O relançamento da tradução de Anna Kariênina

07/07/2017

Por Rubens Figueiredo

Um dos romances mais aclamados de todos os tempos, Anna Kariênina continua a causar espanto. Como pode uma obra de arte se parecer tanto com a vida? No posfácio à nova edição, assinado por Janet Malcolm, a escritora destaca sua característica fundadora: a habilidade de Tolstói em recriar um salão repleto de música, perfumes, rendas, numa galeria de personagens que, de tão vívidos, parecem se materializar diante do leitor. No texto a seguir, Rubens Figueiredo, que verteu para o português a obra de Tolstói, comenta como foi o processo de tradução de Anna Kariênina. Da preocupação com o rigor das palavras até a adaptação da fina ironia, ele lembra o momento em que se deparou, pela primeira vez, com a página que inaugura essa obra monumental e definitiva.
Por Alice Santanna

O relançamento da tradução de Anna Kariênina, agora pela Companhia das Letras, me fez lembrar, com curiosidade, a maneira como minha visão sobre o Tolstói foi se modificando à medida que a tradução do livro progredia. Eu não era um estudioso do autor e, no rigor das palavras, continuo não sendo. Porém, quando me pediram a tradução, me dei conta, meio assustado, de que tinha de ler e pesquisar, de forma bem objetiva – em função do tempo exíguo – pelo menos os dados mais relevantes sobre Tolstói. Quando chegou a hora de traduzir a primeira página, eu achava que tinha pelo menos certa noção do que me esperava. Só que a noção que eu tinha era, quase toda ela, apenas daquilo que alguns diziam sobre o autor.

Em vida, Tolstói foi objeto de polêmica, na Rússia e no estrangeiro. Objeto e também sujeito, pois a literatura russa, em seu veio principal, adquiriu força e alcance justamente mediante a polêmica. Não me refiro à polêmica de imprensa (bater três vezes na madeira) ou de salão ou de gabinete, esse esporte de elegantes. Pois, no caso em que Tolstói e outros estavam envolvidos, tratava-se de debates sobre as opções históricas concretas do país e do povo. A sério. Da mesma forma, nessa literatura, os sentimentos das pessoas eram tratados a sério. A fundo. Até o humor era a sério (vejam o Gógol). Assim como as opções de estrutura e de linguagem literária. Ou seja, a ironia, essa semideusa da esnobação, da inconsequência, não tinha trégua.

Até hoje, após quase cento e vinte anos, Tolstói continua excomungado pela igreja cristã ortodoxa. Não é pouco. Mas há quem prefira o prêmio Nobel. Quando peguei a primeira página de Tolstói para traduzir, ainda tinha, no fundo do crânio, algumas minhocas que ronronavam sobre literatura, universal, clássico, imortal, gênio – palavras que costumam ser enfileiradas, em várias ordens, para costurar uma bela isca, não menos enganosa, e no fundo não menos cruel, do que um comercial de tevê sobre empréstimos bancários.

Pois bem, digamos que comecei a traduzir Tolstói com minhas minhocas a postos – minhocas que não eram só minhas, a bem da verdade, nem estavam lá só por minha culpa. Mas ainda bem antes de acabar a tradução, antes mesmo de chegar ao fim da primeira parte do romance, eu já dava caça a todas elas, uma por uma. A literatura crítica sobre o autor de que eu dispunha, de início, e que estava mais à mão era (como sempre, infelizmente) a americana dominante. Nela, a história era abstraída, abduzida. O colonialismo, a burguesia, a expansão do capital quase desapareciam. Em seu lugar, a moral: o escritor moralista, o doutrinário. Ainda que os dados objetivos não batessem, a mesma tecla soava repetida, mil vezes. O escritor que sacrificava a arte à moral. Na minha frente, as páginas do romance iam seguindo, nas horas de descanso eu lia o romance Ressurreição, que Tolstói escreveu em 1899, e eu traduzia e, cada vez mais, pensava: onde, como assim, cadê, quem foi que disse? A igreja cristã ortodoxa não é a única que mantém Tolstói excomungado.

Quando eu estava no meio da tradução, tive meu único encontro pessoal com os dois principais e veteranos tradutores da literatura russa no Brasil. Muito rapidamente, expliquei a ambos o que eu estava notando no texto russo, nas palavras, quando lidas uma a uma: repetições a golpes de martelo, parágrafos e períodos longos, de arquitetura paralelística, uma retórica meio selvagem, mas rigorosamente racional, digressões dentro de digressões, paralelismos dentro de paralelismos, em proporções e abrangência desconcertantes, fora de todo padrão dos manuais de estilo e redação. Expliquei meu receio de que os editores, resenhistas e não sei mais quem fossem todos estranhar, questionar, recusar. Os dois, com suas sobrancelhas grisalhas, me olharam fundo nos olhos e insistiram: você tem de manter, tem de insistir, tem de brigar, não deixe passar nenhum, nenhum só.

Isso tem muito mais a ver com Tolstói.

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Rubens Figueiredo nasceu no Rio de Janeiro em 1956. Formado em letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, é tradutor de autores como Dostoiévski e Philip Roth, entre outros, professor de português e tradução literária e um dos mais originais ficcionistas brasileiros contemporâneos. Em 1998 seu livro de contos As palavras secretas recebeu os prêmios Jabuti e Arthur Azevedo. É autor de, entre outros, Barco a seco (Prêmio Jabuti) e Passageiro do fim do dia.

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