O leopardo e a selva escura

07/06/2017

O leopardo, clássico da literatura italiana, estava esgotado há anos no Brasil. Neste mês, pela Companhia das Letras, o romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa volta às livrarias com nova tradução, por Maurício Santana Dias, em uma edição especial que também inclui textos do apêndice de Gioacchino Lanza Tomasi.

No século XIX, os fragmentados estados italianos estavam em um tormentoso processo de unificação, e o estabelecimento de uma nova ordem se mostrava cada vez mais pungente. Ambientado num universo intensamente melancólico e sensual e repleto de elementos de ironia e humor, O leopardo acompanha a história de Dom Fabrizio Salina e de sua decadente família aristocrática siciliana - cujo brasão carrega inscrito o Leopardo que dá nome ao livro -, ameaçados pelas forças revolucionárias e democráticas durante os embates dessa transição. Nesse intrincado contexto, Salina precisa decidir como encarar as novas mudanças que se impõem tanto em sua vida pública como privada.

A seguir, leia o posfácio de Maurício Santana Dias, também presente nesta edição. 

* * *

1.
“Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude.” Ainda que O leopardo não fosse o grande romance que é, somente por esta frase, hoje citada por muitos com a força de um provérbio, como se fosse patrimônio comum, já teria sobrevivido na memória coletiva. Pronunciada pelo jovem aristocrata Tancredi de Falconeri a seu tio Dom Fabrizio, Príncipe de Salina e protagonista do livro, a sentença seria a expressão cabal do pessimismo histórico e da ironia que dão o tom do romance de Lampedusa. A cena do diálogo entre os dois aparece já nas primeiras páginas do romance, quando Tancredi tenta explicar ao tio, numa frase, por que decidira juntar-se aos garibaldinos que haviam desembarcado na Sicília naqueles dias, em 1860, e a partir dali dariam início a uma campanha que culminaria na unificação do Estado italiano. Num primeiro momento, o Príncipe não entende o que o sobrinho diz, demora a assimilar o paradoxo formulado por Tancredi, mas logo assimila a ideia e passa a repeti-la para si como uma espécie de refrão.

A visão pessimista — e cínica — expressa pelo jovem Tancredi, porém, acabou sendo tomada por boa parte dos leitores do livro como axioma de uma pretensa imobilidade da história. Mas o romance de Lampedusa não é um tratado de filosofia da história nem um estudo sobre as revoluções dos astros e dos homens. A formulação se deve, em parte, ao pragmatismo de um nobre que, com boa dose de maquiavelismo, percebe a ocasião propícia para agir — com virtude, diria Maquiavel — a fim de garantir seus privilégios de classe e de autoridade; em parte, ao momento de crise existencial vivido por Dom Fabrizio, personagem de índole reflexiva e analítica, que no meio do caminho da vida (ou pouco mais para lá: em 1860, o Príncipe de Salina tem cerca de 45 anos) se vê desnorteado como numa selva escura, prestes a perder o vigor e, talvez, a majestade.

É em torno dessas duas figuras, a do protagonista (Fabrizio) e a do deuteragonista (Tancredi), que se desenvolve a economia do romance e seu andamento pendular, que ora aponta as forças da conservação, ora as da renovação; ora dá espaço à ação propriamente romanesca, ora à reflexão tipicamente ensaística, toda concentrada no Príncipe. E qual é a ação central do enredo? Certamente não a expedição dos Mil e a campanha de Garibaldi no Sul da Itália, embora esse fato histórico esteja em estreita correlação com o cerne do livro. A ação central, resumida de modo bastante simplificado, consiste em algo muito antigo e tradicional: o casamento de um membro da antiga família aristocrática em decadência (Tancredi) com uma típica representante da classe burguesa enriquecida (Angelica), união que irá garantir a continuidade da primeira, assim como a nobilitação da segunda. De fato, a maior parte do livro, de sua trama romanesca, se concentra nessa “história de amor” que é também, ou antes de tudo, a história de um contrato. E, desse contrato privado, o engajamento de Tancredi nas batalhas pela unificação da Itália — que por fim se dará sob a monarquia da casa de Savoia, não como a república sonhada por Garibaldi e Mazzini — é o correlato público e necessário. É preciso pegar em armas e se unir à nova classe dirigente para que “tudo continue como está”.

2.
Em 1958, quando o romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa foi enfim publicado, postumamente, pela editora Feltrinelli, após uma série de peripécias, a atmosfera cultural na Itália não era propícia à recepção de um livro que, não bastasse sua roupagem oitocentista, parecia condenar a Sicília e o Sul do país a um imobilismo atávico, incapaz de se transformar e destinado a um eterno atraso. Embora àquela altura o auge do neorrealismo já tivesse passado — e a repercussão do Metello (1955), romance de Vasco Pratolini, foi um claro indício disso —, ainda predominava o sentimento difuso de que a literatura deveria expressar e corroborar as transformações históricas, cumprindo uma função quase pedagógica de esclarecer a nova massa de leitores sobre as ilimitadas possibilidades de mudança. E, sendo o Sul da Itália a região onde as marcas do feudalismo se manifestavam com maior evidência, muitos escritores contemporâneos de Lampedusa ou mais jovens se apropriaram do espaço meridional para fazer de seus romances libelos de denúncia contra aquela realidade miserável.

Um dos expoentes dessa concepção de literatura “progressista” foi o siciliano Elio Vittorini, que em 1941, com seu Conversa na Sicília, se consolidou como uma das vozes mais talentosas e influentes de então. Em primeiro lugar, é preciso dizer que o tipo de narrativa elaborada por Vittorini, e certa concepção do Sul e da “questão meridional” que dele decorre, está a anos-luz de O leopardo. De fato, se os “abstratos furores” de Silvestro — protagonista da obra de Vittorini — não chegam a se aplacar e resolver na ilha de sua infância, os diálogos que ele tem ali, na Sicília, e as figuras com quem interage revelam um mundo vivo, em fermentação, onde as possibilidades de mudança estão todas por medrar. Nada mais distante do romance lampedusiano, em que a crise existencial e o ceticismo de Dom Fabrizio transbordam por toda a paisagem e submergem a “questão meridional”, de matriz sociológica, numa visão de inferno e morte que só esporadicamente é suspensa pela exuberância sensual que teima em persistir. ¹

3.
O universo fechado, lento, intensamente melancólico e sensual de O leopardo provocou, como não poderia deixar de ser, uma acirrada polêmica entre os críticos italianos da época, que basicamente se dividiram em dois grupos: os que o atacavam por nele detectar a pura expressão do conservadorismo aristocrático de seu autor (Lampedusa era um aristocrata siciliano, e o personagem de Dom Fabrizio foi inspirado na figura de seu bisavô); e aqueles que o defendiam por sua inegável qualidade estética e por nele perceber um romance, necessariamente ambíguo e contraditório, e não uma tese sociológica. No entanto, se os intelectuais de fins dos anos 1950 se dividiram, e alguns ainda hoje condenem o livro por reacionarismo ideológico, os leitores em geral receberam o romance com enorme entusiasmo, a ponto de o transformarem no primeiro best-seller cult da Itália, um “caso literário” de rara proporção, antecipando-se em um quarto de século ao fenômeno de O nome da rosa, estreia estrondosa de Umberto Eco na ficção. E, assim como O nome da rosa recebeu em poucos anos uma versão cinematográfica, O leopardo serviu de base para que Luchino Visconti filmasse o extraordinário longa-metragem de 1963, com Burt Lancaster, Alain Delon e Claudia Cardinale nos papéis de Dom Fabrizio, Tancredi e Angelica.

Mas por muito pouco o manuscrito de Lampedusa escapou de ter permanecido na gaveta. Em 1957, os originais foram recusados por duas das principais editoras italianas, a Einaudi e a Mondadori. Em ambos os casos, pesou o parecer negativo de Elio Vittorini, então respeitado consultor literário das duas editoras e um dos escritores-intelectuais mais ativos da Itália. Por sorte, o manuscrito foi parar nas mãos de Giorgio Bassani, romancista de corte mais tradicional, que logo percebeu suas qualidades e acabou publicando o livro pela Feltrinelli no ano seguinte, quando Lampedusa já tinha morrido. O resto já se sabe.

4.
O leopardo começa com a oração do Rosário e termina com a destruição das relíquias religiosas e profanas da casa Salina. Entre uma cena e outra se passam cinquenta anos, e nesse intervalo o desembarque dos Mil garibaldinos na Sicília se tornou capítulo dos manuais de história, mais uma efeméride a ser comemorada, ao passo que os principais personagens do livro já não estão neste mundo. Mas o tempo do romance não é concebido de modo linear — avança em blocos, em saltos abruptos, concentrando suas seis primeiras partes entre os anos de 1860-2 (união de Tancredi-Angelica em paralelo à unificação da Itália) e reservando as duas últimas (1883, morte de Dom Fabrizio; 1910, cinquentenário do desembarque na Sicília e destruição das relíquias) como falso epílogo, que confere um efeito de encerramento necessário ao que é intrinsecamente fragmentário e aberto.

A esse tratamento descontínuo do tempo, interno à fábula, ou seja, à sucessão de episódios da trama, se acrescenta outro: aquele que assinala pontualmente a distância de quase um século que intercorre entre o teatro de ações no qual se movem os personagens e aquele de onde fala o narrador. Esse recurso acaba solapando o “efeito de real” arquitetado pelo romance, que está bem longe de ser um “romance histórico” à maneira de certas narrativas do século XIX.² Assim, o anacronismo deliberado de Lampedusa no uso da linguagem e da forma romanesca, ao “replicar” na superfície o estilo oitocentista, produz uma torção de sentido e um efeito a la “Pierre Menard”:³ ao buscar parecer idêntico ao “grande romance” oitocentista, revela sua diferença fundamental. E isso se dá sobretudo pela superposição bem calibrada de múltiplas temporalidades, que desaloja o romance do realismo oitocentista e o instala de pleno direito no espaço minado de suspeitas que é próprio da arte do pós-guerra. Não por acaso, numa das passagens mais famosas do romance (e do filme de Visconti), quando os personagens estão no baile em que Angelica é apresentada oficialmente à sociedade (parte VI), o narrador faz o seguinte comentário:

No teto, os deuses reclinados em assentos de ouro olhavam para baixo sorridentes e inexoráveis como o céu de verão. Acreditavam-se eternos: uma bomba fabricada em 1943 em Pittsburgh, Pensilvânia, devia provar-lhes o contrário.

Escrevendo em meados do século XX, Lampedusa recorre incessantemente à ironia e ao humorismo, corroendo o cenário que o autor havia construído com tanto zelo e abrindo um furo na trama, por onde os leitores — e o reflexivo Dom Fabrizio — podem enxergar o dispositivo teatral sempre em ação, o gesto calculado de cada um, o mundo social como uma imensa (e pirandelliana) encenação. Aliás, em outro momento importante do enredo, quando Angelica faz sua primeira visita ao palácio de Donnafugata (em tradução literal: “mulher em fuga”), já na condição de noiva de Tancredi (parte IV), o narrador chega a se referir de modo explícito ao que há de teatral, ou cinematográfico, na cena:

Em seguida, Angelica enrubesceu e recuou meio passo: “Estou tão, tão feliz…”. Aproximou-se de novo e, esticando-se na ponta dos pés, suspirou-lhe no ouvido: “Tiozão!”. Excelente gag, cuja eficácia em termos cênicos podia ser comparada ao carrinho de bebê de Eisenstein e que, explícita e secreta como era, deixou maravilhado o coração simples do Príncipe, subjugando-o definitivamente à bela menina. Enquanto isso, dom Calogero subia as escadas e dizia que sua esposa lamentava muito não poder estar presente, mas na noite anterior havia tropeçado em casa, o que lhe causara uma torção muito dolorosa no pé esquerdo. “Está com o peito do pé parecendo uma berinjela, Príncipe.” 4

5.
A superposição irônica de temporalidades ganha outro nível de complexidade quando se notam as várias justaposições de ações praticamente idênticas ao longo do romance. A mais evidente e significativa, quase paródica, é a que ocupa toda a parte V do livro, quando Padre Pirrone, o capelão da casa Salina, retorna a seu vilarejo natal e, abrindo um hiato no núcleo da ação romanesca — o noivado e o casamento de Tancredi e Angelica —, se torna o protagonista provisório de um episódio que duplica, em chave camponesa e popular, a trama central do livro. O leitor é deslocado para o ambiente rústico e pobre de uma família de lavradores da Sicília, onde, no entanto, a questão central é a mesma: como um casamento poderá salvar a continuidade de um determinado grupo social. Não só: nessa passagem, Lampedusa parece se valer de dois códigos romanescos tradicionais e muito distintos, alternando o decadentismo aristocrático, de matriz algo dannunziana, a um verismo que remete aos contos de Giovanni Verga. Assim, bem no meio do romance, o leitor é catapultado de um ambiente a outro, de uma ação a outra, de um estilo a outro, mas para assistir a uma encenação do mesmo, ou seja, ao casamento entre Angelina (aliás, ‘Ncilina) e seu primo Santino. Dá-se aí o contraponto entre dois casamentos arranjados, o primeiro entre aristocratas e burgueses (Salina-Sedara), o segundo entre camponeses igualmente pobres. Um romance em miniatura dentro do romance maior, teatro dentro do teatro, que o reduplica, confirma e deforma. O próprio narrador sublinha o efeito paródico resultante ao contrapor o nome das figuras femininas: Angelica, nome “nobre” que deriva do Orlando furioso, de Ariosto (expressamente citado), sai de cena para dar lugar a Angelina (‘Ncilina), nome “plebeu” que remete à heroína de Senilidade, romance de Italo Svevo, detalhe não explicitado pelo narrador.5

6.
Portanto, o romance que num primeiro momento foi lido como uma tentativa de recuperação nostálgica e extemporânea de um gênero que ia caindo no ostracismo — nos anos de 1950 e 1960, falava-se muito da morte do romance, uma morte inevitável, já que a forma-romance seria a expressão mais acabada de uma cultura burguesa moribunda —, ou mesmo como a defesa aristocrática de um imobilismo refratário a qualquer transformação histórica, lido hoje produz um efeito quase oposto. Como dirá o Príncipe Salina pouco antes de morrer, contrariando em parte o adágio do sobrinho Tancredi:

Ele mesmo dissera que os Salina seriam sempre os Salina. Havia errado. O último era ele. Garibaldi, aquele Vulcano barbudo, no fim das contas vencera.6

O próprio Giuseppe Garibaldi, percebido por Dom Fabrizio como um oponente de classe, passa ao longo do romance de ditador a herói nacional, de general vitorioso a “menino” ferido em Aspromonte (parte VI), de promessa de uma Itália nova, republicana e igualitária, a fiador de uma unificação que terminou frustrando muitas esperanças, sobretudo entre os italianos do Sul.

A técnica do claro-escuro, o fausto quase barroco em que O leopardo é plasmado, ainda se alimenta de uma infinidade de pares que estabelecem oposição-complementariedade entre vários planos e tipos humanos, a começar pela dupla Dom Fabrizio-Tancredi: a vida contemplativa e a vida ativa, a reflexão e a ação, o velho e o novo — que de algum modo reitera o velho —, a seriedade e o humorismo. E, em níveis mais abstratos, entre os planos terreno e cósmico (sondado pelo Príncipe com seus telescópios), o mundano e o sublime, os astros e a poeira, a propensão da finitude ao infinito.

Outro exemplo desses contrastes: a paixão erótica de Tancredi e Angelica os leva a percorrer as zonas mais ocultas do palácio em busca de privacidade, e bem no seu centro eles se deparam com a “sala dos sádicos”, onde antepassados da família Salina se entregavam a prazeres secretos. A essa cena libertina, Lampedusa, conhecedor da literatura francesa do século XVIII, justapõe uma cena religiosa cujo objeto central, o punctum, é também um açoite. A citação é longa, mas esclarecedora:

A bem da verdade, depois do Leopardo, o chicote parecia ser o objeto mais comum em Donnafugata. No dia seguinte à descoberta do apartamentinho enigmático, os dois namorados toparam com outro pequeno açoite, de caráter bem distinto. Não estava nos aposentos secretos, mas, ao contrário, no venerado local que pertencera ao Duque-Santo, o mais afastado do palácio. Ali, em meados do século XVII, um Salina se retirara como num convento particular e fizera penitência, preparando seu itinerário rumo ao Céu. Os cômodos eram estreitos, de teto baixo, com o piso atijolado de argila rústica, as paredes alvas e caiadas, semelhantes às dos camponeses mais desprovidos. O último aposento dava para uma sacada de onde se dominava a extensão amarela de feudos sobrepostos a feudos, todos imersos numa luz triste. Numa das paredes, um enorme crucifixo, maior que a escala real: a cabeça do Deus martirizado tocava o teto, os pés sangrentos roçavam o assoalho: a chaga no flanco parecia uma boca que a brutalidade proibira de pronunciar as palavras da última salvação. Ao lado do cadáver divino, de um prego pendia um açoite de cabo curto do qual partiam seis tiras de couro já endurecido, arrematadas por seis bolas de chumbo do tamanho de avelãs. Era a “disciplina” do Duque-Santo. Naquele quarto Giuseppe Corbera, duque de Salina, se açoitava em solidão, diante de Deus e do próprio feudo, e talvez pensasse que as gotas de seu sangue fossem chover sobres as terras para redimi-las; em sua pia exaltação, talvez pensasse que apenas por meio desse batismo expiatório elas realmente se tornassem suas, sangue de seu sangue, carne de sua carne, como se diz.

Também aí a pulsão erótica tem sua contrapartida no impulso autoflagelador e mortuário do Duque-Santo. Mas, se há alguma religiosidade no livro, se for necessário falar de religiosidade em O leopardo, não se trata certamente de um credo cristão ou católico, aí visto como simples formalidade, com seus ritos e o capelão de casa:7 predomina bem mais um sentimento pagão, o da Sicília de “25 séculos atrás”, o dos líricos gregos que outro siciliano — Salvatore Quasimodo — traduziu em 1940. Como o destes versos do poeta Mimnermo, admirado por Lampedusa e, aliás, muito “leopardianos”:

Nós, como folhas que gera a florida estação da primavera, quando de súbito crescem aos raios do sol, semelhantes a elas no brevíssimo tempo de flores da juventude gozamos, sem conhecer por parte dos deuses nem o bem nem o mal.

7.
E, aqui, Mimnermo, Giacomo Leopardi e Tomasi di Lampedusa (ou seria o Príncipe Salina?) parecem de fato convergir. Assim como o pastor errante da Ásia interpela a lua no poema de Leopardi em epígrafe, ou como Mimnermo, que via o suceder contínuo de gerações como fenômeno natural, contemplado à distância por deuses sorridentes, Lampedusa submete os personagens e as ações de seu romance ao olhar do astrônomo Dom Fabrizio, que contempla a aventura humana sub specie aeternitatis, ou seja, do ponto de vista da eternidade. Dessa perspectiva, as guerras, as revoluções, o amor, a história perdem sua centralidade num espaço-tempo não humanos, sacudindo os leitores de seu sonho antropocêntrico. Também por isso, esta é uma boa hora para ler ou reler O leopardo.

* * *

 

1- Todo o livro é atravessado por esse duplo impulso de vitalidade e morte, e o sensualismo de suas páginas só acentua a perda inevitável de todas as coisas experimentada obsessivamente pelo Príncipe de Salina. Então, quando sua morte chega, na sétima parte da narrativa, ela vem na forma de uma bela dama: a belle dame sans merci tratada por Mario Praz em seu notável estudo sobre o romantismo decadentista, La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica. 

2- A propósito, leia-se a abordagem de Vittorio Spinazzola no livro Il romanzo antistorico (Roma: Editori Riuniti, 1990), em que O leopardo é posto na mesma linhagem de Os vice-reis, de Federico de Roberto, e de Os velhos e os jovens, de Luigi Pirandello.

3- “Pierre Menard, autor do Quixote”, conto do livro Ficções, de J.L. Borges, em que um autor do século XX reescreve ipsis litteris um capítulo do romance de Cervantes, e essa operação é vista por seu comentador como sua obra mais importante.

4- Grifo nosso. A propósito, Visconti faz um aproveitamento magistral deste e de outros recursos que estão presentes no livro.

5- Curiosamente, no filme Senilità (1962), de Mauro Bolognini, a personagem Angelina (Angiolina) é representada pela mesma Claudia Cardinale.

6- Grifo nosso. A constatação da vitória de Garibaldi é confirmada pelo Príncipe quando ele verifica em seu neto, Fabrizietto, o duplo burguês de si mesmo, até no nome.

7- No contexto do romance, o plano religioso seria, antes, entendido como o futuro de uma ilusão, nos termos de Freud, autor que Lampedusa conhecia muito bem.

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