Na última quinta-feira, o presidente norte-americano anunciou a saída dos EUA do Acordo de Paris. Selado em 2015 por 195 países, o Acordo de Paris tem como objetivo diminuir a emissão de gases de efeito estufa e pensar em políticas para conter o aquecimento global e lidar com os impactos das mudanças climáticas que já não podem ser revertidas. A saída de uma das maiores potências mundias desse acordo só porderia causar, claro, preocupação: os EUA é o segundo maior poluidor do mundo e, além dos problemas políticos causados por essa decisão, ela dificulta ainda mais o combate às mudanças climáticas.
O aquecimento global não é uma invenção dos cientistas, como dizem aqueles que preferem ignorar os alertas que o nosso planeta já dá há anos. É o que o jornalista Claudio Angelo mostra em A espiral da morte, livro lançado no ano passado que conta a história do aquecimento global pelo ponto de vista de dois "protagonistas": o Ártico e a Antártida. As alterações climáticas nessas duas regiões no último século, sobretudo nas últimas décadas, aproximam-se do nível crítico. Elas têm implicações sociais, geopolíticas, econômicas e culturais profundas, mesmo para a imensa maioria da população mundial que vive longe dos polos.
Para desvendar o quebra-cabeça do aquecimento global, o autor passou anos viajando por todo o planeta e conversando com dezenas de cientistas, políticos, ambientalistas e nativos das áreas afetadas. Perseguindo obstinadamente todas as hipóteses, o Claudio Angelo tem três perguntas que norteiam o livro: por que o gelo dos polos está derretendo?; isso está sendo causado ou acelerado pelo homem?; e, por fim, que impactos podemos esperar nas próximas décadas, se falharmos em atacar o problema na escala necessária? Para quem ainda tem dúvidas de que o aquecimento global é uma preocupação séria, a leitura de A espiral da morte é mais que recomendada.
No Dia do Meio Ambiente, leia um trecho em que Claudio Angelo mostra que, sim, a culpa pelo aquecimento global é nossa.
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É tudo culpa sua
A noção de que um agente tão insignificante quanto a humanidade seja capaz de um feito tão grandioso quanto alterar o funcionamento do clima da Terra ainda é difícil de assimilar para muita gente. Afinal, como lembrou o oceanógrafo americano David Archer, a própria ciência tem dado golpe após golpe no egocentrismo característico do Homo sapiens: Nicolau Copérnico mostrou que a Terra não é o centro do Universo, e sim um reles pedaço de rocha orbitando uma estrela qualquer; Charles Darwin sugeriu que nós não somos o ápice da Criação, mas sim chimpanzés pelados descendentes de bactérias, produtos de uma evolução biológica que não tem propósito oculto algum, em pé de igualdade com outros milhões de criaturas; os paleontólogos confirmaram que nossa espécie é, além do mais, recentíssima — surgiu na África há meros 240 mil anos. Para emprestar a metáfora usada pelo escritor americano Mark Twain, se a Torre Eiffel representasse a história da Terra, o tempo de presença da humanidade no planeta equivaleria à casquinha de tinta do pináculo da torre. O tempo que tivemos para operar tal mudança na máquina climática, derretendo geleiras e elevando o nível dos oceanos, foi mais curto ainda: a queima de combustíveis fósseis, apontada como o principal fator responsável pelo aquecimento global, começou por volta de 1750. Isso equivale a mais ou menos 0,1% do nosso tempo de vida no planeta. Ou, para seguir na analogia de Mark Twain, 0,1% da espessura da casquinha de tinta do pináculo da Torre Eiffel. À primeira vista, esses recém-chegados jamais poderiam ter algum impacto em algo tão antigo e imenso.
Não é difícil, diante disso, imaginar o ceticismo com o qual o engenheiro britânico Guy Stewart Callendar (1898 -1964) foi recebido por seus pares em 1938, quando afirmou que os seres humanos já eram agentes climáticos perceptíveis. Segundo ele, as emissões de dióxido de carbono pela queima de combustíveis fósseis haviam crescido 10% em um século, já haviam elevado as temperaturas médias da Terra e poderiam elevá-las mais ainda, eventualmente em dois graus. A afirmação de Callendar contrariava os livros-texto de meteorologia da época, segundo os quais a única influência humana possível no clima era temporária e local. Ademais, Callendar não era propriamente um cientista, mas sim um “técnico em máquinas a vapor”, cuja incursão na climatologia se dera por diletantismo. A nata das ciências físicas britânicas tratou os achados do engenheiro da maneira como muitas vezes os cientistas tratam ideias novas e radicais que contrariam o conhecimento estabelecido: ignorou-os solenemente.
Os cálculos de Callendar eram novos, mas o conceito por trás deles não. A ideia de que gases presentes em quantidades ínfimas na atmosfera — composta por 78% de nitrogênio, 21% de oxigênio e 1% de todo o resto — pudessem impactar as temperaturas do planeta vinha, na verdade, evoluindo desde 1824. Naquele ano, o francês Jean -Baptiste Joseph Fourier (1768 -1830), matemático do Exército de Napoleão, publicou nos anais da Academia Real de Ciências um estudo descrevendo o balanço de energia da Terra. Fourier descreveu as temperaturas como função da quantidade de energia que a Terra absorve do Sol. Esta chega ao planeta, escreveu, em forma de “calor luminoso”, radiação muito energética e de ondas curtas, e é por ele irradiada como “calor obscuro”, ou radiação infravermelha, pouco energética e de ondas longas — vulgarmente conhecida apenas como calor. Todos os corpos mais quentes do que o zero absoluto emitem luz nessa faixa do espectro. Por isso é possível enxergar no escuro com binóculos de infravermelho. Fourier calculou quanta radiação chega do Sol e quanta é reemitida pelo planeta. E levou um susto: se dependesse só desse mecanismo de entrada e saída de energia, o globo seria uma bola de gelo, com temperaturas médias de quinze graus negativos. Alguma coisa deveria aprisionar o tal calor obscuro irradiado pela Terra, retardando sua viagem de volta ao espaço.
Essa “alguma coisa”, teorizou Fourier, era a atmosfera, que retinha o calor de maneira análoga à de uma estufa de plantas. A comparação é imperfeita, já que o vidro que cobre a estufa age principalmente por impedir o ar aquecido pela superfície de sair, não pelo simples bloqueio do infravermelho. Mas as contas do francês mostravam que esse aprisionamento do calor por uma capa de gases na atmosfera — mais tarde batizado “efeito estufa” — era o que permitia a vida na Terra, onde a temperatura média atual é de cerca de quinze graus positivos.
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Em 1859, o irlandês John Tyndall (1820-93) deu um passo além de Fourier e decidiu verificar o que exatamente, na atmosfera, retinha a radiação infravermelha. O oxigênio e o nitrogênio foram inocentados: ambos eram perfeitamente transparentes aos raios de calor. O problema estava justamente no 1% restante, em especial num gás: o vapor d’água. Os experimentos de Tyndall identificaram também outro forte bloqueador de infravermelho: o dióxido de carbono, ou CO2, conhecido naquela época como ácido carbônico. Apesar de ser um gás-traço, cuja concentração não ultrapassa algumas centenas em cada milhão de moléculas de ar (ou partes por milhão, no jargão científico), o CO2 se mostrou extremamente eficiente em absorver calor. “Assim como uma folha de papel bloqueia mais luz do que toda uma piscina de água clara, o traço de CO2 alterava o balanço de radiação em toda a atmosfera”, compara o físico americano Spencer Weart.
O tamanho da importância do CO2 para balanço de radiação seria dimensionado, algumas décadas mais tarde, por um cientista que frequenta ainda hoje os livros de química do ensino médio: o sueco Svante Arrhenius (1859 -1927). Os estudantes do primeiro ano conhecem e possivelmente odeiam Arrhenius por sua teoria da dissociação iônica de ácidos e bases, que lhe daria o prêmio Nobel de química de 1903. O cientista, porém, tinha outros interesses, e um deles — que também movera Fourier e Tyndall — era a origem das glaciações. Os europeus havia décadas estavam intrigados com a possibilidade de que vastas porções do hemisfério Norte tivessem sido cobertas por gelo em algum momento do passado, e diversos cientistas mergulharam na busca de mecanismos físicos que pudessem causar tal resfriamento. Inspirado em Tyndall e outros cientistas, Arrhenius foi procurar as pistas da causa da glaciação nos gases de efeito estufa, o vapor d’água e o tal “ácido carbônico”. A maneira como fez isso foi ao mesmo tempo genial e dolorosa: calculando manualmente variações sutis no brilho da Lua.
Assim como acontece com a Terra, o brilho da Lua é mais intenso quanto maior for sua temperatura. Ou seja, quanto mais luz visível, mais infravermelho. O sueco supôs, corretamente, que mudanças na umidade do ar e no ângulo da Lua no céu, que afetam a espessura da camada de atmosfera que os raios lunares precisam atravessar para chegar até nós (no zênite, o trajeto é mais curto do que perto do horizonte, quando eles viajam obliquamente), causassem também variações no infravermelho. O brilho da Lua nessa faixa do espectro luminoso varia em função
da quantidade de água e de CO2 no ar. Quanto mais atmosfera, menos “calor obscuro” da Lua chega até um observador na Terra. O vapor d’água não interessava tanto assim a Arrhenius, já que sua concentração é extremamente variável (pense na cidade de Brasília, onde a umidade relativa do ar varia de 10% no inverno a mais de 80% no verão). Além disso, há um limite para a presença de vapor na atmosfera — umidade relativa de 100% significa chuva. A chave estava no ácido carbônico, já que ele tem a propriedade de reter calor o suficiente para aumentar a evaporação na superfície, aumentando assim a quantidade média de vapor d’água. O CO2 é o mestre de marionetes que controla o H2O, o mais potente dos gases-estufa.
De posse dessa relação, Arrhenius a transpôs para a Terra: quanto maior a concentração de ácido carbônico, maior também será a temperatura por aqui. E o inverso deveria ser verdade: quanto menos CO2, mais frio ficará o planeta. O sueco passou, então, a calcular numa imensa tabela de latitudes e longitudes quanto seria a temperatura média da superfície caso a concentração de dióxido de carbono fosse aumentada ou reduzida em vários pontos do planeta. O trabalho de presidiário foi auxiliado por um drama na vida pessoal de Arrhenius: uma crise no casamento, que o fez buscar refúgio no laboratório. Foram dois anos de labuta aritmética, que o químico encarou com estoicismo. “Eu não teria feito esses cálculos tediosos se um interesse extraordinário não estivesse ligado a eles”, escreveu.
Em 1896, mesmo ano de seu divórcio, Arrhenius publicou um artigo científico com duas tabelas que mudariam a história da climatologia. A primeira mostrava que uma redução de cerca de 40% na concentração de CO2 na atmosfera teria sido suficiente para causar uma glaciação, período em que “os países que hoje gozam do maior grau de civilização” estavam cobertos de gelo. Na outra ele apresenta o dado que dá pela primeira vez a dimensão do problema do aquecimento global: dobrar a concentração de “ácido carbônico” na atmosfera faria o planeta esquentar de cinco a seis graus, em média.
Se o raciocínio do sueco tivesse parado por aí, o estudo já seria revolucionário. Ali estava a primeira estimativa de um parâmetro crucial para os modelos computacionais do clima, conhecido hoje como sensibilidade climática: quanto a temperatura mudará caso a concentração de CO2 duplique em relação à da era pré-industrial. O mais incrível nos “cálculos tediosos” de Arrhenius foi que esse número não mudou muito em mais de um século. O quinto relatório do IPCC, o painel do clima da ONU, de 2013, que usou o que havia de mais sofisticado na modelagem de computador, estimou com base em vários modelos uma sensibilidade de 1,5 grau a 4,5 graus.
Mas Arrhenius foi além. Citando dados do colega Gustav Hogböm, ele afirmou que a quantidade de ácido carbônico produzida pela queima de carvão mineral para gerar energia já naquela época era igual à que circulava naturalmente na atmosfera. O corolário desse raciocínio era que se a humanidade pudesse queimar todo o carvão mineral disponível, a concentração de CO2 dobraria no ar e a gélida Suécia poderia virar quase um paraíso tropical. Arrhenius via isso como uma possibilidade desejável, mas estimou que tal processo fosse levar um milênio para acontecer.
Mais de um século depois, a estimativa parece risivelmente conservadora: a concentração de dióxido de carbono na atmosfera jamais ultrapassou as 280 ppm (partes por milhão) a 300 ppm em pelo menos 800 mil anos antes da era pré-industrial, e provavelmente em 3,3 milhões de anos. Em 2013 ela bateu por alguns dias a marca das quatrocentas ppm pela primeira vez (chegando ao valor final no ano de 393 ppm). Em 1958, quando as medições sistemáticas do CO2 na atmosfera começaram a ser feitas no alto do vulcão Mauna Loa, no Havaí, pelo americano Charles David Keeling, a concentração era de 315 ppm. No ritmo atual de emissões, ela terá dobrado ainda no século XXI, uns bons oitocentos anos antes do previsto por Arrhenius.
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As consequências projetadas desse aquecimento continuado até o final do século XXI e além não estão muito distantes do sonho de Svante Arrhenius de tornar a Suécia um país tropical. O IPCC estima que as temperaturas médias da Terra entre 2081 e 2100 serão até 4,8 graus mais altas do que no período pré-industrial. O nível do mar continuará subindo, em consequência tanto da expansão térmica dos oceanos quanto do derretimento das geleiras continentais e dos mantos de gelo da Antártida e da Groenlândia. Até agora, os mares já subiram dezenove centímetros em média, e a projeção para 2100 é de até 98 centímetros de elevação, previsão que ainda pode subir.
Mais aquecimento significa mais energia disponível no sistema climático. Mais aquecimento signifi ca também mais evaporação na superfície oceânica. Tudo isso conduz a uma tendência na partitura do clima a mais eventos meteorológicos extremos, como ondas de calor, enchentes (causadas por precipitação extrema concentrada em alguns poucos dias) e nevascas. É uma aparente contradição o aquecimento da Terra levar a mais nevascas, mas lembre-se de que neve nada mais é do que umidade congelada; quanto mais vapor d’água no ar, mais combustível o sistema climático tem para fazer neve em lugares onde ainda é frio o bastante para nevar.
As consequências dessas alterações no clima já são importantes hoje para as populações e os ecossistemas do Ártico e para os habitantes das pequenas nações insulares do Pacífico, além de trazerem em seu bojo catástrofes imprevisíveis, mas cada vez menos improváveis: em 2005, dois furacões de categoria 5 (a maior da escala de intensidade), o Katrina e o Rita, atingiram o Sul dos Estados Unidos; em 2012, a supertempestade Sandy trouxe o caos e mortes a Nova York e Nova Jersey; e, no ano seguinte, as Filipinas foram abaladas pelo tufão (nome dado aos furacões do Pacífico) mais forte a atingir a terra na história, o Haiyan, com ventos de 250 quilômetros por hora, que matou mais de 6 mil pessoas. Como de praxe, o maior custo em relação ao PIB das mudanças do clima recai sobre os países em desenvolvimento, que têm infraestrutura menos resiliente e cujas economias dependem mais de commodities agrícolas.
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