Filosofia de bolso

23/11/2016

Por Oswaldo Giacoia Junior

A vida intelectualmente lúcida de Friedrich Nietzsche (1844-1900) foi relativamente curta, pois no início de 1889 o filósofo foi acometido em Turim por uma síncope mental que o privou da razão por ulteriores onze anos de enfermidade. No entanto, sua produção filosófica é considerável, tanto em prosa como em verso, além de algumas composições musicais. Ciente da relevância dessa obra, que toca todos os pontos cardinais da cultura e da modernidade política, a editora Companhia das Letras tomou a lúcida decisão de incumbir o talentoso e competente tradutor Paulo César de Souza da tradução para o português, com excelentes e úteis notas histórico-crítico-filológicas, de todas as obras publicadas por Nietzsche, ou preparadas por ele para publicação. Com a única exceção do primeiro livro publicado por Nietzsche, e que causou rumorosa polêmica nos meios acadêmicos da filologia clássica alemã daquela época – O nascimento da tragédia –, que foi traduzido por Jacó Guinsburg, todos os demais títulos foram traduzidos por Paulo César de Souza: desde os dois volumes de Humano, demasiado humano, passando por Aurora, A gaia ciência, Assim falou Zaratustra, Além de bem e mal e Genealogia da moral, para culminarmos escritos de 1888: Crepúsculo dos ídolos, O caso Wagner, Nietzsche contra Wagner, Ecce Homo  e O Anticristo. Trata-se de um acervo riquíssimo, preciosidade cultural que enobrece o mundo das letras no Brasil, e que a mesma editora disponibiliza atualmente no formato de livros de bolso, democratizando o acesso a um amplo público de leitores.

Um dos aspectos mais marcantes da obra de Nietzsche consiste em sua crítica devastadora dos ideais e valores cultuados pela modernidade cultural. Pode-se considerar que o alvo privilegiado de sua filosofia disruptiva são as "ideias modernas" e sua influência no campo da ciência, das artes, da moral e da política. Ao denunciar a cumplicidade entre os valores supremos de nossa civilização e uma tirânica vontade coletiva de poder e dominação, cujo propósito oculto é levar a cabo um rebaixamento de valor do homem, sua padronização, uniformização, mediocrização como animal de rebanho – desprovido de toda grandeza e autêntica personalidade, rendido ao barateamento de um ideal de felicidade sinônimo de conforto, bem estar, segurança, ausência de sofrimento, hedonismo –, a vertente positiva da filosofia de Nietzsche propugna por uma transvaloração de todos os valores vigentes, pela instituição de novas tábuas de valor, que consagrem ideais antitéticos aos da modernidade política, subvertendo os valores esgotados e carcomidos do homem moderno, cada vez mais levado a reboque de uma crise de legitimidade em todas as esferas da cultura.

A influência de Nietzsche sobre sua posteridade cultural mal pode ser exagerada. Ele talvez seja o mais polêmico e provocativo dos filósofos contemporâneos. Sua obra foi considerada tanto como uma justificação filosófica antecipada do nazi-fascismo (George Lucáks, por exemplo), quanto como um libelo emancipatório anarquista. O relacionamento entre a ideologia totalitária nazi-facista e a filosofia de Nietzsche constitui um caso grosseiro de apropriação indébita, que contraria a mensagem essencial de que sua obra é portadora, mensagem que serviu de fonte de inspiração para os modernistas brasileiros da semana de 1922, bem como para os principais representantes pós-modernos do maio de 1968. Desse balanço pode-se extrair, como conclusão, que a filosofia de Nietzsche é um fino e delicado sismógrafo que capta e registra com antecipação convulsões e movimentos que se preparavam nos extratos mais subterrâneos da sociedade moderna, aflorados depois como desafios, impasses e dilemas com que ainda hoje nos defrontamos. Se é impossível entender o século XX sem Nietzsche, a chama de seu pensamento continua acesa, a verve de sua crítica ainda impacta o século XXI.

Depois do colapso mental ocorrido em Turim nos primeiros dias de 1889, Nietzsche viveu sob tutela da mãe e da irmã até 1900, sem nenhuma produção intelectual, vindo a falecer sem conhecimento do imenso impacto que sua obra causaria. Pois, durante sua vida lúcida, com exceção de uma ou outra efêmera repercussão positiva, a recepção de sua obra por parte da crítica e do público repete o fracasso de sua experiência docente. No entanto, a potência vulcânica da obra mantém viva a presença espiritual de seu autor. Como Nietzsche profeticamente considerava, o significado de sua mensagem estava destinado à decifração apenas dois séculos depois de sua morte. Com efeito, para Nietzsche como para o nosso Machado de Assis, alguns pensadores nascem póstumos, a força de seu legado é privilégio dos pósteros, para sorte nossa.

O vigor da filosofia e da prosa de Nietzsche fala a nós, brasileiros, de uma maneira próxima e especial. Se é verdade que, do ponto de vista cultural, somos um cadinho de formas e conceitos, modos de vida pensamento diferentes, provenientes do exterior, que a “alma brasileira” é um campo de batalha de elementos estrangeiros, antagônicos, que procuramos conformar e integrar, o perigo que daí resulta é que nos tornemos meros agregados justapostos, privados de autenticidade, de um fator de coordenação que nos permitisse organizar, dar forma à essa nossa díspar e conflituosa herança cultural.

Ora, para Nietzsche, essa é a rota de fuga para fora da mediocridade: é “preciso ter ainda um caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante. Eu vos digo: tendes ainda caos dentro de vós. Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem já não dará à luz nenhuma estrela! Ai de nós! Aproxima-se o tempo do homem mais desprezível que já não sabe desprezar a si mesmo. Vêde! Eu vos mostro os último homem”[1].

Por contraste com essa figura espectral, assustadora, do último homem, do homem medíocre, reduzido à dimensão da sobrevivência e auto-complascência, Nietzsche nos dá pistas preciosas acerca de nossa própria história e destino: o Brasil é uma terra de permanente devir, com propensão à indolência, mas com um poderoso material explosivo de transfiguração e criatividade; nossa civilidade não tem a rigidez de traços estáveis que definem identidades culturais fixadas, maduras para a estagnação. O Brasil está sempre em vias de tornar-se uma promissora terra da cultura; portanto, permanece ainda o país do futuro. Essa destinação depende de nossa capacidade de organizar o caos interno que nós somos, de preservar a fertilidade de nossos contrastes e diferenças, a força nutriz desse solo cultural, de que pode emergir uma estrela dançante. Esse caos, nós o temos, e talvez tenhamos também essa capacidade de transformá-lo indefinidamente. No caminho para lá, Nietzsche nos oferece um precioso fio de Ariadne.

 

[1] Nietzsche, F. Assim Falou Zaratustra. Prólogo de Zaratustra, 5. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 18

 

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Oswaldo Giacoia Junior é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas.

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