A fuga de Casanova

23/01/2018

Por Kelvin Falcão Klein

The Swing, de Jean-Honore Fragonard (1732-1806), que está na capa de Jogo de cena em Bolzano. 

Giacomo Casanova (1725-1798), aventureiro e conquistador, é o tipo de personagem histórico tradicionalmente ligado à ação e às peripécias. Isso se deve sobretudo a sua espetacular fuga da prisão de Veneza, em 31 de outubro de 1756, e à publicação de suas movimentadas memórias em várias edições ao longo do século XIX. Sándor Márai constrói seu romance, Jogo de cena em Bolzano, de 1940, a partir do evento da fuga e da chegada de Casanova na cidade de Bolzano, norte da Itália.

Márai, contudo, quebra as expectativas mais convencionais. Seu Casanova em Bolzano pouco se mexe, e a ação do romance se dá quase que inteiramente dentro do quarto de uma hospedaria. Uma vez que o romance começa com a chegada de Casanova e termina com sua partida da cidade, isso permite a Márai concentrar a ação da narrativa mais nos gestos e palavras dos personagens do que em seus deslocamentos no tempo e no espaço.

Parte da literatura feita no período da fuga de Casanova é bem avessa a essa recusa do deslocamento, o que torna a quebra de expectativa de Márai ainda mais eficaz. Podemos partir de um exemplo dado pelo próprio Casanova no romance, Voltaire, a quem conhecia: duas de suas novelas, Zadig, de 1747, e Cândido, de 1759, são reconhecidas como tendo fartos toques de picaresco e tramas “rocambolescas”.

Nessa contenção do movimento, Jogo de cena em Bolzano evoca As brasas, o mais famoso romance de Márai, de 1942, sobre o reencontro em um castelo de dois amigos que não se veem há quarenta e um anos. Mas em Bolzano há uma riqueza especial de vozes, pois o Casanova de Márai tem um confronto verbal não apenas com um homem, o conde de Parma (como acontece em As brasas), mas também e sobretudo com uma mulher, a condessa, Francesca. Cinco anos antes, os dois homens duelaram por ela, e Casanova foi ferido no peito.

Esse triângulo é complementado pela convivência de Casanova com outros dois personagens no mesmo espaço: Balbi, o ex-monge com quem fugiu da prisão, e Teresa, funcionária da hospedaria que seduz no primeiro dia. O recurso dramático de Márai – o uso do quarto fechado como cenário para o “jogo de cena” – faz pensar na peça de Jean-Paul Sartre, Entre quatro paredes, que estreia em 1944 (contemporânea, portanto, dos livros de Márai). Tanto Márai quanto Sartre usam o quarto fechado para ressaltar essa capacidade do diálogo de não apenas evocar o passado e o futuro, mas também de manipular uma variedade de sentimentos em pouquíssimo tempo – da paixão ao desespero, passando pelo tédio e pela ironia.

Além disso, Jogo de cena em Bolzano é também uma sutil reflexão sobre a ficção e a literatura, sobre a potência da imaginação. O conde, por exemplo, passa páginas explicando a Casanova os sentidos possíveis de uma única linha de uma carta da condessa. Mais do que isso: o confronto entre o conde e Casanova gira em torno de um papel a ser representado, do “jogo de cena” que deve ser realizado no encontro com a condessa. No monólogo que forma um dos capítulos do romance, Casanova assim se refere à situação: “O conde de Parma calculou certo, avaliou-me e calculou todas as possibilidades, sabia que eu iria ficar e desempenhar meu papel teatral, que assumiria a representação, por mais perigosa que ela fosse, que a assumiria mesmo que meu pescoço venha a se romper e as belas senhoras de Bolzano entoem cantos fúnebres em três vozes sobre meu cadáver”.             

Cada etapa do romance de Márai leva a uma nova quebra de expectativa, a uma renovação da surpresa, que começa com a imobilidade de Casanova e vai ganhando sutileza a cada novo confronto. Como pano de fundo, a constante preocupação com a linguagem, suas limitações diante dos sentimentos e sua conivência com os mal-entendidos ao longo do tempo. Nessa perspectiva, o romance de Márai pode ser lido em contato com a obra de outro húngaro, Imre Kertész, especialmente o breve romance Liquidação: um editor lê a última peça do amigo dramaturgo, que se suicidou; a vida coincide com o texto e o editor pauta suas ações pelo que lê na peça. Da mesma forma que o Casanova de Márai, preso em um jogo de espelhos que faz do personagem o autor da própria vida, constantemente atualizada a cada reescrita e releitura do passado.

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Kelvin Falcão Klein é crítico literário, professor de literatura na UNIRIO e autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Ed. Modelo de Nuvem, 2011). Escreve no blog Um Túnel no Fim da Luz.

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