Paisagens emolduradas

14/02/2017

Foto: Carol Bensimon

Umas coisas que eu gosto: piscinas. Não mergulhar na piscina ou nadar na piscina ou tomar sol na beira da piscina, mas ver piscinas ou representações de piscinas em pinturas. A experiência estética piscina.

O oceano. Isso é mais ou menos novo. Aconteceu nessa temporada de seis meses com o Pacífico como vizinho. Não é que eu desprezasse o Atlântico antes. É que talvez o Atlântico quisesse demais de mim, quisesse ação, não contemplação, alguém que me convida para entrar na água como alguém que me convida para dançar só-essa-musiquinha, e naturalmente eu digo não, sabendo que estou decepcionando o amigo ou o ser-amado. A costa do norte da Califórnia, por outro lado, não está esperando grandes interações, e eu seria louca só de colocar os pezinhos dentro d'água; entrar mesmo apenas no caso de você ser surfista de verdade ou um mergulhador procurando abalones. Trata-se de uma costa para olhar. Falésias absurdas, mar com frequência revolto, as montanhas de coníferas em segundo plano. Não é paradisíaco. É dramático. Se fosse uma pessoa, seria alguém de personalidade forte.

Não sou a primeira que se encanta com esse lugar. Há inúmeras pessoas aqui no condado de Mendocino com histórias muito parecidas com a minha: vieram, se apaixonaram pela natureza e pelas pessoas, o lugar parecia mágico para eles, quiseram ficar. Frequentemente, há uma dose de espiritualidade envolvida nessa relação com o lugar, afinal estamos falando da Califórnia, o vórtex da contracultura, e a contracultura aqui, me parece, é sempre espiritualizada, uma coisa totalmente diferente do que ocorre na Europa e mesmo na América Latina, mas aí já estou chutando bonito e querendo falar sobre algo que ainda não consigo falar. O que eu estava tentando dizer é que, embora meu encanto não seja único e muito menos incompreensível – a paisagem é mesmo deslumbrante –, entendo que outras pessoas não se sintam tão arrebatadas assim pelo lugar. De modo que a pergunta seria: por que somos tocados por certas paisagens e não tanto por outras?

Essa resposta provavelmente está escondida no emaranhado de experiências pessoais de cada um de nós. E vamos achando, às vezes, aos poucos, rascunhos de explicações. Mas gostaria de citar um livro interessantíssimo: Savage dreams, da ensaísta Rebecca Solnit, uma autora que se debruça com frequência sobre o assunto "paisagem".

Em Savage dreams, Solnit tece, entre muitas outras coisas, um histórico sobre a relação do homem com a natureza. Estamos aqui falando do homem branco europeu. A visão romântica e contemplativa do homem branco europeu diante das belezas naturais seria relativamente recente; antes do século XVII, lugares como os Alpes eram considerados “sinais de catástrofe”. A coisa muda de figura com o advento da pintura de paisagem, que por consequência desemboca no paisagismo dos jardins, que por consequência desemboca em uma maneira de olhar para a natureza selvagem como se ela fosse um jardim. O que, se a gente parar para pensar, é uma coisa muito louca: a transformação da paisagem em arte teria feito com que passássemos a enxergar as paisagens, ou ao menos certas paisagens, como a arte que elas inspiraram. Nesse movimento, há uma certa domesticação do selvagem, é claro. Ou, no mínimo, uma idealização.

Um caso exemplar analisado por Solnit é o do Yosemite, o mais famoso parque nacional norte-americano. Ao chegarem no vale do que hoje é o Yosemite National Park, os primeiros homens brancos deslumbraram-se com a paisagem. Logo chegaram os pintores, que levaram para o mundo a imagem daquele pedaço do oeste americano. Mais tarde, os fotógrafos fizeram o mesmo. De maneira que, quando as pessoas comuns começaram de fato a visitar o Yosemite, elas iam para a sua visita já acompanhadas de um imaginário sobre aquele lugar. Mais do que isso: elas sabiam que pedaços do parque elas deviam contemplar e tirar fotos, como se aquilo já estivesse “emoldurado" para elas há muito tempo. Acontece o mesmo com todas as paisagens naturais transformadas em atrações turísticas.

Rebecca Solnit também ressalta o fato de que todas as representações do lugar – sejam elas as velhas pinturas do século XIX ou as fotos digitais de hoje – “limpam" a imagem de pessoas ou de qualquer ação do homem; as tribos indígenas que habitavam a região que se tornou o Yosemite não foram retratadas nas obras, assim como hoje ninguém quer tirar foto do Centro de Visitantes ou de qualquer outra construção erguida no parque (e são muitas).

De certa forma, acho que grande parte dos Estados Unidos está “emoldurada" em nosso imaginário classe-média-latino-americana. Às vezes isso fica muito evidente, como em um recente passeio no norte do condado de Mendocino: no último domingo, visitei uma dessas árvores gigantescas as quais a gente pode atravessar de carro. Parece que isso era algo comum na primeira metade do século XX, quando o turismo motorizado estava se desenvolvendo com força, etc. Pois bem. A árvore com um túnel no meio não era algo que eu desconhecia. Em algum lugar da minha mente, eu podia achar essa informação. Desenho animado do Zé Colmeia? Sei lá. Do mesmo jeito, cada armadilha para turista com cara de que ainda era igualzinha ao que era nos anos cinquenta me fazia pensar em Lolita, naquela parte do romance em que Humbert Humbert e Dolores passam os dias a rodar o país visitando coisas como o Museu da Batata com a Cara do Elvis ou sei lá o quê.

Daqui a duas semanas, volto para Porto Alegre. Foi excelente, Mendo. Vou ali colar um adesivo escrito I love redwoods no meu computador. Aguardem livro novo. 

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Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu último livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

Carol Bensimon

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