O que orienta nossos gostos em uma era digital?

10/04/2017

Por John Gray

Este texto foi originalmente publicado no The Guardian em agosto de 2016. Tradução de Carlos Alberto Bárbaro.

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Ao ser questionado por um interessado estudante sobre o bem viver, um já idoso E. M. Forster teria respondido: “Não pergunte sobre o bem viver. Descubra o que lhe agrada”. Não sei ao certo de onde se originou essa história, que ouvi em mais de uma versão, mas o conselho atribuído ao romancista inglês resume um conhecido tipo de filosofia liberal. Os argumentos sobre o bem são infinitos e inconclusos. Apesar de Aristóteles, Buda, Lao Tse e todos os que vieram depois deles, não há hoje mais consenso sobre o tema do que havia há dois mil e quinhentos anos. Dada a condição fugidia do bem, por que não nos concentrarmos em algo que possamos avaliar com uma dose razoável de certeza? Afinal, todos sabemos do que gostamos. Se nos concentrarmos naquilo que nos agrada, será difícil errarmos.

O problema reside em que, na verdade, aquilo de que gostamos quase nunca é claro para nós. Como escreve Tom Vanderbilt:

“[...] não sabemos do que gostamos ou por que gostamos do que gostamos. Nossas preferências são crivadas de propensões inconscientes, facilmente questionadas pelas influências contextuais e sociais. São menores do que imaginamos as chances de que amanhã gostaremos das mesmas coisas que nos agradam hoje e menores ainda as de nos recordarmos do que nos levou a nossos gostos anteriores. Até os especialistas, como acabamos de ver, estão longe de ser guias infalíveis para sabermos o que é de fato bom, para sabermos quais foram suas impressões.”

Para a maioria das pessoas, do que gostam e do que não gostam diz respeito apenas às suas preferências, coisas a que podem se apegar quando não dispõem da ética como boa conselheira. Alguns julgam que suas preferências são perceptíveis nas escolhas que fazem, outros, que elas se formam a partir de suas escolhas. Seja de um modo ou de outro, do que gostam ou do que não gostam lhes parece algo claro. O fato é que a mensagem deixada pela profunda, leve e informada investigação sobre as variações do gosto é que aquilo de que gostamos não é um fato definitivo sobre nós mesmos. Tão estranhos para nós quanto para outros, nossos gostos são opacos, flutuantes e, em certas ocasiões, quase inacessíveis.

Vanderbilt é o autor de Survival City e Por que dirigimos assim?, livros que vão bem além do que sugere seu tema principal — os resquícios arquitetônicos da Guerra Fria e nossos hábitos ao dirigir. Talvez você também goste tem uma abrangência similar, passando sem cerimônia das razões de gostarmos de confeitos coloridos e diferentes sabores de sorvete até como apreciamos os variados estilos de pintura e música. De quando em quando, ele menciona alguns resultados de pesquisas conduzidas em laboratórios científicos e comerciais, descrevendo alguns que ele visitou pessoalmente. Em outros trechos, ele avalia as especulações de filósofos como David Hume e Immanuel Kant sobre até onde os juízos de gosto podem ser racionalmente avaliados.

Vanderbilt discute o modo pelo qual serviços como os da Amazon e da Netflix empregam algoritmos para construir o perfil de cada um de nós, perfil idealmente mais confiável que aquele que formamos de nós mesmos, e que eles podem utilizar na hora de anunciar seus produtos. E recorda ainda a velha questão de até que ponto nossos gostos são nossos de fato ou um objeto de imitação ou condicionamento. Num trecho deliciosamente esclarecedor, ele demonstra como os padrões de beleza nos gatos foram mudando enquanto suas características físicas também mudavam à medida em que iam sendo cruzados para satisfazer as preferências dos humanos. Embora isso possa parecer um estudo sobre as preferências dos consumidores, trata-se, na verdade, de uma exploração inteligente e esclarecedora sobre os paradoxos do prazer.

Como seria de se esperar em uma investigação sobre o gosto, Vanderbilt começa seu estudo pela comida. Entre os ratos, o gosto é na verdade algo bem simples. Quando eles comem alguma coisa, sua tendência é gostar do que comem. Quanto mais eles comem dessa coisa, mais gostarão dela. Sua condição social ao comer não parece ter grande importância. “A conduta alimentar dos ratos não muda de acordo com seus observadores ou sentimentos de culpa ou virtude.” Os humanos, observa o autor, são mais complicados. Ao contrário dos ratos, as pessoas comem coisas por não as ter experimentado antes e por achar que outros membros de sua própria espécie gostam delas. O prazer que extraem da comida parece ser muito mais variado que aquele experimentado pelos ratos.

Uma refeição em um bom restaurante sempre começa com um conjunto de amuse-bouches, os aperitivos. Uma entrada saborosa “pode aumentar o apetite — e até a velocidade com que a comemos. Comemos para lembrar a nós mesmos da fome que estávamos sentindo”. No entanto, há um lado ruim para esse incentivo ao nosso apetite. Ao comermos algo, começamos a gostar menos disso:

“De um ápice inebriante de desejo lascivo (‘Minha nossa!’) descambamos em um desespero vagaroso de afeição minguante (‘Está bom’, dizemos, nos convencendo até certo ponto), pairando em torno de um platô de ambivalência (‘Melhor guardar espaço para a sobremesa!’), depois um declínio lento, tenso (‘Eu não devia pedir outro mesmo’, dizemos com uma risadinha nervosa), antes de enfim desabar em um surto de repulsa (‘Tira isso de perto de mim’, dizemos, empurrando o prato antes amado).”

Ao experimentarmos esse processo de saciedade sofremos do que Vanderbilt chama piedosamente “a trágica ironia do prazer da comida”. E não é uma ironia que se aplica apenas aos prazeres da comida, claro. Há muito sabemos que fazer do prazer o objetivo de nossas vidas é a receita para recompensas cada vez mais insatisfatórias. Essa é uma das razões que levou Oscar Wilde a fazer do seu Dorian Gray uma figura trágica. Se você dedica sua vida à busca do prazer, não vai demorar muito até que a saciedade e o tédio se instaurem. Por perceberem isso, alguns hedonistas vêm recomendando uma vida devotada aos mínimos prazeres. Epicuro, o filósofo grego da Antiguidade, recomendava viver em um estado de modesta ascese, sobrevivendo a partir de uma dieta de queijo, água e ocasionais goles de vinho. Outros filósofos, como Aristóteles e John Stuart Mill, diziam que certos prazeres são maiores em qualidade que outros, com os atributos morais e intelectuais sendo mais importantes que a sua intensidade.

Há outros modos de lidar com as ironias do prazer. Como o psicanalista Adam Phillips demonstrou em seu livro, Unforbidden Pleasures, os humanos — pelo menos os que partilham de nossa cultura ocidental — são atraídos, até mesmo viciados, pelos prazeres que a moralidade condena como pervertidos ou degenerados. Um sentimento de pecado pode adicionar o tempero que faltava a um prato comum. Não há nada remotamente simples no que se refere ao prazer.

Ao discutir os esforços dos filósofos para entender as flutuações do gosto, Vanderbilt analisa o famoso ensaio de Hume sobre o assunto, “Sobre o padrão do gosto” (1757). Hume tinha plena consciência da subjetividade idiossincrática de nossos gostos: “É quase impossível”, ele escreve, “não sentir predileção por aquilo que serve às nossas inclinações e temperamentos pessoais”. Mas ele relutava em considerar os juízos de gosto como preferências puramente pessoais. Há juízes melhores e juízes piores, ele insistia; alguns possuem maior “delicadeza de paladar” que outros. Seja como for, não há um teste objetivo para o bom gosto. Tudo o que possuímos é o consenso formado pelos críticos com o passar do tempo. “O mesmo Homero que agradava em Atenas e Roma duzentos anos atrás ainda é admirado em Paris e Londres.”

Vinda de um cético assumido, não é uma visão notadamente cética. Os gostos mudam de um período histórico para outro, assim como mudam individualmente na duração de uma vida. Os gostos também possuem um arco de variação cultural mais elástico do que aquele permitido por Hume. Sua crença de que a melhor arte vai permanecer cheira a complacência. As flutuações no gosto não conduzem boas obras ao esquecimento? Ao mesmo tempo, obras ruins podem nos dar prazer.

O autor informa que o Museu da Arte Ruim [Museum of Bad Art – MoBA], em Boston, tem um acervo de “artes muito ruins para serem ignoradas”. Quem dentre nós nunca teve prazer com um filme realmente horrível? Plano 9 do espaço sideral, o filme cult de Ed Wood, é um exemplo familar de um gênero em expansão. Deveríamos acompanhar Forster na assunção dessa linha liberal simplória de que a única coisa que conta é se gostamos ou não desses filmes? Isso faz deles filmes ruins? Não, é a sua penúria que faz deles um bom passatempo.

O que ficou de fora foram as contradições dos desejos humanos. Os seres humanos por vezes  gostam de coisas que acham que são ruins exatamente porque são ruins. Não podemos simplesmente buscar o que gostamos, porque gostamos das coisas à luz do que julgamos ser bom — e ruim. Voltamos assim às eternas questões postas pela ética, que mesmo o gentil romancista pede que o curioso estudante deixe para trás.

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Talvez você também gostede Tom Vanderbilt, foi publicado pela Objetiva e já está nas livrarias. 

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