Totò Riina e a Cosa Nostra

17/11/2017

Por Leandro Demori

Salvatore Riina foi um dos mais poderosos e bestiais terroristas do século XX. Nascido em Corleone – uma cidade pobre e abandonada do interior da Sicília –, ele chegou à capital Palermo no começo dos anos 60 vestindo ternos mal cortados e sujos e calçando sapatos escamando em barro. Era um agricultor semi-analfabeto que trabalhou como faz-tudo dos mafiosos tradicionais da cidade, descendentes de famílias que comandavam a máfia quase desde o seu surgimento. Em pouco mais de uma década, Riina daria um golpe em toda a cúpula urbana da Cosa Nostra, destituindo ou matando seus opositores, e se tornaria o poderoso chefão do crime organizado italiano, um globetrotter que abastecia os Estados Unidos de heroína e enchia as ruas da Itália de sangue.

Totò, como era chamado, ou “Curto”, devido a sua baixa estatura, fez o impensável: declarou guerra ao Estado italiano e empilhou cadáveres pelas cidades a rajadas de Kalashnikov e explosões de carros-bomba. Foram milhares os mortos em décadas de ações terroristas. Suas vítimas mais notórias são os juízes anti-máfia Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, assassinados em 1992. Por esses e outros crimes, Totò cumpria prisão perpétua desde 1993, quando foi capturado após incríveis 24 anos escondido em casas e bunkers muito próximo da mesma Corleone em que nasceu. Ele morreu hoje, um dia depois de completar 87 anos. Eram 3:37 da madrugada, hora local.

Neste trecho de Cosa Nostra no Brasil, os mafiosos Giuseppe di Cristina e Giuseppe Calderone comentam seu descontentamento com o "Curto". Confira.  

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“Precisamos dar um jeito no Curto. Algue?m tem que arrancar a cabec?a daquela cobra”, disse Giuseppe di Cristina depois de horas sem abrir a boca. Peppe, como era conhecido, fazia companhia a seu melhor amigo, Giuseppe Calderone, o Pippo. Os dois caminhavam pelos campos atra?s de perdizes. Calderone não carregava espingarda — era famoso pela aversa?o a?s armas. O mafioso tinha grande estima entre os criminosos por sua capacidade de ajustar as disputas sem precisar disparar uma bala. Era conhecido como “Garganta de Prata”, tanto por sua orato?ria como por uma particularidade: uma doenc?a o obrigara a arrancar parte da laringe, e Pippo se viu forc?ado a falar com o auxi?lio de uma eletrolaringe, aparelho eletro?nico que, quando pressionado ao pescoc?o, produz uma voz robotizada. “Demorei muito tempo pra entender quem Totò Riina realmente era”, desfibrilou Pippo. “Parecia um passarinho inofensivo, lembra? Era um doce que so?.” Peppe Di Cristina concordou com a cabec?a. Pippo continuou: “Era so? Tano Badalamenti fazer um sinal que Totò se movia. Badalamenti mandava matar, Totò nem perguntava o nome do morto. Tano levantava a ma?o e, em alguma parte da Sici?lia, algue?m fechava os olhos pra sempre”. Peppe levantou a cabec?a e respondeu: “O pior, Pippo mio, e? que Donano ainda acha que Totò e? seu ca?o fiel”. “E?!”, gritou Pippo com sua voz meta?lica.

Foram Pippo e Peppe os primeiros a entender a preocupação de Masino com os corleonesi. Ambos entendiam as leis da Cosa Nostra a ponto de saber que Riina desrespeitava cada uma delas conforme sua convenie?ncia. Vinham suportando a situac?a?o ate? que um encontro da Cu?pula lhes deu a gota que faltava para transbordar o copo. Riina, que quase nunca falava durante as reuniões, disse a todos que queria matar um juiz que estaria “importunando alguns dos nossos irma?os”. Ele buscava apoio dos demais em um grupo que raramente decidia pela morte de algum agente do Estado — sobretudo naqueles anos em que estavam rece?m-livres das perseguic?ões da polícia.

Manter a calma diante de qualquer situac?a?o era um motivo de orgulho para Pippo. Poucos, dentro e fora da Cosa Nostra, poderiam dizer que o tinham visto alterado. A palavra “Corleone”, entretanto, despertava nele os piores demo?nios. Pippo aumentou o volume da eletrolaringe e gritou com toda forc?a: “Metade da Cosa Nostra esta? presa no Ucciardone e esse idiota quer matar um juiz! Um juiz! Quer deixar todo mundo na cadeia para o resto da vida!”. Totò Riina estava subvertendo os mecanismos da Cosa Nostra. Ele conquistava apoios e se tornava credor de favores. Conseguia, pouco a pouco, dividir ainda mais as famílias, gerando rivalidade e o?dio onde antes existia so? descontentamento. Procurou fazer-se porta-voz dos que ele identificava como injustic?ados: levava aos chefões as reivindicac?ões que vinham dos andares de baixo — sempre humilde, comunita?rio, falando em nome dos outros, nunca pedindo nada para si. Quando era acontentado, tornava-se o portador das boas-novas. Quando dava de cara contra um muro, dizia aos outros que os padrinhos, os chefões, a Comissão, enfim, aqueles que sempre comandavam tinham negado o pa?o. A reunião acabou em silêncio contido.

Peppe Di Cristina resolveu se expor. Peregrinou por toda Palermo visitando os mais importantes chefões da e?poca. Falou com Stefano Bontade, Gaetano Badalamenti, Salvatore Inzerillo. Para todos revelou seus motivos e disse que a Cosa Nostra deveria frear o Curto. E foi justamente Peppe que acusou publicamente Totò Riina e seus homens do sequestro e desaparecimento do contador Luigi Corleo. Muitos chefões suspeitavam, mas faziam de conta (ou esperavam) que os culpados aparecessem — e que não fossem de Corleone. “Aquele corno tem que pagar”, disse Peppe, mais de uma vez, a Stefano Bontade. Não se cansava de repetir a cantilena. “Um dia a hora dele chega”, retrucava Stefano, sem que ela chegasse. Peppe insistiria ainda uma u?ltima vez, depois de Riina passar novamente por cima da Comissa?o ao matar o policial responsável pela investigação do sumic?o de Luigi Corleo. O coronel Giuseppe Russo estaria chegando perto de prender Totò quando, em uma tarde de vera?o de 1977, foi morto na entrada de um parque. “Lembra o que Riina disse quando perguntamos por que ele tinha matado Russo? Lembra, Stefano? Que, quando se mata um policial, ninguém precisa fazer perguntas. Como se a Comissa?o não existisse, como se não existissem regras.” Bontade escutava sem se mover. “Stefano, Stefano…”, disse Peppe, “eu volto a Riesi. Mas, da pro?xima vez que vier a Palermo, temos que resolver isso.”

Bontade tinha a mesma reac?a?o dos demais chefões de Palermo quando o assunto era Corleone. Tudo bem que Riina estivesse se alargando um pouco ale?m da conta, tudo bem que fizesse aquilo que queria, muitas vezes ignorando as decisões da Comissão. Era um problema a ser resolvido, Riina. Mas não agora, não hoje; talvez amanha?, talvez depois. Outra hora. O que incomodava os capos de cidades distantes da capital como Peppe era apenas um leve distu?rbio para os mandachuvas da Cosa Nostra. Eles tinham coisas mais importantes com o que se preocupar.

Naquele ano de 1977, a prisão dos franceses ligados a Buscetta no Brasil, cinco anos antes, se faria sentir como nunca. Muitos deles, como Michel Nicoli e Christian Jacques David, se tornariam importantes testemunhas nos Estados Unidos. A repressa?o desencadeada apo?s as confissões dos traficantes que operavam na Ame?rica do Sul arrebentaria com a Unione Corse. Marselha se tornaria uma cidade ocupada. Suas refinarias seriam estouradas uma a uma. Seus qui?micos seriam perseguidos e presos. A heroi?na se tornaria artigo caro no mercado internacional. Do outro lado do Atla?ntico, os gângsteres se ouric?avam. Era preciso encontrar uma sai?da para continuar a abastecer a Ame?rica. Os padrinhos não estavam nem ai? para Pippo, Peppe, Masino e Totò.

Riina não perdoou e matou Peppe. Tre?s meses depois seria a vez de Pippo. Ele sofreu uma emboscada tramada por Totò — durante meses Riina planejara cada passo do que deveria acontecer. Sentia que era sua chance de colocar as mãos em Palermo. A antipatia de Pippo por armas foi fatal: de ma?os nuas, foi morto por um grupo de assassinos que o fizeram frear em um retorno de pista enquanto ia para uma falsa reunia?o, armada somente para que ele sai?sse de casa. Em poucos meses, Riina havia matado os mais leais mafiosos dos palermitanos fora da capital, concretizado a expulsão de Badalamenti da Comissa?o, desmoralizado Stefano Bontade e criado enormes problemas para Totuccio Inzerillo. Não muito tempo depois, o novo chefe da Cu?pula seria Michele Greco, marionete imposta por Totò e engolida pelos demais. O Curto se mostrava como realmente era, comandando a Cosa Nostra como se ainda estivesse em Corleone — escondido em vielas, observando o movimento nas prac?as, era ele, Salvatore Riina, o novo rei da Sici?lia, fazendo o sinal da cruz enquanto puxava o gatilho. 

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Leandro Demori nasceu em Santa Catarina, em 1981. Com formação na Associazione di Giornalismo Investigativo de Roma, é um dos diretores da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e editor do site da revista piauí. Lançou em 2016, pela Companhia das Letras, Cosa Nostra no Brasil, uma reportagem sobre Tommaso Buscetta, que derrubou o impédio da máfia e colocou o Brasil na rota do crime. 

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