Uma conversa com Svetlana Aleksiévitch

26/04/2016

Por Ana Lucic

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Hoje, dia 26 de abril, o desastre de Tchernóbil completa 30 anos. Em 1986, uma explosão seguida de um incêndio em um dos reatores nucleares da usina causou devastação: milhares de pessoas morreram, a cidade de Prípiat, na Ucrânia, teve de ser evacuada. Até hoje, as marcas da tragédia na paisagem, nos animais e nas pessoas são visíveis.

Um dos relatos mais fortes sobre o que aconteceu em Tchernóbil vem de Svetlana Aleksiévitch. Ou melhor, vem das dezenas de vozes que ela reúne em Vozes de Tchernóbillivro que chega hoje às livrarias brasileiras. Ganhadora do Nobel de Literatura de 2015, Svetlana constrói nesse livro arrebatador, a um só tempo, o relato e o testemunho de uma tragédia quase indizível. Cenas terríveis, acontecimentos dramáticos, episódios patéticos, tudo na história de Tchernóbil aparece com a força das melhores reportagens jornalísticas e a potência dos maiores romances literários.

Svetlana Aleksiévitch é uma das autoras confirmadas para a Festa Literária Internacional de Paraty de 2016. Para conhecer mais sobre a autora e sua obra, traduzimos aqui para o blog uma entrevista concedida originalmente ao site da Dalkey Archive para Ana Lucic (tradução de Carlos Alberto Bárbaro). Leia a seguir.

 

* * *

 

Vozes de Tchernóbil é um livro surpreendente, emocionante. Que efeito ou emoção especial a senhora buscou despertar em seus leitores?

Passados tantos anos, diz-se que já sabemos tudo o que há para saber sobre Tchernóbil, que foi algo que passou e que ninguém mais quer ouvir falar no assunto. O fato, porém, é que o fenômeno de Tchernóbil não apenas não foi esquecido, mas não chegou sequer a ser propriamente entendido.

Quais são as reações mais comuns dos leitores a Vozes de Tchernóbil?

A mais frequente é considerar tratar-se de uma revelação: “Eu não tinha ideia de como as coisas foram realmente, especialmente no nível pessoal”. Este livro não é sobre o desastre de Tchernóbil em si -- sobre o porquê aconteceu e como aconteceu --, mas sobre o mundo depois de Tchernóbil, sobre como as pessoas reagiram ao fato e cada uma delas sobreviveu a isso. Não é sobre os danos à natureza e à genética humana provocados por Tchernóbil, mas sobre como aquelas experiências afetaram nossas vidas e nossa consciência.

Em que pese ter despertado novos temores e sensibilidades, Tchernóbil também eliminou parte dos temores antigos. O medo às autoridades comunistas se desmanchou quando, confrontadas com a opção de fugir, afastando suas famílias do perigo, ou de permanecer em Tchernóbil, mantendo a lealdade ao Partido, a maioria das pessoas partiram. O medo da radiação conseguiu, a seu modo, suspender, ou ao menos diminuir, o medo que elas tinham dos chefes do Partido e da autoridade partidária. Que os próprios chefes do Partido se dispusessem a abdicar dos seus cartões do Partido para fugir confirmava de fato, em meio às negativas governamentais, a seriedade do desastre em Tchernóbil.

A maioria desconhecia esse aspecto de Tchernóbil. O livro despertou exatamente as reações que eu vislumbrava enquanto escrevia: pessoas começando a pensar sobre o sentido de suas vidas e da vida em geral, sentindo a necessidade de uma nova visão de mundo, uma que nos salve a todos.

Quanto tempo a senhora passou levantando os dados e entrevistando as testemunhas? E quanto escrevendo? Que parte do material coletado foi aproveitada no livro?

Todos os meus livros são constituídos de provas testemunhais, de depoimentos de pessoas vivas. Levo normalmente de três a quatro anos para escrever um livro, mas desta vez foram mais de dez. Nos primeiros poucos meses que passei lá, Tchernóbil fervilhava com jornalistas e escritores de vários países, todos com centenas de perguntas a fazer. Acabei ficando convencida de que nos deparávamos ali com um fenômeno misterioso e completamente desconhecido que, simultaneamente, tentávamos descrever com palavras simples, em termos do cotidiano. Falávamos então sobre os pecados do sistema comunista e sobre as pessoas sendo enganadas, sobre o fato de que não fora dito a elas como proceder em tais circunstâncias, que elas não haviam recebido instruções sobre como utilizar iodo etc. E, claro, era tudo verdade. Os sentimentos nacionalistas antirrussos eram fortes na Bielorússia e na Ucrânia, pois fora uma estação russa nuclear que explodira: “os russos nos contaminaram com radiação”, dizia-se. Mas esse tipo de indagações soavam para mim um tanto superficiais. Respostas estritamente políticas ou estritamente científicas não eram o bastante -- ninguém tentava chegar ao âmago do problema. Percebi que poderia rapidamente escrever o mesmo tipo de livro que os jornalistas que encontrei ali iriam escrever. E havia de fato centenas deles ali. Assim, optei por uma outra abordagem. Comecei a entrevistar as testemunhas, mais de quinhentas delas, o que me tomou mais de dez anos. Dado que havíamos sido confrontados com um nova realidade, passei a buscar pessoas que tivessem sido abaladas por aquela experiência, instando-as a refletir sobre o que havia de fato acontecido, o que estava acontecendo nesse mundo novo que elas tentavam confrontar com métodos antigos. Por exemplo, recordo-me dos helicópteros militares, pilotados por pilotos que haviam estado na guerra entre a União Soviética e o Afeganistão, sobrevoando o reator em chamas; eles não tinham a mais remota ideia sobre o que deviam fazer com suas metralhadoras. É assim que todo sistema militar funciona: eles acreditavam que uma quantidade significativa de soldados e tecnologia bélica resolveriam qualquer problema. Só que ali eles estavam tendo que lidar com física de alta-energia, partículas nucleares, doses de radiação -- ninguém entendia de fato o que estava acontecendo.

Eu coletei a maior quantidade de material possível. Dentre as quinhentas ou mais entrevistas, 107 foram incluídas na versão final do livro, vale dizer, aproximadamente uma a cada cinco. E isto é basicamente o que acontece em todos meus livros -- eu escolho uma de cada cinco entrevistas, e é essa que vai parar no livro publicado. Para cada pessoa entrevistada eu gravo quatro ou mais fitas, o que dá cerca de cem a 150 páginas impressas na transcrição, a depender do timbre e da velocidade com que se conta a história, mas a versão final reduz tudo a cerca de dez páginas.

Como a senhora decidiu que iria escrever Vozes de Tchernóbil? Qual foi sua principal motivação?

Tchernóbil nos demonstrou o quão perigoso é o “culto à força” da civilização moderna, o quão flagrantes são as imperfeições advindas dessa confiança no poder e na coerção acima de todo o resto, o quão perigosas para nós são nossas modernas visões de mundo, o quanto o homem humanitário está ficando para trás em relação ao homem tecnológico. Desde os primeiros dias em que esse desastre esteve pairando sobre nossas cabeças -- e não apenas na forma de uma nuvem radioativa --, não foi apenas o teto do reator que explodiu: Tchernóbil explodiu toda nossa visão de mundo, minou as próprias bases do sistema soviético, que já havia sido estremecido pela guerra contra o Afeganistão. Foi uma explosão poderosa que abalou totalmente as nossas vidas. Eu lembro de centenas de milhares em manifestação antigovernamental na Bielorrússia, em defesa do cidadão comum e das crianças. Eu queria falar sobre essa experiência singular. O que aconteceu é que a Bielorrússia, com sua cultura patriarcal e tradicionalista, de repente teve que confrontar seus temores em relação ao futuro.

O quão diferente é a história que a senhora ouviu do povo quando comparada às versões oficial e da imprensa?

Completamente diferentes. Sempre tivemos essa situação na Bielorrússia e, parcialmente, também na Rússia, a saber, que a versão oficial tem muito pouco a ver com o modo como as pessoas comuns enxergam as coisas. Qual é o principal objetivo das autoridades? Elas sempre se dedicam com afinco a se proteger. As autoridades totalitárias daqueles dias forneceram uma vívida demonstração disso: elas temiam o pânico, elas temiam a verdade. A maioria das pessoas não entendia muito o que estava acontecendo. Em suas tentativas de autopreservação, as autoridades enganaram o povo. Elas garantiram a todos que tinham tudo sobre controle, que não havia perigo. As crianças continuaram jogando futebol, tomando sorvete nas ruas, os bebês brincando nas caixas de areia nos parquinhos e os adultos continuando a se bronzear na praia. Hoje, centenas de milhares daquelas crianças são inválidas, muitas delas já tendo morrido. Confrontadas com um desastre nuclear à época, as pessoas se viram a sós para lidar com o problema, e perceberam que estavam escondendo a verdade delas, que ninguém podia ajudar, nem cientistas e nem médicos. Era uma situação completamente nova para elas. Veja, por exemplo, o caso dos bombeiros -- que se transformaram eles próprios em pequenos reatores. Os médicos fizeram com que se despissem e os examinaram manualmente. Esses médicos contraíram doses letais de radiação dos bombeiros. Muitos bombeiros e médicos morreram em seguida. Os bombeiros não possuíam sequer trajes de proteção, que simplesmente nem existiam então. Eles chegaram ao local preparados para um incêndio tradicional. Ninguém estava preparado para esse tipo de coisa. Meus entrevistados me contaram histórias da vida real. Por exemplo, nos poucos centros de compras da cidade de Pripyat, antes que a evacuação começasse, as pessoas permaneceram em seus balcões observando o incêndio. Elas se recordam do quão esplêndida era a visão, toda aquela fluorescência carmim. “Era a visão da morte. Mas nunca imaginamos que a morte pudesse parecer tão linda.” Elas até chamaram seus filhos para admirar a visão com elas: “Venha aqui dar uma olhada. Você irá se lembrar disso até o fim da sua vida.” Elas admiravam o panorama de sua própria morte. Aquelas pessoas eram professores e engenheiros da usina nuclear. As pessoas com quem falei forneceram detalhes abundantes sobre a cena do desastre.

Lembro de ter recebido um telefonema do piloto dois anos depois: “Por favor, venha me ver assim que puder. Tenho pouco tempo de vida e gostaria de lhe contar o que sei.” Ele era um homem condenado ao me contar sua história. “Estou contente que a senhora pôde vir. Posso discutir isso contigo. Por favor, escreva o que vou dizer. Nós não entendíamos de fato o que estava acontecendo, e mesmo hoje eles ainda não entendem.” Eu sempre vivi com a sensação de que devia escrever tudo. Talvez as pessoas ainda não entendam de fato o que aconteceu então, e é por isso que é tão importante registrar as provas de fato, a verdadeira história de Tchernóbil, uma história que ainda não submergiu até os dias de hoje.

A senhora é uma escritora bielorrussa que vive em Paris. Sente-se como se pertencesse a um ambiente literário de um país específico ou considera-se independente de qualquer país ou região?

Eu diria que sou uma escritora independente. Não posso me considerar uma escritora soviética, sequer uma escritora russa. E quando falo “soviética”, penso no território do antigo império soviético, naturalmente, o reino da utopia soviética. Da mesma forma, não me considero uma escritora bielorrussa. Diria que sou uma escritora daquela época, a época da utopia soviética, escrevendo a história da utopia soviética em cada um dos meus livros. Estou apenas de passagem por Paris; minha estada aqui está vinculada à situação política na Bielorrússia e à minha oposição ao governo atual de lá. Meus livros vêm sendo publicados em vários países, menos na Bielorrússia; nos últimos dez anos do governo Lukashenko, nenhum dos meus livros foi publicado lá. Mas eu continuo a escrever sobre o homem comum em luta contra a grande utopia. Eu descrevo o desaparecimento dessa utopia e como isso afeta a pessoa comum.

Todos os seus livros são uma combinação de entrevistas com técnicas de ficção, o que para mim parece ser um gênero ímpar. Há outros autores fazendo algo semelhante?

A tradição de contar uma história desse modo, registrando as histórias orais, as vozes vivas, foi estabelecida na literatura russa antes de mim. Penso nos livros de Daniil Granin e Ales Adamovich sobre o Cerco de Leningrado. Por exemplo, I came from the fiery village [Eu venho do povoado em chamas]. Aqueles livros me inspiraram a escrever os meus. Percebi que a vida oferece tantas versões e interpretações dos mesmos acontecimentos que nem a ficção ou o simples registro dos fatos tem como competir com a sua variedade; senti-me compelida, portanto, a descobrir uma estratégia narrativa diferenciada. Decidi recolher as vozes das ruas, o material que estava ali, ao meu redor, esperando. Cada pessoa oferece um texto particular. E eu percebi que poderia fazer um livro com eles. A vida segue muito rápida -- somente coletivamente podemos criar um quadro único, de muitos lados. Escrevi todos os meus cinco livros assim. Os heróis, sentimentos e acontecimentos nos meus livros são todos reais. Para cada história de cem páginas contada por cada pessoa não entram mais do que cinco páginas na obra finalizada, muitas vezes, não mais que meia página. Eu faço um bocado de perguntas, seleciono os episódios e é assim que participo do ocorrido na criação de cada livro. Meu papel não se resume ao de alguém que ouve algo por alto na rua, mas sim também o de um observador e pensador. Para alguém de fora pode parecer um processo simples: as pessoas apenas me contam suas histórias. Mas não é simples assim. É importante tanto o que se pergunta, quanto o como se pergunta, além de o que se ouve e o que é selecionado de toda a entrevista. Não creio ser possível refletir de fato sobre o escopo mais amplo da vida sem a documentação, sem a prova humana. O quadro não ficará completo.

No capítulo “A título de epílogo”, a senhora diz sentir que está escrevendo para o futuro. Poderia comentar sobre isto?

Durante os dez anos em que estive visitando a zona de Tchernóbil, tive a impressão de estar documentando o futuro. As pessoas seguiam repetindo, como um refrão: “Nunca vi coisa igual. Nunca li sobre isso em lugar nenhum. Nunca vi isso em um filme ou ouvi alguém descrever algo assim.” Tchernóbil criou sentimentos inéditos, como o medo de amar; as pessoas tinham medo de ter filhos; novos sentimentos de responsabilidade foram criados; novas perguntas foram levantadas. E se, por exemplo, nossos filhos nascerem com defeitos? Como podemos avaliar noções tais como a desintegração periódica de partículas nucleares, que varia de três mil a cem mil anos? Isso estabelece uma perspectiva de vida completamente diferente. Dá para imaginar como uma pessoa se sente tendo de abandonar sua própria casa, o lugar em que nasceu, um povoado ou cidade, sabendo que não poderá regressar jamais, mas que sua casa continuará de pé ali? Era um sentimento completamente novo para eles. Ou, por exemplo, pegue o problema dos vilarejos contaminados. Como enterrá-los? Primeiro, retiram as pessoas; daí, contornando cada casa, ainda cheias de seus pertences, cavam uma grande vala; matam todos os animais, e os enterram. Desse modo, o homem trai seus animais, sua terra e seu lar. Agora, ao viajar até ali, tudo o que se vê, além dos velhos cemitérios, são túmulos aparentes, com casas e animais ali dentro. E isso desperta sensações surreais de que tudo ali pertence a uma outra época.

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