Você tem que ler Raduan Nassar

14/03/2016

Por Juan Pablo Villalobos

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Foto de Juan Pablo Villalobos.

Em 30 de janeiro de 2013, recebi um e-mail do editor mexicano Diego Rabasa perguntando se eu conhecia a obra de um autor brasileiro chamado Raduan Nassar. Respondi que conhecia, sim, porque a grande maioria de meus amigos brasileiros (professores universitários, editores e escritores, principalmente) tinha falado para mim a mesma frase, idêntica, em algum momento de nossas conversas sobre literatura brasileira: você tem que ler Raduan Nassar. Eu tinha lido anos atrás, de fato — apesar das limitações do meu português na época —, Lavoura arcaica, Um copo de cólera e Menina a caminho, levando em consideração meus amigos quando percebi que Raduan Nassar era um desses raros casos de unanimidade. Li com muito respeito, com um pouquinho de medo, até, pela óbvia dificuldade de leitura, mas desde as primeiras páginas a contundência da prosa e sua plasticidade me converteram num desses caras que falava para os amigos: você tem que ler Raduan Nassar. Eu tinha virado Nassarita, ou Raduanita, uma seita bem mais fanática do que o Corinthians.

Até aquela época, só Lavoura arcaica tinha sido traduzido para o espanhol (uma tradução espanhola) nos anos 1990, e alguns dos contos de Menina a caminho haviam sido publicados em revistas mexicanas, argentinas e espanholas. Em um e-mail posterior, Diego perguntava se eu estaria interessado em traduzir os três livros e se poderia ajudá-lo a fazer os contatos para comprar os direitos. Falei que sim, lógico, poucas vezes na vida um leitor encontra a oportunidade de cumprir o maior sonho, a maior honra de todo leitor: traduzir um de seus autores favoritos para a própria língua.

Demorou quase um ano e meio para ter o contrato de edição pronto (as reticências de Raduan Nassar para a tradução de sua obra são conhecidas) e o primeiro livro, Um copo de cólera, me exigiu quase três meses de trabalho intenso e exclusivo para traduzir as 13.880 palavras do romance. Lembro que fiquei tão abismado com a exigência do texto que, quando terminei, até fiz um cálculo. Eu tinha dedicado aproximadamente 400 horas para a tradução do livro, o que quer dizer que eu conseguia traduzir 34,7 palavras por hora! Uma palavra a cada dois minutos! Lógico que estou considerando tempo de revisão e de reescrita, mas acho que o cálculo é válido para ter uma ideia do que essa tradução representou.

Eu acredito que, contrário à opinião de muitas pessoas, o trabalho de tradução é um trabalho de criação equivalente à escrita. No meu currículo, gosto de colocar os livros traduzidos junto com meus romances. Não pretendo pisar o terreno do querido Caetano Galindo, vizinho deste blog, grande tradutor, teórico engraçadíssimo e amigo, mas gostaria de reivindicar, com permissão do Raduan Nassar, que algumas das páginas de Un vaso de cólera (a tradução de Um copo de cólera para o espanhol) são, com certeza, do melhor que eu consegui escrever até agora.

Un vaso de cólera foi publicado em janeiro de 2016 pela editora Sexto Piso no México e na Espanha e já recebeu ótimas resenhas. Na semana passada chegou uma notícia fantástica da Inglaterra: a edição em inglês (A cup of rage, traduzida pelo Stefan Tobler), foi escolhida como semifinalista do Man Booker International, um dos prêmios mais prestigiosos no mundo. É uma boa notícia para a literatura brasileira, para a obra de Raduan Nassar, mas é, especialmente, uma boa notícia para esses novos leitores que, pela primeira vez, terão o privilégio de ler Raduan Nassar.

A seita dos Raduanitas e dos Nassaritas crescerá.

A ladainha continuará, agora em inglês, agora em espanhol.

You must read Raduan Nassar.

Tienes que leer a Raduan Nassar.

Fragmento da tradução para o espanhol de Um copo de cólera:

EL BAÑO

Bajo la ducha yo dejaba que sus manos se escurrieran por mi cuerpo, y sus manos eran inagotables, y corrían escrutadoras con mucha espuma, e iban y venían incansablemente, y nuestros cuerpos mojados de vez en cuando se pegaban para que ellas alcanzaran la espalda en un abrazo, y a mí me parecía delicioso todo ese movimiento vacilante y sinuoso, que me provocaba súbitas y recónditas sacudidas, y viendo que aquellas manos ya invadían mis regiones más oscuras – explorando incluso las hilachas que acompañan el remiendo mal cosido de las ingles (sopesando astutas el paquete enjabonado de mi sexo) – le dije “lávame el pelo, me urge”, y entonces, sacándome del foco de la ducha, sus manos penetraron de inmediato en mi cabello, friccionando con firmeza los dedos, rayando mi cuero con las uñas, raspándome la nunca de una manera que me volvía loco en la médula, pero yo no decía nada y sólo me quedaba sintiendo la espuma que iría creciendo blanda allá arriba hasta que se desmoronara con alboroto por la cara, pinchándome los ojos en el descenso, haciéndome restregarlos desesperadamente con los nudillos de los dedos, aunque supiera que ellos, ardiendo, anunciaban francamente mi aseo, y ella no tardó en jalarme de nuevo bajo la ducha, y sus dedos comenzaron a tramar la cosa más deliciosa del mundo en mi cabello con la lluvia caliente que caía encima, y era entonces un plaft plaft de espuma gruesa y atropellada, estrellándose en la cerámica con el agua que corría ruidosamente hacia el desagüe, y ella reía y reía, y yo ahí, todo quieto y abandonado a sus cuidados, no movía ni siquiera un dedo para que ella cumpliera sola ese trabajo, y yo ya estaba bien enjuagado cuando ella, resbalando de los límites de la tarea, deslizó la boca mojada por mi piel de agua, pero yo, sujetando los frenos, hice de cuenta que nada perturbaba el ritual, y en cuanto ella cerró la llave me dejé conducir callado de la ducha al piso, y, conectado a una ligera corriente de escalofríos, me quedé esperando hasta que ella me tiró una amplia toalla sobre la cabeza, encargándose luego de secarme el pelo, en movimientos tan ágiles y precisos que agitaban mi memoria, y con los ojos escondidos vi por instantes, aunque pequeños y descalzos, que sus pies crecían metidos en sandalias, y sentí también que sus manos afiladas se transformaban en manos rústicas y pesadas, y eran manos minuciosas que se metían con los dedos por mis orejas, colmándome de caricias, haciéndome cosquillas, haciéndome reír bajito debajo de la toalla, y era extremadamente rico que ella se ocupara de mi cuerpo y me condujera enrollado al cuarto y me peinara delante del espejo y esbozara una reprimenda de ceño fingido y me hiciera pequeñas recomendaciones y me hiciera vestir pantalón y camisa y me hiciera acostarme de espaldas en la cama, inclinándose en seguida para cerrarme los botones, y me hiciera extender mis pesados zapatos en su regazo para que ella, doblándose llena de aplicación, pudiera amarrar las agujetas, yo sólo sé que me entregaba enteramente a sus manos para que fuera completo el uso que ella hiciera de mi cuerpo.

 

* * * * *

 

Juan Pablo Villalobos nasceu em Guadalajara, México, e morou alguns anos no Brasil. É autor de Festa no covil, Se vivêssemos em um lugar normal e Te vendo um cachorropublicados pela Companhia das Letras e traduzidos em quinze países. Ele colabora para o blog com uma coluna mensal.

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