Companhia das Letras 30 anos: O ano em que a poesia e a matemática se encontram

27/10/2016

Tem sido difícil, para mim, escrever sobre os trinta anos da Companhia das Letras. Escrever ou até mesmo falar sobre o tema, como se qualquer coisa que eu dissesse fosse pouco. Como se, fazendo prevalecer minha visão ao resumir de alguma forma o que se passou nestes trinta anos, eu estivesse subtraindo tantas outras formas de olhar para um passado que não é só meu.

Os livros, assim como os poemas, são sempre marcados pelo excesso. Mesmo os mais diminutos, os poemas de uma ou duas linhas, ou os livros quase sem lombada, aqueles que alguns dizem “não parar de pé”, mesmo esses transbordam sentidos, interpretações. Permitem leituras tão diferentes umas das outras, tão diferentes como somos nós, seus leitores. O início da maturidade da Companhia talvez coincida com o começo da minha velhice: os trinta da  editora engatam-se nos meus sessenta, e somente neste ano minha vida pode ser dividida em partes iguais, metade sem a Companhia, metade com, fato que nunca  mais se repetirá. A matemática e a poesia têm suas similaridades, como os bons cientistas conseguem demonstrar, e os bons artistas nos fazem sentir.

Todas as celebrações deste ano de nossa maturidade procuram dar voz aos autores. Escolhemos exibir nosso orgulho através dos livros, fazer os textos ecoarem, ressaltar a pronúncia de cada autor e, de alguma maneira, esconder os editores. É assim que tem que ser. 

Editar livros é sempre um ato de otimismo. Afinal, ao escolhermos um título estamos inventando também um futuro. (E, no Brasil, viver pensando no futuro exige uma dose de otimismo ainda maior que aquela natural à profissão.) O trabalho do editor começa ao idealizarmos uma vida material que em breve irá encadernar o que brotou da imaginação dos autores. Tentamos fazer com que o encontro dessas duas solidões — a dos escritores e a dos leitores — se dê da melhor maneira possível.

O mesmo ocorre com os poemas. Quando escritos, esperam por um leitor, anseiam por compreensão e amor, mesmo que incógnitos. O poema é um livro. Os dois nomes são apenas nomes, mas sugerem uma maneira de olhar para o que fazemos. Espero que nestes primeiros trinta anos isto tenha ficado bem claro: que gostamos sobremaneira de livros, de poemas, de literatura, e da transmissão aberta de ideias.

O editor, ao exercer sua profissão, não é um artista, não tem essa capacidade. Ele exerce outro tipo de atribuição, mais prosaica. Se fosse poeta talvez não assinasse alguns dos poemas que publica, assim como se fosse um pensador talvez discordasse de ideias que acha importante ver transformadas em livros. Essas são algumas das lições que os trinta anos “com” me ofereceram. Espero que as tenha transmitido aos leitores da Companhia, por meio dos livros, e a todos que comigo trabalharam nestas décadas, através de um cotidiano partilhado.

A estes últimos dedico estes poemas que aqui representam todos os tipos de autores da nossa Companhia.

* * *

Poema-orelha, de Carlos Drummond de Andrade

Esta é a orelha do livro
por onde o poeta escuta
se dele falam mal
               ou se o amam.
Uma orelha ou uma boca
sequiosa de palavras?
São oito livros velhos
e mais um livro novo
de um poeta inda mais velho
que a vida que viveu
e contudo o provoca
a viver sempre e nunca.
Oito livros que o tempo
empurra para longe
         de mim
mais um livro sem tempo
em que o poeta se contempla
e se diz boa-tarde
(ensaio de boa-noite,
variante de bom-dia,
que tudo é o vasto dia
em seus compartimentos
nem sempre respiráveis
e todos habitados
           enfim).
Não me leias se buscas
flamante novidade
ou sopro de Camões.
Aquilo que revelo
e o mais que segue oculto

Poética (II), de Vinicius de Moraes

Com as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia.

E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitetura.

Não sei bem se é casa
Se é torre ou se é templo:
(Um templo sem Deus.)

Mas é grande e clara
Pertence ao seu tempo
— Entrai, irmãos meus!

Hoje é outro dia, de Mario Quintana

Quando abro cada manhã a janela do
                                         [meu quarto
É como se abrisse o mesmo livro
Numa página nova…

* * * * *

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna quinzenal.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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