Em tradução (Bonitinho mas…?)

19/04/2018

A tradução envolve quase sempre um perde-ganha. 

O crime, nas conversas de botequim e nos comentários pretensamente entendidos, é se concentrar apenas nos perdes. Porque há ganhas. Há ganhos.

(E não. 

Não se trata de desmedida pretensão ou falta de noção do peão cabotino. É claro que cada autor que eu traduzi na vida é mais prosador que eu, mais criador que eu, mais competente que eu. No entanto, isso não impede que, momento por momento, vez por outra possa rolar uma pequena vantagem para o leitor brasileiro.

 Já falei muito disso por aqui…)

A tradução de poesia, no entanto, frequentemente sublinha essa relação tensa. E talvez até por isso seja ela a preferida das discussões teóricas. 

Porque aqui as coisas ficam bem intensas.

A mais conhecida dessas disputas é entre o sentido e a forma.

Na prosa literária rola sempre aquele esforço por tentar dizer/fazer “exatamente” o que o texto original dizia/fazia. Ou, em termos mais honestos, por tentar (cada tradutor) ser capaz de dar forma na sua língua à sua impressão a respeito do que o texto original queria dizer/fazer em cada momento.

Você pode pecar por ter lido errado. (E nesse caso tende a nem saber que errou.)

Pode pecar por não ter conseguido dar forma ao que tinha entendido. (E nesse caso sabe. E nesse caso dói.)

Mesmo aí, no entanto, se esconde um ou outro perde-ganha. 

Obedeço mais à gramática da escolinha ou ao bom-senso do brasileiro de todo dia? Atendo mais ao estilo do personagem ou à convenção social da minha língua? Violo a minha língua ou a do autor?

Na poesia (especialmente na poesia mais “moderna”, em que os problemas da prosa aparecem também todinhos: registros, múltiplas vozes, estilo…) isso se soma ao problema da forma. 

Você pode ler direito. Pode conseguir formular aquela frase adequadamente em português. Mas aí precisa socar aquilo tudo em um dado número de sílabas poéticas. Precisa fazer rimar com outra frase, às vezes a cinco versos de distância. Precisa usar uma determinada sequência de consoantes pra conseguir algum efeito de imitação, por exemplo…

E fica servindo a dois (ou bem mais que dois) patrões. 

Se decidir seguir ao pé da letra a pauta métrica e rímica, vai ter que sacrificar um tanto do sentido (jogar fora um advérbio, usar uma palavra mais rara só porque tem uma sílaba a menos, compactar um verbo com um adjetivo…). Agora, se quiser atender plenamente ao sentido, vai ter que ser mais liberal com a forma (aceitar um verso de pé-quebrado aqui-acolá… conviver com uma ou outra rima imperfeita…).

O Santo Graal, claro, é não ceder nem cá nem lá. E quando rola é feliz. 

Ô, se é.

***

FOTO: Aliis Sinisalu / Unsplash

Na tradução da poesia de Eliot eu venho usando regras fluidas. A depender do poema. Caso a caso. 

Por vezes corro a um extremo. Em outras ocasiões me refugio do outro lado. A depender, sempre, da (minha leitura da) prioridade de cada texto.

Só que, por vezes (e um caso desses passou hoje pela minha mão, durante a revisão de um poema central na obra dele), aparece um perde-ganha ainda mais intenso. 

A questão passa a ser o problem da beleza.

Por que o que é que a gente faz quando do nada surge um verso lindo em português? Lindo mesmo (acontece até comigo!), mas que talvez represente um pequeno grau de “perda”. Vale “perder” um fio de cabelo de “fidelidade” (sempre entre tanta saspas…) pra acrescentar uma mecha reluzente ao poema?

É um poema, poxa vida…

Aquilo era pra ser bonito!

Se eu ponho na balança um verso choco, mas seguro, e um verso arriscado, mas deslumbrante… Eliot (e que ouvido tinha aquele cara!) escolheria qual no meu lugar?

Tenho a bênção pra trair em nome do efeito?

Tenho a bênção do pequeno desvio (sempre muito pequeno, confie em mim) quando diante do espanto? 

Do encanto?

***

Eu tinha já mandado esse texto, quando um comentário do Flavio Costa, no Facebook, me fez pensar de novo no “problema” da beleza do texto. 

Eu tinha postado um trecho de um poema do Eliot. Eram os dois versos finais de uma quadra do quarto Prelúdio. Eis a quadra toda. (Sempre, em versão provisória).

Comove-me um conceito que se enrosca
Em torno a tais imagens, renitente:
A ideia de algo infindamente brando,
Martirizando-se infinitamente.

O Flávio dizia que não gostava do uso dos dois advérbios em -mente, assim juntinhos. Eu também não gosto. Assim como tendo a não gostar, em circunstâncias normais, de um eco tão violento quanto o de brando e martirizando, assim lado a lado. 

E aquele excesso de nasais?

Mas o que eu me pergunto é se o que a gente recusa na prosa de informação (precisamente porque chama atenção pra superfície do texto, mero “meio” ali…) não é o que serve de instrumento pra gerar beleza na poesia. 

O desvio pode ser feio ou belo. 

Lidar com o estranho, com o índice de esquisito pode ser justamente a melhor forma de gerar o pasmo…?

***

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

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