Para nunca mais calar

05/09/2017

Por Letícia Novaes

Acordei, preparei meu chá, abri o computador e, para meu horror (mas não meu choque, infelizmente), li que um rapaz ejaculou dentro do ônibus em cima de uma mulher. O rapaz foi preso em flagrante e era pra ser uma vitória (imagine você se todos os assediadores das nossas vidas e das nossas amigas/tias/mãe/avós fossem presos, What a Wonderfull World toca dentro do meu cérebro). Mas o juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto entendeu que não era necessária a manutenção da prisão. Ele não viu "constrangimento tampouco violência" no caso e considerou o crime de menor potencial ofensivo. Esqueço a água do chá, cogito machucar tal juiz, me sinto constrangida, espumo de ódio, enfim, assim começa minha manhã. Leio muitos comentários de pessoas (em sua maioria homens) escrevendo: "tinha que ser com a mãe ou com a filha dele!". A única maneira das pessoas desejarem empatia para tal infeliz é atingindo quem? As mulheres da vida dele! Não ele, claro. As mulheres!

Acabo de ler o livro da Rebecca Solnit em plena nova onda feminista que assola o mundo. A mãe de todas as perguntas é um livro com vários ensaios da escritora, que é autora da sensacional expressão mansplaining: junção de MAN (homem) e EXPLAINING (explicar), que é quando os homens insistem em nos explicar o óbvio, seja algo banal no mundo ou algo da nossa esfera particular, como recentemente ocorreu com Veronika Hubeny, pesquisadora em teoria das cordas da Universidade da Califórnia, que não conseguiu falar sobre sua própria teoria porque homens falavam por cima dela, explicando o que ELA mesma havia feito na sua pesquisa. Felizmente uma mulher gritou "LET HER SPEAK" ("deixem ela falar!"), indo contra a maré de silenciamento que por vezes tentam nos impor, ora de maneira sutil, ora de maneira violenta.

A história do ônibus não sai da minha cabeça, mas dos horrores que estão emergindo, um alívio é real: a mulher não ficou calada, tampouco as pessoas do ônibus. Quantas situações absurdas de assédio já não enfrentamos e permanecemos caladas e pessoas à nossa volta idem? Rebecca Solnit, em seu esplêndido livro, se aprofunda em diversos assuntos, um deles sendo o silenciamento feminino. Com bom humor afiado e inteligência lúcida, critica as leis (escritas por homens, obviamente) que parecem proteger mais o estuprador do que a vítima.

A escritora diz obviedades maravilhosas e imprescindíveis, e me abre os olhos e a cabeça para situações periclitantes e disfarçadas. Penso em dar esse livro para todo homem que conheço. Para as mulheres também, claro, mas há uma onda que estamos todas surfando juntas, ainda que haja divergências, estamos na mesma onda. Cita nomes de comediantes de stand-up que até alguns anos atrás faziam piadas machistas, mas graças à luta feminista despertaram e alguns hoje em dia (como Louis C.K., Aziz Ansari) até fazem piadas inteligentes e divertidas abordando o assunto. Quero dar esse livro para todos os homens que conheço. Se você é homem e está perdido, compre esse livro. Se acha que já sabe tudo, que tal folhear esse livro? Se ainda tem dúvidas sobre feminismo, recomendo. Se você ainda é dos homens que diz "mas nem todos homens", quero imprimir e entregar na rua como quem entrega papelzinho escrito OURO a parte onde ela fala sobre "A obsessão pela falsa denúncia de estupro: uma saída muito prática". Genial.

A mãe de todas as perguntas vai bem além, o livro vai lá no fundo. Rebecca acende a faísca e arma a fogueira de maneira magistral. Estou arregalada em ler um bom livro sobre um dos assuntos mais relevantes de hoje em dia e concordar com cada linha e ser sacudida e alertada em tantos trechos. Maternidade, mulheres negras, misoginia, binarismo de gênero, há muito mais a se saber, a se pensar, a se estudar. Tarde da noite, mas estou desperta que só. Torcendo para que todos despertem também. Rebecca dedica seu livro a vários nomes que desconheço e, por fim, dedica o livro a quem arma escarcéu. Me sinto dedicada. E você? Esse livro é pra você? Ou ainda não? Faça ser. 

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Letícia Novaes é atriz, escritora, compositora e cantora. Como atriz já participou de filmes, stand-up comedy e seriados. Como escritora já foi colunista do Segundo Caderno, escreveu para zines e sites e lançou seu primeiro livro, Zaralha - abri minha pasta, em 2015 pela Editora Guarda Chuva. Como cantora lançou três discos com sua banda Letuce e acaba de lançar seu primeiro disco solo, intitulado "Letrux em Noite de Climão", pelo selo Joia Moderna.

 

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