Quadriculando o círculo do romance pós-guerra: Epílogo Hispano-Americano

03/11/2017

Por Silviano Santiago

Leia aqui a primeira, a segunda e a terceira parte da série de Silviano Santiago. 

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Salvo engano, o primeiro trabalho sistemático e acadêmico que analisa o impacto do romance norte-americano da primeira metade do século 20 na prosa hispano-americana é a dissertação de mestrado La influencia de William Faulkner en cuatro narradores hispanoamericanos. Foi escrita pelo jovem texano James Irby e por ele defendida em 1956 na Universidade Autónoma do México. Nela, o hoje professor aposentado da Universidade de Princeton, posteriormente um dos bons especialistas norte-americanos em Jorge Luis Borges e Lezama Lima, estuda a “influência” (v. título) da obra de William Faulkner nos romances do cubano Lino Novás Calvo (por sua vez, tradutor de Faulkner ao espanhol), do uruguaio Juan Carlos Onetti e dos mexicanos José Revueltas e Juan Rulfo.

Não é gratuita a eleição de Faulkner como representante exclusivo do então novo romance norte-americano. Segundo Irby, seus livros circulam pela América Latina desde os anos 1930. Acrescento que é Prêmio Nobel de Literatura em 1949, anos antes da pesquisa de Irby. Não se esqueça de que, em 1940, o argentino Jorge Luis Borges tinha traduzido e tornado familiar o romance The wild palms/Las palmeras salvajes.

Apesar do mestrando texano identificar uma relação íntima entre os valores sobressalentes na obra de Faulkner (desilusão ideológica, amargura, ceticismo, angústia, pessimismo etc.) com os valores que armam as obras dos jovens romancistas hispano-americanos, sua análise privilegia a técnica romanesca, ou o estilo, em detrimento da temática. O estilo de Faulkner “influencia” a escrita dos quatro prosadores hispano-americanos. A orientação literária daqueles autores se desloca da narrativa europeia tradicional para a recente narrativa anglo-saxônica, assim como a prosa brasileira perderá seu fundamento no século XIX em romances como Perto do coração selvagem (1944), O encontro marcado (1956) e A barca dos homens (1961). Clarice Lispector, Fernando Sabino e Autran Dourado engatinhavam então na nova arte da ficção.

James Irby salienta traços estilísticos do romance faulkneriano que são evidentes nas obras dos quatro romancistas hispano-americanos. Nomeio-os rapidamente. O uso de testemunhas oculares para narrar um evento acontecido no passado. A objetividade a nortear o modo de expor a trama. Em contraste, o manuseio competente da retórica de caráter subjetivo (o monólogo interior). A tomada de consciência do desenvolvimento como experiência coletiva e espiritual duma cidade ou duma região do país. Essas quatro características são também evidentes em A barca dos homens e em romances posteriores de Autran, embora não sejam válidas para a autoficção de Clarice Lispector e a de Fernando Sabino, que estreitam os laços literários, respectivamente, com prosadores e prosadoras ingleses e com o Scott Fitzgerald de Este lado do paraíso, típico romance de formação.

A dissertação de Irby terá boa repercussão nos estudos comparatistas latino-americanos e se desdobrará na tese de doutorado The Influence of William Faulkner in four Latin American Novelists, defendida por Joan Loyd Hernandez em 1978. Na tese, seleciona novos romancistas para a análise: o mexicano Agustín Yáñez, o chileno José Donoso e os colombianos Gabriel García Márquez e Álvaro Cepeda Samudio. Aliás, no prólogo Hernandez confessa seu débito para com Irby.

Digno de nota é que, no ano anterior à defesa de Hernandez, ou seja, em 1977, a mestranda Heloísa Toller Gomes se valera dos conceitos de “desconstrução” e “descentramento” (para retomar termos de Jacques Derrida) em metodologia de literatura comparada e defendera na PUC-RJ a dissertação de mestrado A arquitetura do poder: Fogo Morto e Absalom, Absalom! Proposta de análise comparativa.

O trabalho acadêmico de Heloísa é publicado pela Editora Ática em 1981, sob o título de O poder rural na ficção. A originalidade maior do ensaio experimental da mestra está não só no descentramento dos conceitos de “fonte” e de “influência”, fundamento dos trabalhos norte-americanos, como também na descontrução da leitura de romances-afins a partir do “jogo” (tomo o termo a Derrida quando ele lamenta a presença dum “mito de referência” em Lévi-Strauss) entre textos de diferentes literaturas nacionais. Os princípios dessa proposta de leitura tinham sido expostos no ensaio “O entre-lugar do discurso latino-americano” (1972) e estão presentes no prefácio à edição pela Ática, “Apesar de dependente, universal”, escritos pelo autor desta postagem, professor-orientador da então mestranda.

Na velha geração de escritores brasileiros, Érico Veríssimo é quem acumula a mais intensa experiência concreta tanto do dia a dia norte-americano quanto da literatura dominada pelos escritores dados como pertencentes − de modo amplo − à “geração perdida”. Nos seus romances dos anos 1930 já se nota a importância da retórica narrativa anglo-saxônica, quando ainda era evidente a supremacia europeia e sobretudo francesa  nas letras nacionais. O gaúcho não só traduz e publica em 1934 o famoso romance Contraponto, do britânico Aldous Huxley, como também dá continuidade à Clarissa − sua primeira narrativa sentimental em que é evidente a importância da música na composição ficcional − com a escrita polivalente do hoje clássico Caminhos cruzados (1935). Neste, ainda é nítida a presença da “arte da fuga”, de que se vale André Gide para compor Os moedeiros falsos (1925), traduzido por Álvaro Moreyra.

Lembre-se que, em 1941, Érico Veríssimo viaja aos Estados Unidos a convite do Departamento de Estado. Temia a censura e a repressão durante o regime Vargas. Por lá fica alguns anos como professor e escritor. (Seu filho, Luis Fernando, tendo sido educado em Washington, confessaria em entrevista: “Eu praticamente me alfabetizei nos Estados Unidos e isso fez com que eu tivesse uma relação muito mais próxima com a literatura norte-americana [do que com a brasileira]”). Érico publica dois livros em que narra suas impressões de viagem, Gato preto em campo de neve (1941) e A volta do gato preto (1947).

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Silviano Santiago nasceu em 1936, em Formiga (MG). É autor de Mil rosas roubadas, vencedor do prêmio Oceanos em 2015. Sua vasta obra inclui romances, contos, ensaios literários e culturais. Doutor em letras pela Sorbonne, Silviano começou a carreira lecionando nas melhores universidades norte-americanas. Transferiu-se posteriormente para a PUC-Rio e é, hoje, professor emérito da UFF. Por quatro vezes foi distinguido com o prêmio Jabuti, o último sendo o primeiro lugar na categoria Romance com Machado. Pelo conjunto da produção literária, recebeu o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras e o José Donoso, do Chile. Silviano vive hoje no Rio de Janeiro e acaba de relançar pela Companhia das Letras Stella Manhattan.

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