O que você conhece?

10/10/2017

“Escreva sobre o que você conhece”, eles dizem a você. Eu entendo que por trás disso há a melhor das intenções: os leitores querem acreditar no texto, então cada linha precisa exalar um forte cheiro de verdade. Mas eu tenho uma teoria um pouco diferente. Não é que eu não acredite na parte sobre verdade, sobre convencer o leitor, sobre levá-lo a um universo que é uma simulação do real; é só que eu acho que o conselho, posto desse jeito, pode deixar o escritor em uma situação confortável e preguiçosa, escrevendo sobre si mesmo e sobre sua vida desinteressante. Stephen King não segue esse conselho, certo? Se seguisse, escreveria a respeito da decisão de trocar o telhado em uma velha casa do Maine e, sei lá, uma garota que o rejeitou quando ele tinha 15 anos de idade. Ian McEwan não segue esse conselho. Ele passou um ano acompanhando a rotina de um neurocirurgião, poxa vida, a fim de desenvolver um romance. De maneira que eu prefiro colocar desse jeito: “vá conhecer alguma coisa muito bem, e então escreva sobre ela.”

Eu encontrei minha “alguma coisa” em 2012, em uma viagem de carro. Era um condado no norte da Califórnia chamado Mendocino, onde a superfície majestosa (costa com falésias, florestas de sequoias) disfarça uma economia e um estilo de vida que gira em torno do cultivo “mais ou menos” ilegal de maconha (isso é uma longa história, justamente a que eu me propus contar). Opa, aí está meu próximo romance, pensei, andando pelos corredores de uma loja de jardinagem com a certeza de que havia algo estranho no ar. No entanto, minha vontade de escrever esse livro era inversamente proporcional ao que eu sabia sobre a história, o funcionamento e as pessoas do condado de Mendocino.

É uma sensação maravilhosa, na verdade: você conhece pouquíssimo sobre determinados assuntos, e então se dedica a pesquisá-los, entendê-los. Você pode começar a viver dentro deles (no meu caso, isso significou passar oito meses em uma cabana, convivendo com pessoas locais e indo no mercado comprar abacate). E aí, de repente, você não está mais tateando; você está vendo o que acontece ao redor com um olhar apurado. Acho que posso dizer agora que eu sou a brasileira que mais sabe sobre Mendocino e o plantio de maconha no norte da Califórnia. Não é muita coisa, mas é alguma coisa.

Arriscaria também dizer que esse movimento de descoberta que se desenvolve ao longo do processo criativo encontra sua imagem de espelho no processo de leitura. Cada pessoa que pegar esse livro vai partir do completo desconhecimento e chegar, ao final da história, a um certo domínio daquele universo. Me diga se isso não é bonito?

Descrevi até agora o real que talhou a ficção. Mas qual seria o efeito da ficção na ficção? Estou pensando no recente post do meu colega Juan Pablo Villalobos, no qual ele comenta sobre as leituras que os escritores fazem durante a escrita de um romance. Assim que eu decidi escrever uma história que se desenrolaria nesse específico lugar do planeta, procurei mapear as ficções que já tinham usado aquela região como cenário. Digamos que isso não foi muito tranquilizador, uma vez que descobri que a pior obra de alguns escritores americanos grandões se desenrolava exatamente naquele lugar, o que desencadeou uma certa sensação de que ninguém era capaz de retratar tal cenário de um jeito competente. Porque estou falando de ninguém menos que Denis Johnson, Thomas Pynchon e T. C. Boyle. Enfim, isso foi algo que ouvi de um casal de escritores e pude mais ou menos confirmar com a leitura dos romances em questão. Nessas horas, tentava me consolar pensando que eu era estrangeira e que, como tal, poderia ter alguma vantagem, um olhar enviesado que por que não?, seria interessante, mas claro que tudo isso era muito vago, e o desespero vinha como uma consequência natural.

Havia, ao menos, os abacates. 

* * * * *

Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu último livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

 

Carol Bensimon

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