A guerra e a paz

06/11/2017

Por Elitza L. Bachvarova

Quando se lê Guerra e paz pela primeira vez, abre-se uma página distinta na biografia de cada um de nós. Por isso, escrever uma crítica apropriada desse livro é um desafio quase impossível. O que não é difícil é expressar minha imensa gratidão por ter tido a sorte de vivenciar o poder da grande arte num encontro tão pessoal - o poder da palavra criativa de penetrar a alma e produzir uma tempestade de emoções e de pensamentos, de chocar, deleitar e iluminar.

A obra-prima de Tolstói nos fala de questões existenciais sobre a essência do homem, o significado da vida, do amor, da felicidade, da morte... É uma aventura e uma viagem por um mundo diferente, não apenas em termos de geografia e de tempo. Ela nos fornece, nas palavras de Turguêniev, uma representação fiel do caráter e do temperamento do povo russo (de uma era passada), “melhor do que se lêssemos centenas de obras de etnografia e de história”. O romance é catártico e transformador, provocando uma mudança em nossa percepção e compreensão do mundo. É uma jornada que exige que nos livremos de todos os clichês e das imagens produzidas pela miríade de versões cinematográficas do livro de Tolstói, para assim “descobrir o que só pode ser descoberto pela arte do romance” nas palavras perspicazes de Kundera. Isso requer, de modo especial, que nos abramos à polifonia da narrativa e à compreensão que Tolstói tem da “história” - a razão de ser desse livro. Foi o que o afastou de sua intenção original de escrever sobre os Dezembristas[1], para ir buscar as fontes da sua inspiração - seguindo o sábio conselho de Puchkin, de escrever com sinceridade sobre o que foi presenciado, “a guerra e a paz”[2]. Este é o princípio épico do romance, que liga os fios invisíveis da narrativa, formando um quadro único e monumental da vida.

Ninguém antes de L. N. Tolstói mostrou a guerra com tal realismo e poder artístico, negando qualquer interpretação romântica e vendo a guerra como a maior manifestação do mal, um fenômeno contrário à própria natureza do homem. “A guerra não é nenhuma cortesia, é a coisa mais vil do mundo”, reflete o príncipe Andrei Bolkónski na véspera da batalha de Borodinó, cujo número de mortes só seria superado pelas guerras do século XX.

O romance de Tolstói versa sobre o caráter fatídico dos conflitos sangrentos nas relações humanas. Explora as origens das guerras napoleônicas no Oriente (em 1805 e 1812) e seus resultados, focando nos seus impactos gerais sobre a vida do povo russo, mas também nos destinos individuais dos atingidos por esses eventos históricos. É sobre o que se perde e o que se descobre no calor da batalha. Ele mostra que, além das aldeias pilhadas, dos campos abandonados e embebidos de sangue humano, das chamas de Moscou, é o próprio mundo da Rússia anterior à guerra que desvanece. Com cada homem morto no campo de batalha, todo o seu inimitável mundo espiritual perece, milhares de fios são rompidos, os destinos de seus entes queridos implacavelmente mutilados...

Esta verdade da guerra - “no sangue, no sofrimento, na morte”, que Tolstói, ele mesmo ex-participante da guerra no Cáucaso e da defesa de Sebastopol, proclamou como princípio artístico nos seus contos de guerra - precisava ser humanizada, tornando-a compreensível. O escritor chegou cedo à conclusão de que “todo fato histórico deve ser explicado humanamente” e, para ele, isso significava retratar os eventos através do destino de seus personagens.

Assim, a guerra define o caráter dos protagonistas no romance – se impondo inexoravelmente em suas existências para marcar e moldar suas vidas, e servindo como teste decisivo da posição moral das pessoas. A família Rostóv é obrigada a deixar Moscou. Na guerra, o jovem Pétia Rostóv perece. Pierre Bezúkhov é capturado e tem de aprender a sobreviver e a compreender esse infortúnio. Natacha, que é marcada nas profundezas da alma pela morte de seu amado, fica horrorizada com a insensata destruição de vidas.

Ao mesmo tempo, a guerra também é uma prova da resistência do homem e da sua capacidade de descobrir o significado de sua existência, mesmo sob as condições mais adversas. O destino do príncipe Andrei Bolkonsky é o de traçar seu caminho, superando a ilusão da glória militar e terrena, para alcançar a reconciliação com a vida através da experiência do transcendente, no amor e na agonia.

Com seu talento incomparável, Tolstói pinta o íntimo entrelaçamento do homem e da paisagem, tanto a física como a emocional, muitas vezes contrastando a majestade da natureza com a loucura humana, com a mecânica da violência da guerra.

Revelar a verdade sobre a guerra é muito difícil, conclui Tolstói, e ele aborda o tema através de outro contraste - com a sua concepção de paz. A “guerra” não é apenas a ação militar dos exércitos em luta, mas também a animosidade e a desunião das pessoas em tempos de paz, separadas por barreiras sociais e morais, pela alienação e isolamento e pelo seu egoísmo. Igualmente, a “paz” aparece no romance se desdobrando nos seus vários significados. A paz nega a guerra porque sua essência está no trabalho e na felicidade, na manifestação livre e natural da personalidade. E esta concepção está subjacente ao próprio credo estético de Tolstói:

“O objetivo do artista não é o de resolver problemas, mas fazer com que o leitor ame a vida em suas inúmeras e inesgotáveis manifestações. Se me dissessem que eu poderia escrever um romance que, de uma vez por todas, oferecesse a solução incontestável para todas as questões sociais, não dedicaria nem duas horas a isso. Mas se me dissessem que o livro que eu escrevo seria lido pelos meus contemporâneos e que as crianças daqui a 20 anos ainda se emocionariam com ele e chorariam, ririam e amariam a vida, eu dedicaria toda a minha vida e toda a minha força a tal trabalho.”

Para os leitores brasileiros de hoje, é um privilégio poder compartilhar, através dessa excelente tradução, o mundo, as alegrias e as tristezas da obra prima de Tolstói.

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A nova edição de Guerra e paz pela Companhia das Letras chega às livrarias no dia 21 de novembro.

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Elitza L. Bachvarova nasceu em Sofia, Bulgária. Bacharelado em Antropologia, Mestrado em Sociologia, ambos pela Universidade de Chicago, EUA. Doutorado em História Comparada/UFRJ. Trabalha como pesquisadora, tradutora e professora. Atualmente ensina no Departamento de Letras Eslavas e Orientais/Faculdade de Letras/UFRJ.


[1] O interesse original de Tolstói na história da Rússia era focado no destino dos Dezembristas, oficiais nobres e veteranos das guerras napoleônicas que organizaram um levante abortado em 1825, três anos antes do nascimento do escritor. Eles esperavam provocar a reforma política da autocracia czarista, mas acabaram punidos com a execução ou o exílio na Sibéria. Em 1856, o czar Alexandre II deu anistia aos Dezembristas sobreviventes, como parte da liberalização da sociedade russa promovida por ele, após a desastrosa derrota na Guerra da Crimeia. Entre os anistiados estava o Príncipe Sergey Volkonsky, parente distante de Tolstói, que primeiro deu ao autor a ideia de escrever um romance sobre um Dezembrista envelhecido voltando para Moscou em 1850. Tolstói logo descobriu que precisava pesquisar e escrever sobre a experiência dos Dezembristas lutando pelo exército russo em 1812, para trazer vida à sua história, e isso, por sua vez, levou-o a 1805, quando a Rússia entrou pela primeira vez em guerra com Napoleão e perdeu. Tolstói acabou se concentrando nos eventos que levaram à invasão francesa de 1812 em suas consequências imediatas.

[2] A.S. Pushkin: “Boris Godunov”:

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Descreva, sem filosofar maliciosamente,/Tudo de que você testemunha será:/Guerra e paz, os governos dos soberanos,/Os santos que fizeram milagres. 

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