sua vida em representação, e muitas de suas falas pareciam moldadas para serem epígrafes de seus livros.

Talvez o maior autor/histrião de quem ouvi falar foi Nelson Rodrigues. Gozava de seus colegas de redação, que batiam no teclado das máquinas de escrever com expressão séria no rosto, dizendo: “Não o perturbe, ele está escrevendo Os Maias”. (Nelson considerava o romance de Eça de Queirós a obra-prima da literatura de língua portuguesa.)

Nelson Rodrigues é um exemplo extremo e divertidíssimo, mas, mesmo assim, o vício da representação é um perigo na vida de um escritor. Ainda mais em tempos como os nossos, em que as editoras exigem que os escritores sejam os principais promotores de suas obras e cobram deles desempenho midiático e representação. Hoje em dia, nos Estados Unidos, um escritor que não tenha plataforma social para falar de seu trabalho talvez nem consiga ser publicado por uma grande editora. Se um autor tem aversão a entrevistas, pior ainda. E além do mais, para completar, tem que subir no palco dos festivais literários e representar, criar uma persona que combine com a sua obra e desempenhar como um verdadeiro ator de si mesmo.

Se a escrita é por natureza um teatro -- como nos mostrou Thomas Bernhard --, a representação não para por aí. O sistema editorial hoje conta com o autor/ator e, com o ator/marketólogo. Com isso, alguns escritores representam tanto a si que esquecem dos outros, e sua obra se esvai. Ou até deixam de escrever para frequentar festivais, numa roda-viva quase sem fim.

Há poucos casos de autores cuja obra se sustenta voltada exclusivamente ao próprio umbigo. Nem mesmo com Bernhard que tanto citei (veja meu post intitulado Exagero, fingimento e mentira -- ou a literatura não presta!) isso se torna possível. Ele olha para fora de si, com profundo desprezo, mas olha.

Tive um professor brilhante na faculdade que era simpatizante do anarquismo. Seu nome era Maurício Tragtenberg, e suas aulas marcaram a minha vida. Maurício possuía um repertório de blagues e frases de efeito incontável. Lembro de uma em particular: “Meus alunos, cuidado, o cargo faz o homem, nunca o contrário”.

Assim vale perguntar quanto do exibicionismo e do egocentrismo expressa o próprio ego dilatado do escritor ou faz parte do vício inerente à profissão de “dramaturgo social”. Além do mais é sempre bom entender o quanto o mercado editorial altamente competitivo cobra e exige dos autores -- que simplesmente querem ver seus livros lidos pelo maior número de leitores possível.

Se deixarmos fora da discussão a pressão exercida pelas editoras, há de entender a sensação que fica naqueles que vivem de criar mundos paralelos, manipular vidas inteiras, dar à luz, fazer sofrer, gozar, matar. Quando se encerra a tarefa de escrever, como será a volta do escritor para seu dia a dia? Fora da sua escrivaninha, será que ele se despoja rapidamente, se esquece dos personagens e passa a cuidar de si, a conviver com os que vivem a seu redor -- o cachorro, o porteiro, o cobrador, a família?

Para complicar um pouco mais nossa questão eu gostaria de mostrar como o exibicionismo dos escritores é um vício cuja origem vem da própria literatura, assim como a dissimulação. Tomo como exemplo um dos grandes livros que li nos últimos tempos: Vida e destino, de Vassili Grossman, editado no Brasil pela Alfaguara. Trata-se de um painel amplo da Rússia durante a Segunda Guerra Mundial, um retrato do stalinismo e também do nazismo. Mais que isso, Vida e destino é um tocante relato sobre a convivência com a morte nas ruas de várias cidades russas e nos campos de extermínio -- tanto nazistas como os gulags. Tudo o que se pode dizer sobre esse livro é pouco. A gama de personagens e de cenários, a riqueza das descrições, a pureza de espírito do autor, tudo é maior no romance; a ponto de nos perguntarmos se fora da escrita e da arte o ser humano é capaz de momentos tão sublimes como os que a leitura de Vida e destino proporciona. É um desses livros que nos faz acreditar na literatura e no ser humano.

Pincei o livro de Vassili Grossman para mostrar que mesmo numa obra grandiosa como essa -- cuja abrangência nos proporciona momentos de deleite, ilusão e crença no ser humano -- encontramos, espalhadas, as características que usei em posts anteriores para compreender melhor o funcionamento da ficção e a alma dos escritores. Mesmo com um painel tão amplo de personagens, a literatura de Grossman em vários momentos fala de si, apresenta seus recursos e garras, mostra como o centro gravitacional da literatura é seguidamente ela própria. No fundo, o escritor sempre presta reverência ao seu ofício, quer queira ou não.

Apresento um exemplo tirado desse livro: Víktorov, um dos inúmeros personagens do romance, é um piloto de avião de guerra que se encontra numa floresta, caminhando, se não me falha a memória, depois de sua aeronave ter sido abatida. Lembra-se -- talvez pensando na morte, da qual escapara por pouco -- de um livro que lera havia muito tempo, no qual uma mulher é dada em matrimônio a um homem poderoso, sem tê-lo conhecido. Logo após o casamento forçado, o marido é preso e levado a um castelo distante. A esposa, em vez de fugir para uma vida livre, agora exercendo a sua escolha, passa a procurar o marido, ajoelhando-se diante de cada passante e perguntando sobre o paradeiro daquele que mal chegou a desposar. Descobre depois de certo tempo que o marido fora esquartejado. Caminha longamente na direção de um convento, onde faz os votos de castidade. A partir desse dia, consagra sua vida à religião, mas reluta muito a entregar sua aliança, da qual não queria se separar.

A fábula de amor, narrada em meio a um raro momento de calma na guerra -- um instante breve na ficção dura, marcada pela morte de milhares de civis e combatentes --, serve em muitos sentidos ao escritor. Um deles certamente é o de mostrar que estamos no palco da literatura; é ela quem comanda as ações.

O autor sempre fala de si, de certa maneira, através de muitos de seus personagens, libera da mente seus sonhos, como disse Faulkner. Mas na literatura há uma força gravitacional, egocêntrica, que está sempre a afirmar: “estou aqui, veja como sou bela e poderosa, levo-os para onde quiser, da floresta russa da década de quarenta a um castelo supostamente imaginado por um outro escritor, onde um grande amor não se cumpriu”.

É o escritor que finge compulsivamente ou a literatura, seu ofício maior, que o puxa sempre para a representação? Ele pode ser um exibido por natureza, mas a sua arte é ainda mais.

Nessa pequena passagem pode-se notar como a prática da escrita leva, mesmo que dissimuladamente, à autoexibição. Do mesmo livro, tomo mais um pequeno exemplo, para mostrar sutilmente como os recursos da literatura permitem a manipulação. Muitas páginas à frente daquelas que aqui citei, o narrador, ao falar do cientista Viktor Chtrum, que está no centro da trama do livro -- posto à prova constantemente pela censura do stalinismo --, conclui: “Enquanto percorria o longo trajeto de volta para casa não pensou em nada: nem nas lágrimas na escada, nem na conversa com Tcherpijin, nem na carta da mãe, que estava no bolso lateral do paletó”. Por acaso a tal carta no bolso do paletó do cientista é totalmente fundamentada em um aspecto crucial da biografia do próprio Grossman. Irineu Franco Perpetuo nos conta, em seu ótimo prefácio à edição brasileira, que a carta representaria a ficcionalização da missiva de despedida que Grossman gostaria de ter recebido de sua mãe, o que nunca aconteceu. A mãe do protagonista fora praticamente abandonada por ele em outra cidade. O escritor deu ouvidos nesse caso à vontade da esposa, deixando a mãe morar sozinha durante a guerra, e é provável que se arrependeu disso profundamente. Se Grossman fosse, ele próprio, o personagem de Vida e destino no lugar de Chtrum, e portasse a tal carta em seu paletó, nunca poderia dela se esquecer. Nós mesmos, leitores de Vida e destino, depois de lê-la, jamais a tiraremos da nossa memória.

Fica claro aqui como a literatura é capciosa, como seus recursos de exibição e manipulação são infinitos. Grossman diz que Chtrum não pensava em nada, mas tenta enumerar o que ele poderia ou deveria estar pensando. Mente a respeito da carta. Ou coloca em Chtrum a culpa pelo que ele mesmo fez com a mãe. Encontra companhia para a sua fraqueza em seus personagens. Faz com que pensemos no lugar de Chtrum e dele próprio -- os dois se encontram exaustos após tantas provações. Grossman não conseguiu ver seu livro publicado em vida. Seu personagem Chtrum -- um cientista também perseguido pelo regime soviético -- recebeu a carta que a mãe de Grossman nunca lhe enviou. Assim, dela pode se esquecer, por um breve momento. O escritor -- que não recebeu carta alguma na vida real -- dela nunca teria se esquecido. Por isso, nos faz lembrar sempre de sua existência, enquanto afunda Chtrum no desespero e cansaço que certamente também vivenciou.

Com Grossman e com todos os bons escritores somos levados, sem perceber, para o centro do mundo da ficção, ou nos transformamos em personagens, agindo e pensando por eles, se assim o narrador o desejar.

O jogo da ficção é complexo. Tem idas e vindas simbólicas que nem mesmo o autor sabe explicar. Por isso é jogado simultaneamente em campos distintos: o íntimo e o público. Assim, quando a imaginação do autor precisa se materializar em uma performance e subir a palcos mais reais do que inventados, temos de nos perguntar: qual o preço a ser pago para se divulgar um livro?

 

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna semanal sobre livros e o trabalho editorial.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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