Por Luiz Schwarcz
Ilustração: Alceu Chiesorin Nunes
É curioso como muitas categorias bastante humanas ou pessoais se encaixam na visão que tenho dos livros. Por exemplo: acho que os livros individualmente têm carisma (ou não). Por isso uso esse termo no meu dia a dia de editor, sugiro olhar para um livro e tentar entender se ele tem essa facilidade de se comunicar com os seus leitores.
Essa capacidade de comunicação é garantida por uma aura, a respeito da qual não é possível tecer grandes explicações. Essa aura é tão própria a um livro quanto a grandes comunicadores ou líderes. Com a vantagem de que os livros oferecem um risco muito menor: não concorrem a eleições, não montam exércitos nem enganam seus fiéis. O carisma de um livro, ou a falta dele, pode explicar a abrangência de seu alcance, ou seu sucesso comercial, se preferirmos pensar em termos mais mercantis. No entanto, um livro pode ter tipos de carisma diferentes — de difusão mais rápida e curta, ou de duração mais lenta e perene. Como na vida social, líderes e livros podem ser carismáticos para uns e nada ter a dizer a outros.
O carisma de um romance às vezes advém da capacidade de entreter multidões, mas penso que na maioria dos casos só isso não basta. Um exercício curioso é comparar livros excelentes, com trama eficiente e bem contada, e que, mesmo assim, não pegam, com livros do tipo A garota no trem, que surgiu sem grande expectativa prévia, e que afinal acabou agradando a milhões de leitores pelo mundo. Pois A garota no trem é exatamente um caso de livro com carisma e ele advém de outra característica absolutamente pessoal, que sempre busco captar num texto: a voz do narrador. Nesse exemplo ela é original, inigualável, é humana. No entanto, aqui, um leitor atento de A garota no trem me dirá: “Mas neste livro há várias narradoras, várias vozes!”. É verdade, mas ao menos uma delas, a de Rachel, uma moça desajeitada, alcoólatra, abandonada pelo marido — a principal narradora do livro — tem uma aura que explica o sucesso do livro. Trata-se de uma voz tão inconfiável quanto frágil, e por isso original e absolutamente humana. Com seu carisma, a voz de Rachel sustenta todo o romance.
Li recentemente livros com tramas mais elaboradas do que A garota no trem e que não alcançaram um número sensível de leitores. Porém, nos últimos meses, vi poucos textos de suspense com uma voz tão bem construída como a de A garota no trem.
Vivemos um momento curioso no mercado editorial brasileiro, principalmente em relação aos romances policias tradicionais. Aparentemente este é um gênero cujas vendas não têm crescido — em muitos casos o que ocorre é até o contrário. Meu colega Matinas Suzuki Jr. arrisca afirmar que há pouca renovação nos leitores do gênero policial. As novas gerações podem estar mais ligadas em narrativas de terror, fantasia ou ficção científica do que particularmente em romance de detetive ou de crime convencional. É bem possível. No entanto, tanto A garota no trem como Garota exemplar — que aqui não comento, pois não li — ou Dias perfeitos, de Raphael Montes, parecem ter se sobressaído no gênero de ficção de suspense e atraído legiões de fãs, de todas as idades. Eu procuraria a explicação em alguma das categorias humanas inerentes aos livros: carisma, voz…
Um detalhe curioso é que depois do sucesso dos dois romances com garota no título, o mercado editorial, especialmente na última feira de Frankfurt, foi inundado de livros repetindo a fórmula A garota antes, a garota depois, a garota na chuva, a garota do lado… Nós editores por vezes somos muito ridículos em nossa busca desenfreada pelo sucesso rápido. Não será a presença do termo garota na capa que fará do livro um sucesso, mas sim se a tal garota, dentro do livro, tiver voz particular e convincente, ou se o texto reunir um conjunto de componentes humanos fortes que permitirão a comunicação em massa.
No entanto, ainda sobre a questão da voz, vale dizer que nem sempre é ela que garante o carisma de um livro. Grandes livros podem ser construídos a partir de vozes neutras, distantes ou tímidas. O caso mais interessante, dentre os que li recentemente, é o do primeiro livro da série napolitana de Elena Ferrante.
Elena, que por caso quase ninguém sabe quem é, se é mesmo uma mulher ou um homem, criou propositalmente em A amiga genial — e talvez nos livros seguintes da série que ainda não li — uma narradora com voz apagada. Deu a ela o nome de Elena, igual ao que inventou para se apresentar ao público, mas fez com que toda a conexão desta com seus leitores aconteça não através de sua própria voz, mas do retrato que faz da amiga, Lila. Neste caso, a voz de Lila é mais importante do que a de Elena e garante o carisma do livro. A Nápoles do pós-guerra, das meninas e meninos dos bairros pobres, surge muito mais de Lila do que da voz de Elena. É interessante notar que o nome do livro vem de uma passagem em que Lila chama Elena de sua “amiga genial”. Lila faz isso no enredo, mas o livro todo afirma o contrário. A amiga genial é Lila.
E afinal, quem é Elena Ferrante? A narradora (Elena) que descreve a amiga? A personagem (Lila) que se exibe ofuscando a narradora? Uma combinação das duas, ou nenhuma delas? Pouco importa. O que vale é o carisma do livro, e o embevecimento que sua leitura nos proporciona.
A garota no trem foi editado no Brasil pela editora Record, Garota exemplar pela Intrínseca, e A amiga genial pela Biblioteca Azul da editora Globo. Dias perfeitos foi editado pela Companhia das Letras.
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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna semanal sobre livros e o trabalho editorial.