O homem que lutou para aceitar o original de um novato — ou a crítica necessária à autoridade do editor

06/04/2016

Por Luiz Schwarcz

perkins

Caricatura para a capa da edição americana de Max Perkins — Editor de gênios, pela E. P. Dutton, 1978.

livre42A relação entre os escritores e seus editores poderia render um blog exclusivo, monotemático. Não chegarei a tanto, mas pretendo explorar o assunto em vários posts. O tema é complexo, pode ser abordado por vários ângulos. Dedicação, lealdade e amizade que em muitos casos sedimentaram o trabalho compartilhado entre autores e editores são fonte de muitas histórias edificantes, que poderiam servir de incentivo a jovens que desejam se tornar profissionais do livro. Com maior divulgação, a história da relação de Max Perkins com seus principais escritores certamente atrairia muita gente ao mundo das editoras. Perkins foi o editor da Scribner, casa que descobriu e acompanhou as carreiras de F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Tom Wolfe, entre muitos outros. Mas o mercado hoje tem condições muito diversas daquelas que vigiam no mundo editorial americano da primeira metade do século passado. A história do livro teve grandes editores como personagens, sendo Max Perkins um dos mais destacados. Foi ele quem personificou melhor a devoção e dedicação que um editor deve deferir a seus autores. Como diz Scott Berg — autor de uma maravilhosa biografia do lendário editor da Scribner, aqui publicada pela editora Intrínseca e intitulada Max Perkins — Um editor de gênios —, Perkins “tratava a literatura como questão de vida ou morte”.

A história, ou mesmo o mito de Perkins, começa com a laboriosa descoberta da obra de um jovem oficial do Exército que, temendo ser enviado para fora do país, envia “um amontoado de contos, poemas e fragmentos” para a tradicional e conservadora editora de Charles Scribner. Depois de angariar apenas leituras internas desfavoráveis, os originais chegam a Perkins, que neles reconhece um talento não lapidado, tão imaturo quanto indiscutível. O tenente Scott Fitzgerald ganha, então, um defensor de seu futuro como escritor. Perkins passa a trabalhar com ele durante mais de um ano sugerindo seguidas e profundas modificações no texto. Os dois enfrentam uma nova recusa do comitê editorial, mas Max é persistente e consegue convencer Scott a retrabalhar outra vez o livro, seguindo as suas orientações.

Na terceira vez o original é aceito, e o editor envia uma jubilosa carta comunicando que Este lado do paraíso, o primeiro romance de Scott Fitzgerald, seria finalmente publicado. Na carta ele prepara o autor para mais trabalho, que o comitê editorial julgava fundamental para a edição do livro. O que estava em jogo na época era dobrar o conservadorismo de Charles Scribner Jr., fazendo-o aceitar a linguagem coloquial e moderna de Fitzgerald. Esse tipo de trabalho será ainda maior alguns anos depois, no caso de Hemingway, trazido para a Scribner justamente por Fitzgerald. Nas primeiras décadas do século XX, além da mentalidade retrógrada dos editores, havia o temor pela censura moral dos críticos e da sociedade. A fabulosa história de Perkins continua com a transformação do primeiro romance do autor, que anos depois escreverá O grande Gatsby, num enorme sucesso comercial.

Fiquei emocionado inúmeras vezes durante a leitura da biografia de Perkins. Encontrei uma grandeza na profissão em que atuo, grandeza esta que não cheguei perto de exercer. Mas o que mais chamou a minha atenção foi saber que a gênese do trabalho do grande editor americano se fundamentou na luta pelo reconhecimento de um talento, por aprovar a publicação de um jovem e inovador escritor num ambiente conhecidamente tradicional e retrógrado.

Um outro lado da relação entre autores e editores poderia ser abordado tendo em vista não só os atributos positivos elencados alguns parágrafos acima, mas também a complexa autoridade que os editores exercem. Tal perspectiva implica falar de histórias, nem sempre edificantes, feitas de momentos delicados e problemáticos. Perkins foi um gênio ao ganhar legitimidade para sua autoridade de editor através da entrega total aos autores e também pela profunda densidade com que tratava a literatura. Estava coberto de razão. No entanto, nos momentos mais difíceis do nosso dia a dia, a dedicação, a amizade e a lealdade nem sempre conseguem aplacar os conflitos inerentes à profissão.

Aí reside um grande número de lendas editorias, que se criaram a partir de um momento crucial na vida de um editor: o da decisão sobre se um livro deve ou não ser publicado. Há mais folclore acumulado sobre as recusas e erros dos editores do que sobre os acertos. A respeito desse tema, é bom lembrar não apenas do mais famoso de todos os casos — o da recusa de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, por André Gide, na ocasião editor da Gallimard. Gide, que depois de muitos anos se tornou amigo de Proust, confessou ter devolvido os originais de uma das obras-primas da literatura universal, tendo lido dois ou três trechos ao acaso.

Entre outras recusas famosas está a de T. S. Eliot ao romance A revolução dos bichos de George Orwell. O romance que criticava duramente o regime soviético foi recusado por inúmeras editoras, entre elas a Faber & Faber, onde Eliot era o diretor editorial. É sabido que, entre os motivos que embasaram várias das rejeições a este romance, estava a vontade de não desagradar a Joseph Stálin — na ocasião aliado de guerra da Inglaterra. Em sua carta, T. S. Eliot qualifica (negativamente) o livro de Orwell de trotskista. O diário de Anne Frank foi recusado quinze vezes; numa delas com a justificativa de que o livro não tinha sentimentos ou visão de mundo que pudessem despertar a curiosidade dos leitores. Lolita, On the road, as obras de Gertrude Stein, de Kurt Vonnegut, os livros da série de Harry Potter, entre muitas outras, penaram por anos até terem um parecer favorável de um editor.

Erros são muito comuns e viram folclore com mais facilidade do que os acertos. São fruto da fragilidade humana, mas também podem servir não só como exemplos, mas principalmente para nosso questionamento profissional. Afinal, de onde advém a autoridade de um editor? O que nos confere tamanho poder? Um conhecimento que não tem origem na ciência, mas que se funda principalmente na entrega à causa literária, deveria sempre ser usado com muito cuidado.

Max Perkins conseguia ser ouvido por seus autores até nas questões mais delicadas de intervenção no texto — de censura a termos então considerados chulos, por exemplo —, pois ele se colocava, o tempo todo, ao lado dos escritores. Ele os representava e buscava basicamente atender a dois dos mais sinceros desejos de cada escritor: o de realizar o melhor trabalho literário possível e o de ter um número alto de leitores. Nem sempre essas vontades são conciliáveis, mas isso é assunto para um texto futuro. Fitzgerald, depois Hemingway e Thomas Wolfe tiveram em Perkins não apenas um editor, que se mostrava integralmente disponível, entregando sua vida aos livros. Wolfe — que romperá com Perkins no transcorrer da sua trajetória — teria dito certa vez: “Em toda a minha vida, até conhecer você, jamais tive amigos”.

Perkins acabou se transformando em par dos artistas, sem de fato tê-lo sido. Essa é a mágica que um editor deve operar: em alguns momentos, saber se colocar na pele do autor, sem pretender substituí-lo. Passa assim a legitimamente ter status de conarrador, a cada livro novo que lê e edita. Mas por pouco tempo. Enquanto está nesse posto tem que pensar no leitor que quer alcançar. No caso de livros de literatura, para que o autor crie livremente ele necessita de alguém que pense no público; para não ser obrigado a conspurcar seu trabalho artístico com um raciocínio mercadológico. Já o editor precisa saber incluir esse cálculo comercial, sem destruir o que há de melhor no texto.

Na recusa ou na aceitação de um livro, na discussão de um texto ou nas decisões sobre seu acabamento como mercadoria — em todos esses momentos, o papel do editor vem imbuído de autoridade e de responsabilidades muito altas.

Questionar a própria autoridade e aliviá-la com efetivo serviço prestado aos autores é a melhor forma que encontro para conviver com a sedutora força que caracteriza a posição de editor. Ter autoridade sem desejá-la representa um bom começo. Ter autoridade sem desfrutar de nenhum fascínio por ela é melhor ainda. Ter autoridade com humildade, compaixão e autocrítica é o que completa minha busca pela dignidade editorial (quase) perfeita. O momento da recusa de um texto ou as ocasiões em que se faz necessário conciliar o universo dos autores com o de seus leitores são delicados, e por vezes muito doloridos. Por isso, há de editar os livros sem perder a ternura jamais.

 

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Se você ficou curioso sobre as recusas citadas na coluna de hoje, amanhã publicaremos aqui no blog algumas cartas de editores rejeitando originais que hoje são clássicos da literatura.

 

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna semanal sobre livros e o trabalho editorial.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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